Simples e suave coisa, suave coisa nenhuma
Publicado 20/02/2018 às 16:57 - Atualizado 25/06/2019 às 12:07
Um casal em situação de rua, abraçado, numa noite de chuva, brinca com um bicho de pelúcia, num gesto tão puro e singelo de amor. Como se aquela fosse sua resposta a uma sociedade tomada de ódio que legitima violências do Estado contra pessoas vulneráveis
Crônica de Luiza Sansão
Não dava pra tirar uma foto, mas aquela cena ficou guardada na minha cabeça até o momento em que, deitada pra dormir, ainda me emocionava com sua lembrança. Somente no dia seguinte consegui fazer uma foto tímida de seus protagonistas — que permaneciam no mesmo lugar.
Passando pelo Arco do Teles, no Centro do Rio, por volta das 18h15 desta segunda-feira (19/02), depois de sair do trabalho, um casal em situação de rua — que eu havia visto dormindo abraçado e profundamente na hora do almoço —, brincava, ainda abraçado e, agora, sorrindo, com um bicho de pelúcia.
Ela balançava o bichinho e falava com uma voz infantil, como se fosse do bichinho — como fazemos quando somos crianças. Ele sorria e também segurava o bichinho. Aquele pedacinho da travessa que leva à Ouvidor protegia os dois da chuva, que eles ignoravam, juntinhos sob um cobertor.
Vi isto por uma fração de segundo, apenas — para não constranger o casal observando um momento tão íntimo. E tão simples. Tão doce. Tão bonito.
À noite, depois de assistir com meu marido e me emocionar com o filme “Eu, Daniel Blake” — que provoca uma reflexão tão profunda sobre as diversas violências do Estado contra seus cidadãos —, veio de novo a cena do casal. Cena que, como na música “Amor”, da banda Secos & Molhados, é, a um só tempo, “simples e suave coisa, suave coisa nenhuma” — como é mesmo o sentimento-título, por assim dizer.
Um homem e uma mulher negros, deitados na rua, abraçados, numa noite de chuva, brincando com o bicho de pelúcia, num gesto tão puro de amor. Como se aquela fosse sua resposta a uma sociedade tomada de ódio que legitima violências praticadas pelo Estado contra pessoas em situação de miséria. Uma demonstração de que o amor, além de “um descanso na loucura” — como escreveu Guimarães Rosa —, é também uma forma de resistência.
Inevitável chorar — é o “sentimento do mundo”, de Drummond. Importante adormecer com as lágrimas e, ao despertar, erguer-se com a mesma vontade de sempre de “mudar o mundo” — acreditar que isso é possível, nem que o combustível às vezes seja a imagem de um casal em situação de rua que brinca com um bichinho de pelúcia no Arco do Teles e sorri.
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Que bela crônica de uma cena de amor numa cidade cindida por rancores, ódios e preconceitos! Louvo os olhos da autora por conseguir vislumbrar a amorosidade em meio a esse nevoeiro.
Belo, verdadeiro, tocante.
«(…)a lágrima clara sobre a pele escura, a noite, a chuva que cai lá fora…», essa canção chegou doída, cheia de ternura.
Infelizmente em 2020 com a covide parou o mundo e
mudou a vida também da população. Obrigado pela
informação estou compartilhando no meu twitter, pois o
artigo é útil para todos.
Poxa até que fim encontrei o artigo que estava precisando
e ajudou muito. Infelizmente na internet e no youtube
não encontrei bons conteúdos sobre esse assunto.
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