A China tem uma alternativa ao neoliberalismo

Como país constrói uma economia de mercado regulada. Por manter finanças e moeda sob controle público, investe em infraestrutura, reduz rapidamente a pobreza e resiste a crises. O que esta experiência pode ensinar ao resto do mundo

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Por Ellen Brown | Tradução: Felipe Calabrez

Quando o banco central dos EUA (o Federal Reserve, Fed) cortou as taxas de juros na semana passada, comentaristas ficaram se perguntando sobre o porquê. Segundo dados oficiais, a economia estava se recuperando, o desemprego estava abaixo de 4% e o crescimento do produto interno bruto estava acima de 3%. Pelo raciocínio do próprio Fed, o que se esperaria era, ao contrário, um aumento das taxas

Os especialistas de mercado explicaram tratar-se de uma guerra comercial e de uma guerra cambial. Outros bancos centrais estavam cortando suas taxas, e o Fed teve que segui-los para evitar que o dólar ficasse supervalorizado em relação a outras moedas. A teoria é que um dólar mais barato tornará os produtos norteamericanos mais atraentes nos mercados externos, ajudando as bases industriais e a mão-de-obra do país.

No fim de semana, o presidente Trump foi além ds cortes de juros, ameaçando impor, em 1º de setembro, uma tarifa suplementar de 10% sobre produtos chineses no valor de 300 bilhões de dólares. A China respondeu suspendendo as importações de produtos agrícolas dos EUA por empresas estatais e deixando cair o valor do yuan. Na segunda-feira, o índice Dow Jones Industrial Average caiu quase 770 pontos, seu pior dia em 2019. A guerra prosseguia.

O problema é que as guerras cambiais não têm vencedores. Isso foi demonstrado políticas de “peça a seu vizinho” [“beggar-thy-neighbor”] dos anos 1930, que apenas aprofundaram a Grande Depressão. Como o economista Michael Hudson observou em uma entrevista concedida em junho à jornalista Bonnie Faulkner, tornar os produtos norte-americanos mais baratos no exterior pouco contribuirá para a economia do país, que não tem mais uma base de produção competitiva ou produtos para vender. Os trabalhadores de hoje estão em grande parte nas indústrias de serviços – motoristas de táxi, funcionários de hospitais, agentes de seguros e afins. Um dólar mais barato no exterior só faz com que os bens de consumo no Walmart e as matérias-primas importadas para as empresas dos EUA fiquem mais caras.

O que é realmente desvalorizado, quando a cotação de uma moeda cai, diz Hudson, são o preço e as condições de trabalho de seus assalariados. A razão pela qual os trabalhadores norte-americanos não podem competir com estrangeiros não é a sobrevalorização do dólar. São os custos maiores de moradia, educação, serviços médicos e transporte. Nos países concorrentes, esses custos são geralmente subsidiados pelo Estado.

O principal concorrente dos EUA na guerra comercial é obviamente a China, que subsidia não apenas os custos dos trabalhadores, mas também os custos de suas empresas. O governo controla 80% dos bancos, que fazem empréstimos em condições favoráveis a empresas nacionais, especialmente estatais. Se as empresas não puderem pagar os empréstimos, nem os bancos nem as empresas são levadas à falência, pois isso significaria perder empregos e fábricas. Os empréstimos inadimplentes são apenas contabilizados nos balanços ou caducam. Nenhum credor privado é ferido, uma vez que o credor é o governo e os empréstimos foram criados nos livros dos bancos, em primeiro lugar (seguindo, aliás a prática bancária padrão a nível global). Jeff Spross analisou o fenômeno em detalhes, em um artigo da Reuters de maio de 2018 intitulado “Os bancos chineses são grandes. Muito grandes?

Como o governo chinês é dono da maioria dos bancos, e imprime a moeda, tecnicamente pode manter esses bancos vivos e emprestando para sempre. Pode soar estranho dizer que os bancos da China nunca entrarão em colapso, não importando o quão absurdas sejam suas posições de empréstimo. Mas os sistemas bancários são assim: lidam apenas com o fluxo de dinheiro.

Spross citou Richard Vague, ex-executivo-chefe de banco e presidente da Governor’s Woods Foundation, de Filadélfia, que explicou: “A China comprometeu-se com um alto nível de crescimento. E crescimento depende fundamentalmente do financiamento. Pequim vai “entrar e determinar a lucratividade, o capital, sanar a dívida ruim dos bancos estatais… por todos os meios que você e eu não veríamos adotados nos Estados Unidos”.

Agitação política e trabalhista é um grande problema na China. Spross escreve que o governo mantém a população satisfeita ao estimular crescimento econômico alto e distribuir seus frutos entre os cidadãos. Cerca de dois terços da dívida chinesa são devidos apenas pelas corporações, que também são em grande parte estatais. O crédito corporativo é, portanto, uma forma indireta de política industrial financiada pelo governo – não por meio de impostos, mas pelo privilégio exclusivo que os bancos têm de criar dinheiro em seus balanços.

A China considera que este é um modelo bancário melhor do que o sistema ocidental privado, focado em lucros de curto prazo para seus acionistas. Mas os formuladores de políticas dos EUA [e de quase todos os países ocidentais] consideram os subsídios que a China oferece a suas empresas e trabalhadores como “práticas comerciais desleais”. Eles querem que a China renuncie aos subsídios do Estado e a outras políticas protecionistas para nivelar a competição. Mas Pequim argumenta que as reformas exigidas equivalem a um “golpe de Estado econômico”. Como diz Hudson: “Essa é a luta que Trump tem contra a China. Ele quer que os bancos governem a China e tenham um “livre” mercado a seu dispor. Ele diz que a China enriqueceu nos últimos cinquenta anos por meios injustos, com ajuda do governo e empreendimento público. Na verdade, ele quer que os trabalhadores chineses sintam-se tão ameaçados e inseguros quanto os norte-americanos. Eles devem se livrar de seus transportes públicos. Eles devem se livrar de seus subsídios. Eles devem deixar muitas de suas empresas irem à falência para que as corporações estadunidenses possam comprá-las. Eles devem ter o mesmo tipo de mercado livre que destruiu a economia dos EUA.

Num artigo publicado em 1º/8, na revista “Foreign Affairs”, Kurt Campbell e Jake Sullivan chamam isso de “uma emergente disputa de modelos”.

Um Guerra Fria Econômica

Para entender o que está acontecendo, vale olhar um pouco para a História. O modelo de livre mercado esvaziou a base industrial dos EUA no início da era Thatcher / Reagan, dos anos 70 e 80, quando as políticas econômicas neoliberais se consolidaram. Enquanto isso, as economias emergentes da Ásia, lideradas pelo Japão, roubavam a cena com um novo modelo econômico chamado “capitalismo de mercado guiado pelo Estado“. O Estado determinou as prioridades, encomendou o trabalho e contratou empresas privadas para executá-lo. O modelo superou os defeitos do sistema comunista, que havia colocado a propriedade e o controle direto nas mãos do Estado.

O sistema japonês de mercado guiado pelo Estado foi eficaz e eficiente – tão eficaz que foi considerado uma ameaça à existência do modelo neoliberal baseado em dívida e em “mercados livres”, promovido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Segundo o autor William Engdahl em A Century of War, no final da década de 1980 o Japão era considerado a principal potência econômica e bancária do mundo. Seu modelo guiado pelo Estado também provou ser altamente bem-sucedido na Coreia do Sul e nas outras economias dos “Tigres Asiáticos”. Quando a União Soviética entrou em colapso no final da Guerra Fria, o Japão propôs seu modelo aos antigos países comunistas, e muitos começaram a considerá-lo, bem como o exemplo da Coreia do Sul, como alternativas viáveis ao sistema de livre mercado dos EUA. O capitalismo guiado pelo Estado assegurava o bem-estar geral sem destruir o incentivo capitalista. Engdahl escreveu:

As economias dos Tigres Asiáticos criaram um grande embaraço para o modelo de livre mercado do FMI. Seu sucesso em conciliar empresas privadas com um papel econômico forte do Estado foi uma ameaça à agenda do Fundo. Enquanto os Tigres Asiáticos demonstrassem sucesso com um modelo baseado em um forte papel estatal, os antigos estados comunistas, e não apenas eles, poderiam argumentar contra o projeto extremista representado pelo FMI. No leste da Ásia, durante a década de 1980, taxas de crescimento econômico anual de 7-8%, segurança social crescente, educação universal e alta produtividade do trabalho foram todas apoiadas por orientação e planejamento estatal, embora em uma economia de mercado – uma forma asiática de paternalismo benevolente.

Assim como os EUA entraram em uma Guerra Fria para destruir o modelo comunista soviético, os interesses financeiros ocidentais começaram a destruir essa ameaça emergente asiática. Ela foi desarmada quando economistas neoliberais ocidentais persuadiram o Japão e os Tigres Asiáticos a adotar um sistema de livre mercado e abrir suas economias e empresas a investidores estrangeiros. Os especuladores ocidentais então derrubaram os países vulneráveis, um por um, na “crise asiática” de 1997-8. Somente a China permaneceu como uma ameaça econômica ao modelo neoliberal ocidental, e essa ameaça existencial é o alvo das guerras comerciais e monetárias hoje.

Se não se pode vencê-los…

Em seu artigo de 1º/8 na Foreign Affairs, intitulado “Competição sem catástrofe”, Campbell e Sullivan escrevem que a tentação é comparar essas guerras comerciais econômicas com a Guerra Fria contra a Rússia; mas a analogia é inadequada:

“A China é hoje uma concorrente mais formidável economicamente, mais sofisticada diplomaticamente e mais flexível ideologicamente do que a União Soviética jamais foi. E, ao contrário da União Soviética, a China está profundamente integrada ao mundo e entrelaçada com a economia dos EUA.”

Ao contrário do sistema comunista soviético, não se pode esperar que o sistema chinês “desmorone sob seu próprio peso”. Os EUA não podem esperar, e nem deveriam querer, destruir a China, dizem Campbell e Sullivan. Em vez disso, devem buscar um estado de “coexistência em termos favoráveis aos interesses e valores dos EUA”.

A implicação é que a China, sendo forte demais para ser eliminada do jogo como a União Soviética foi, precisa ser coagida ou bajulada a adotar o modelo neoliberal e abandonar o apoio estatal de suas indústrias e a propriedade de seus bancos. Mas o sistema chinês, embora obviamente não seja perfeito, tem um histórico impressionante de sustentar o crescimento e o desenvolvimento a longo prazo. Enquanto a base manufatureira dos EUA estava sendo solapada sob o modelo de livre mercado, a China estava sistematicamente construindo sua própria base de manufatura e investindo pesadamente em infraestrutura e tecnologias emergentes, e o estava fazendo com o crédito gerado por seus bancos estatais. Em vez de tentar destruir o sistema econômico da China, poderia ser mais “favorável aos interesses e valores dos EUA” adotar suas práticas industriais e bancárias mais eficazes.

Os EUA não podem vencer uma guerra cambial através da adoção de medidas de desvalorizações cambiais competitivas que desencadeiam uma “corrida para o fundo do poço”. E não podem vencer uma guerra comercial instalando barreiras comerciais competitivas que simplesmente os afastem dos benefícios do comércio cooperativo. Mais favorável aos interesses e valores norte-americanos do que a guerra com seus parceiros comerciais seria cooperar no compartilhamento de soluções, incluindo soluções bancárias e de crédito. Os chineses provaram a eficácia do seu sistema bancário público no apoio às suas indústrias e seus trabalhadores. Em vez de vê-lo como uma ameaça existencial, os EUA poderiam agradecê-los por testar o modelo e obrigá-los a uma virada.

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12 comentários para "A China tem uma alternativa ao neoliberalismo"

  1. Wagner Moraes disse:

    Em tempos de pandemia, estou em casa o dia inteiro e felizmente encontrei esse artigo. Muito interessante… parabéns pela matéria!

  2. Hugo disse:

    Tirar o sucesso chinês das 12 horas, 14 horas de trabalho do chinês por 6 vezes em uma semana, com boa parte de trabalhadores dormindo no trabalho para colocar tudo no financiamento dos bancos, não é correto. Querem importar pontos da China para o Brasil? Então rasga a CLT e vamos trabalhar 14 horas por dia.

  3. Jose Severino disse:

    Muito para estudar e aprender!

  4. André Oliveira disse:

    Tem que rir pra não chorar a uma matéria dessas, a China além de ser muito mais liberal economicamente que o Brasil, é um país muito mais competitivo e que estimula a competição no trabalho, se caso discordarem do meu argumento eu deixo uma pergunta, gostariam de trazer o modelo Chinês para o Brasil ? Pensem bem em sua resposta.

  5. Hell Back disse:

    Só se cura uma gripe depois de uma forte febre. Com a Economia acontece uma coisa semelhante. Para acabar com uma grande crise econômica deve-se aprofundá-la ainda mais. Os que sobreviverem sairão mais fortes da crise.

  6. Amanda disse:

    Esses 2 estão dando o que falar. Excelente matéria, Parabéns!

  7. Eleuterio Prado disse:

    A China tem apenas uma alternativa de curto prazo. A sua estratégia pode até funcionar para enfrentar os Estados Unidos. Mas como essa política é tão genocida em potencial quanto a da norte-america, não só ela, mas o mundo como um todo está frito.

  8. Rafael F Ferreira disse:

    O maior problema do Brasil é o brasileiro, pois em tudo quer dar um “jeitinho”. No momento a melhor opção para o país é o livre comércio.

  9. Joma disse:

    O grande problema dos brasileiros, é que nem são nem podem ser como os americanos, nem podem ser como os russos, nem ser como os chineses… mas os da extrema-direita(bolsonaristas) querem ser como os americanos; e os da extrema-esquerda(petistas e outros), alguns querem ser como os russos, outros querem ser como os chineses.
    Há que assumirmos que não queremos imitar nenhum país, nem imitar as políticas de outro país. Queremos ter a nossa própria personalidade… sermos uma grande nação unida e insubmissa, que quer viver em democracia, sem autoritarismos nem desigualdades.
    O Povo tem que ser unido e não permitir autoritarismo e corrupção.
    O Povo tem que saber ir para as ruas, não para apoiar cores políticas, mas sim para apoiar o Brasil e fazer com que os políticos estejam sempre alinhados com os eleitores.

    O Brasil necessita que o Bolsonaro renuncie rapidamente ao seu mandato presidencial.
    A exemplo de Jânio Quadros, que apresentou a sua renúncia em 25 de Agosto, o Bolsonaro deveria seguir o mesmo rumo… a renúncia em 25 de Agosto.
    Que ao Bolsonaro não lhe falte a coragem da renúncia!

    Mas não queremos políticos e/ou outros cidadãos acusados por crimes a serem eleitos; políticos acusados de qualquer crime tem que obrigatoriamente demitir-se; cidadãos já condenados por qualquer crime não podem ter acesso a um cargo político ou público; etc.

  10. É da cultura chinesa, não dar passo em falso.
    Sendo quê, a probabilidade de falha é praticamente zero.
    Alguém tão despreparado como Trump, é tudo que interessa à China, um inocente útil.

  11. JORGE disse:

    Contra os FATOS (de verdade!), fica quase impossível argumentos.
    Exatamente por isso, o brazil é a maior vítima e hoje o maior consumidor de notícias falsas (FAKE NEWS)!
    A classe mérdia do brazil, mostrou-se (mais uma vez), IDIOTA e BOÇALnaro!

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