WikiFavelas: A memória construída a partir das casas

Dicionário de Favelas Marielle Franco apresenta projeto de história oral de uma comunidade da Baixada Fluminense. Pesquisadores registram como foi a construção e convivência nas moradias, recompondo a memória coletiva do lugar

Foto de Paulo Barros.
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Por Mauro Amoroso (professor associado da FEBF/UERJ e presidente da ANPUH-RJ), com participação de Juliana de Abreu, Paula Noronha, Juliana da Silva, Nathalia Knopp e André Amorim (FEBF/UERJ).

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No último dia 29 de agosto de 2022, a Lei Federal n.º 12.711 de 2012, mais conhecida como a Lei de Cotas para o ensino superior, completou dez anos. Muito antes disso, no ano 2000, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi pioneira na reserva de 50% de suas vagas para estudantes da rede pública municipal, seguida da destinação de 40% de suas vagas para estudantes autodeclarados negros já a partir de 2001. Se o acesso à universidade pública se democratizou no Brasil das últimas décadas, a UERJ é parte fundamental dessa história. E não apenas do ponto de vista de sua composição: desde 1988 a Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ), Unidade Acadêmica da UERJ na região, dá concretude aos esforços de interiorização do ensino superior no estado, agregando valor, cultura e simbolismo a uma das regiões mais periféricas do país. Sim, favela tem memória. A universidade também. E é em reconhecimento a essa potente união que a Wikifavelas abraçou o desafio de registrar e disponibilizar ao público, de forma integral, as entrevistas de um importante projeto sobre moradia e memória, desenvolvido pela FEBF/UERJ, na favela de Vila Operária, em Duque de Caxias, sob a liderança do professor e presidente da seção Rio de Janeiro da Associação Nacional de História, Mauro Amoroso (FEBF/UERJ). Com a palavra, o prof. Mauro:

“Existem diferentes formas de narrar o passado, sendo a História, aquela feita sobre bases científicas e não-negacionistas, uma delas. Uma outra seria a memória. Ao longo do tempo, diferentes pensadores têm refletido sobre o que é, como se dá e quais os significados do lembrar. Ele pode ser visto como uma faculdade inerente a qualquer pessoa, como escreveu o antropólogo francês Joël Candau. Mas os indivíduos não são seres que vivem de forma isolada, muito pelo contrário: eles constroem suas perspectivas, formulam e reformulam seus interesses e identidades a partir de interações sociais. Ou seja, a memória é um processo que ocorre dentro de um grupo e possui elementos que são compartilhados pelos seus membros, resultando em uma memória coletiva – conforme uma longa tradição de estudos inauguradas pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs. E isso não ocorre de forma simples. O convívio em sociedade constantemente envolve conflitos e choques de diferentes interesses. Como não podia deixar de ser, isso afeta essas lembranças socialmente compartilhadas. Um tipo de manifestação desse impacto pode se dar através do apagamento e do esquecimento. Um exemplo, os livros didáticos são uma importante forma de construir uma memória coletivamente compartilhada, mas quantas vezes as favelas do Rio de Janeiro figuraram em suas páginas? Pois é, esse é um dos vetores que explicam como as favelas estão ausentes de uma memória oficial, mesmo em se tratando de uma cidade repleta delas.

Mas isso não significa que seus moradores não possuam memória. A psicóloga Ecléa Bosi chama atenção para o quanto os acontecimentos cotidianos do nosso dia a dia são importantes nas nossas lembranças. E eles podem ser, e em grande parte são, compartilhados por um mesmo grupo, mostrando-se fundamentais para construirmos nossa identidade e criarmos vínculos com nosso próprio passado. Nessa linha de raciocínio, Bosi fala em “objetos biográficos”, que são aqueles que envelhecem junto com a gente e contam sobre nossa trajetória individual e familiar. Imagine, então, as casas construídas pelos nossos pais, ajudados pelos seus vizinhos, nas quais crescemos e moramos e as quais visitamos, ao longo de toda uma vida? Esse processo coletivo de construção das moradias nas favelas é importantíssimo para entender suas residências como objetos biográficos para grupos familiares e de vizinhos. Mais que isso, são formas materiais de sobrevivência da memória desses locais, em um contexto no qual uma parte considerável da cidade gostaria de apagá-la. Daí a importância de se estudar como essas casas foram construídas, não só para entender esse processo, mas para preservá-lo. Desse modo, a mesma cidade que possui seus lugares de memória deveria olhar mais para as suas margens de memória.

Vila Operária é uma favela que fica em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Sua ocupação começou na metade dos anos 1950, coordenada por José de Jesus Barbosa, importante liderança local que chegou a ocupar uma cadeira na câmara dos vereadores. Sim, a Vila é praticamente uma “senhora”, mas que do alto de seus respeitáveis 70 anos está sempre aberta para o novo, afinal, empresta suas ruas e vielas para a realização de um dos maiores festivais de grafite do mundo: o Meeting of Favela, também conhecido como MOF. Nesse dia, os moradores que quiserem podem ter suas casas enfeitadas por grafites fantásticos, e a festa toma conta da favela. Quem sabe você não vai lá um dia?

Bem, se for, vai conhecer pessoas com histórias de vida maravilhosas, marcadas pela luta e pelo orgulho do que conquistaram. Gente como a Dona Maria Luísa Brandão, que pouco depois da Vila Operária ser fundada, sem contar ao marido, deu um pulo lá, pois ouviu que lotes estavam sendo oferecidos. Ela não apenas aceitou, como arranjou sua casinha e levou o marido a tiracolo, deixando claro que ele “não poderia reclamar, pois era melhor que saíssem do aluguel”. Tive a honra de conhecer essa e outras fortes mulheres através da minha pesquisa “Memória, propriedade e moradia: usos políticos do passado, legitimação da permanência e valorização social em uma favela de Duque de Caxias”, financiada pela Faperj. Nesse projeto, procuro justamente ouvir os moradores mais antigos contando a história da construção de suas casas. Afinal, a casa da favela tem história, assim como as favelas são parte fundamental da História de todas as cidades – por mais que os livros didáticos não costumem ligar para elas. E agora, além de um livro e um documentário, esses personagens terão suas histórias registradas no Dicionário de Favelas Marielle Franco (Wikifavelas), essa maravilhosa iniciativa abrigada pela Fiocruz e coordenada pela professora Sônia Fleury, a quem muito agradeço pela parceria. Explore o verbete sobre a pesquisa e leia mais sobre como essas pessoas vieram para a Baixada Fluminense, como faziam para ganhar a vida e como, com muito orgulho, passaram a ver seus filhos e netos ingressando na faculdade, e de fato conseguindo a condição almejada por seus antepassados que ali chegaram. Tudo isso contado a partir de suas casas, como foram construídas e sendo modificadas ao longo de todos esses anos.

Acessando o verbete Vila Operária (pesquisa), reproduzido abaixo, você poderá conhecer pessoas incríveis que com muito carinho nos abriram suas casas e suas memórias. Dona Djanira por exemplo, infelizmente se tornou uma grande saudade para quem a conheceu, mas como cada uma das casas que ela planejou para seus filhos foi se tornando realidade, isso está registrado e acessível para você. Assim como as histórias de Manuel Cândido, da dona Maria Cecília, de Paulo Breder e de todas e todos que colaboraram com nossa pesquisa, contando sobre suas vidas e como construíram suas moradas. Mas não deixe de aparecer lá pela Vila Operária, o MOF é um evento incrível, e o cafezinho com bolo e sorriso da dona Maria Luísa fazem a visita valer o triplo. Esperamos vocês!” (Introdução: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco)

Vila Operária (pesquisa)

Autor: Mauro Amoroso

O presente verbete faz parte da pesquisa: “Memória, propriedade e moradia: os usos políticos do passado como luta pelo direito à cidade em uma favela de Duque de Caxias” desenvolvida pela UERJ-FEBF (Faculdade de Educação da Baixada Fluminense). Coordenada por Mauro Amoroso, a pesquisa é composta por alunas e alunos da graduação, são eles: Juliana de Abreu, Paula Noronha, Juliana da Silva, Nathalia Knopp e André Amorim. A Vila Operária é uma favela localizada no município de Duque de Caxias situada no 1° distrito na Baixada Fluminense. O processo de ocupação e formação da favela ocorreu através de um processo contínuo de luta dos moradores de uma forma política e coletiva.

Favela Vila Operária, pôr do sol registrado pelas lentes de Lu Brasil

História da Vila Operária

A Vila Operária é uma favela cujo surgimento se dá entre o final dos anos de 1950 e 1960, por meio de uma ocupação de terras que pertenciam a Genack Chadrycky. A ocupação é ligada ao loteamento promovido por atores políticos locais, e a organização de seu movimento associativo contou com a participação de militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB). Foi um período de disputa de territórios entre os moradores e donos legítimos, e também entre as lideranças políticas. A maior parte dos moradores veio de regiões do Nordeste, e também Sudeste, muitos moravam no interior e vinham em busca de melhores condições de vida. Chegando no Rio de Janeiro, relatam que se depararam com algumas dificuldades em relação a trabalho e moradia, encontrando na favela uma solução, um local para residir. Muitos dos moradores conseguiam trabalhar como feirantes, vendedores, comerciantes, empregadas domesticas, cuidadoras de crianças (babás) e de idosos, serviços gerais, obreiros, e também explicadoras. A partir do uso da metodologia da história oral, pretende-se traçar a trajetória de construção e consolidação de moradias locais, e procurar entender as estratégias utilizadas pelos moradores, a partir da memória dessas mesmas trajetórias, para garantir acesso à permanência bem como para o alcance a diferentes bens de infraestrutura urbana e serviços diversos. Sendo assim, pretende-se construir compreensão das formas de atuação dos moradores como sujeitos políticos locais.

Os depoimentos

Em seus depoimentos, os moradores contam em detalhe como foram suas trajetórias de migração, quais foram as suas motivações, as experiências e dificuldades vividas ao chegar no Rio de Janeiro. Contam como a Vila Operária surgiu e quais lideranças políticas estavam envolvidas, como era a favela na época e como foi a experiência de construir uma residência de alvenaria e habitar aquele espaço lidando com a precariedade e a falta de saneamento básico, luz e transporte. Contam como funcionava a associação de moradores, como eram as escolas, igrejas e os eventos coletivos, por exemplo: festas e ações beneficentes. Também relatam as mudanças que o local sofreu ao longo dos anos. As entrevistas contêm informações importantes sobre a construção histórica daquele espaço antes inabitado, e qual o significado afetivo que os moradores atribuíram a ele.

Para acessar os depoimentos e as transcrições dos moradores na íntegra, clique nos links abaixo:

  1. Depoimento – Manuel Cândido – acesse clicando aqui
  2. Depoimento – Maria Luisa Brandão – acesse clicando aqui
  3. Depoimento – Suelene Ferreira Santos – acesse clicando aqui
  4. Depoimento – Maria Cecília – acesse clicando aqui
  5. Depoimento- Paulo Breder – acesse clicando aqui
  6. Depoimento- Maria Elena – acesse clicando aqui

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