A batalha pela classe média

Deselitizá-la é crucial para evitar a decadência dos serviços públicos, revela movimento em Madri. E a saúde pública é estratégica: cria lugares de coesão, articula lutas coletivas, restabelece a ideia do Comum. Afinal, no posto de saúde ou no hospital encontramo-nos todos

.

“Vejo uma grande necessidade estrutural de uma política de esquerda, ou seja, uma política que unifique a sociedade multiplicando seus bens coletivos, que beneficiem a todos igualmente”
Wolfgang Street, sociólogo alemão

Em novembro, milhares de pessoas foram às ruas de Madri para defender a saúde pública. Uma mobilização dessa magnitude não se explica sem a confluência de uma grande variedade de perfis sociais. E que gravitam em torno da saúde. Ao contrário de outras necessidades básicas, como a educação, onde a escola pública convive com uma rede privada fortíssima e subsidiada, ou a habitação, que é acedida maioritariamente no livre concorrência, a maioria da população continua recorrendo ao sistema público de saúde quando adoece – inclusive aqueles que têm plano de saúde privado tendem a recorrer à saúde pública quando o problema é realmente grave e precisam de operações ou cuidados muito caros.

Falar em saúde pública é, portanto, falar em interclassismo. Na sala de espera do postinho de saúde ou do hospital encontramo-nos todos. Daí sua força. Quando se trata de saúde pública, se trata de algo que é vivido na pele de toda da população. Romper esse espaço de coesão social tem sido uma das obsessões das empresas privadas e dos gestores políticos do neoliberalismo. Já conhecemos o plano: atrair as classes médias para os planos privados, devidamente prestigiados e promovidos, e deixar uma saúde pública mínima, pensada para quem não pode pagar os serviços de saúde no mercado. Mas levar a cabo este roteiro não é tão fácil.

A liberdade de escolha, o prestígio social, o desejo de distinção, a degradação da qualidade do público ou simplesmente o racismo e o classismo, estiveram e ainda estão na base da migração de uma parte das classes médias para alguns setores de serviços privados que segregam as classes populares e a aproxima, ainda que simbolicamente, das classes mais abastadas. Deter essa fuga das classes médias é uma prioridade estratégica para frear a decadência dos serviços públicos. Somente com serviços onde perfis sociais possam conviver de forma plural é possível criar lugares de coesão, miscigenação e redução de desigualdades.

Perante uma direita e um centro-esquerda que, com diferentes gradações, concebem serviços públicos para “os mais vulneráveis”, a esquerda, os sindicatos e as organizações sociais precisam ousar defender serviços públicos mais atrativos, de qualidade e universais, financiados com uma tributação verdadeiramente progressiva. Uma política redistributiva que devolve seus impostos às classes médias na forma de educação e saúde públicas, programas de transferência de renda ou moradia popular, não só para “os mais desprotegidos”, mas também para si mesmas.

A melhor forma de combater o discurso das direitas por cortes de impostos — “o dinheiro é melhor no bolso das pessoas” — é fazendo com que as classes médias que pagam impostos sintam que esse dinheiro está sendo bem investido em serviços públicos dos quais estes usuários também se beneficiem e se sentan orgulhosos. Ou seja, eu pago imposto, mas em troca eu não pago o bilhete do metrô;, ou meus filhos vão para uma boa escola pública gratuita seja lá qual é a minha faixa de renda. Este é o pacto entre as classes médias e trabalhadoras que tem permitido financiar estados de bem-estar social mais robustos e inclusivos. A batalha pelas classes médias é a batalha pela articulação de amplas maiorias que defendem o que é público em seu cotidiano.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *