O modernismo a contrapelo – em exposição e livro

“Era uma vez o moderno”, aberta até 29/05 em SP, é oportunidade única de apreciar obras icônicas e centenas de documentos inéditos. Para curadores, exame de cartas e jornais da época permitiu tecer narrativa viva que dá voz aos protagonistas

Tropical (1917), de Anita Malfatti
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Por Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner em entrevista a Maurício Ayer

Até o dia 29 de maio, quem estiver em São Paulo tem a oportunidade de apreciar um conjunto muito representativo de obras artísticas e documentos relativos ao modernismo brasileiro, em grande parte mostrado pela primeira vez ao público em geral. O material foi estudado, selecionado e organizado pelos professores e pesquisadores Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner, que concedem entrevista exclusiva, publicada em vídeo a seguir.

Além de pinturas, esculturas e desenhos, a exposição apresenta cartas originais manuscritas por Mário de Andrade, Anita Malfatti, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Carlos Drummond de Andrade entre muitos outros protagonistas desse período crucial da história cultural brasileira, além de jornais da época, primeiras edições de livros, artes de capas e objetos pessoais. Grande parte desse material até agora só havia sido visto por pesquisadores especializados que, em seu trabalho, visitaram o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), que reúne a maior documentação do modernismo brasileiro.

Documentos originais, na exposição Era Uma Vez o Moderno [1910-1944]

Trata-se da exposição “Era uma vez o moderno”, que ocupa todo um andar do Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo. A entrada é gratuita. O projeto inclui ainda a edição de um livro pelo SESI-SP, ilustrado com dezenas de imagens, cujo título é o mesmo da exposição, mas que é muito mais do que um catálogo. É uma obra historiográfica de referência, que constrói uma narrativa original do modernismo nas artes brasileiras, a partir do exame de farta documentação, com destaque para os jornais de época e a mencionada correspondência. O principal manancial de informações e objetos analisados, degustados e digeridos através da exposição e do livro foi o acervo de Mário de Andrade, que encontra-se sob a guarda do IEB/USP.

Capa do livro Era uma vez o moderno (SESI-SP Edições)

Um fato que se evidencia na exposição e no livro é que os curadores/autores procuraram deixar que os personagens dessa história falassem por si, sem impor uma tese ou narrativa prévia que fosse imposta à força sobre os fatos. Fabrício Reiner destaca que “[a gente] queria justamente mostrar para o público que existia alguma coisa que era construída na medida em que as coisas iam acontecendo. Essas pessoas, eles são personagens mas eles são históricos, eles têm a sua função e agem de acordo com o que está acontecendo naquele momento”. É certamente essa sensação de acompanhar uma história viva, feita de decisões, acertos e erros, de realizações e fracassos, no calor dos momentos e na frieza das decepções, que temos ao ler o livro.

Importante esclarecer que, embora evidentemente aconteça no contexto das celebrações do centenário da Semana de 1922, “não é”, segundo Luiz Armando Bagolin, “uma narrativa sobre a Semana de Arte Moderna. O que a gente entende é que a Semana é um episódio entre muitos outros antes de [19]22 e outros após 22. Reunidos, eles são tratados pela história pela oficial no singular, como a história do modernismo brasileiro. Então, através dessa pesquisa, a gente tentou mostrar várias coisas, e uma delas foi que não houve um só modernismo, mas um conjunto de iniciativas, umas bem-sucedidas, outras menos. E a Semana foi uma dessas iniciativas”. Bagolin explica que a Semana foi bem-sucedida do ponto de vista não do que foi apresentado – as obras propriamente apresentadas eram pouco radicais do ponto de vista do adjetivo moderno ou modernista –, mas como um evento performático coletivo (que não foi o primeiro, foi o segundo: o primeiro aconteceu um ano antes, o almoço no Trianon, descrito em detalhes no livro), unindo várias linguagens – artes plásticas, literatura, música, estética – e que teve um impacto do ponto de vista do que chamaríamos hoje de “marketing”.

Outro ponto abordado nesta entrevista foi o papel central que teve Anita Malfatti, que muitas vezes é tratada como uma “precursora”, mas de importância secundária. Fabrício Reiner, na contracorrente desta opinião, afirma que “Anita [Malfatti] é a artista principal desse modernismo brasileiro, não só pelo seu pioneirismo mas porque ela passou por diversas vanguardas e as incorporou de maneira muito marcante”. Eles destacam ainda que, na própria Semana de 22, das 100 obras expostas, 25 eram de autoria de Anita.

Segundo os curadores, o recorte temporal estipulado é arbitrário e explicita mais a datação dos materiais que deram substância à narrativa exposta do que a uma proposta de delimitação de um começo e um fim para o modernismo brasileiro. O início escolhido, 1910, diz respeito à exposição da artista alemã Emma Voss, fato pouco conhecido do público e que já começa a deslocar nossas impressões estabelecidas sobre o período.

Manuscritos expostos em Era Uma Vez o Moderno [1910-1944]

E a conclusão em 1944 se deve à data do mais tardio documento incluído na pesquisa, uma carta escrita (mas nunca enviada) por Mário de Andrade para Manuel Bandeira, em que ele manifesta um profundo cansaço, uma melancolia que o incapacitava a produzir – e ele conclamava o amigo a fazer “poemas de circunstância”, de intervenção e sátira política, para remexer ainda que um pouco a sociedade brasileira, então sob a ditadura do Estado Novo, no depressivo contexto da Segunda Guerra Mundial. “Você, que devia [escrever estes poemas], Manu, e sinto saudades de você. Você, não será a primeira vez que faz ‘poemas de circunstância’ e que delícias já fez. Destrua, m’ermão, envenene, pra eu não me sentir tão solitário de companheiros de geração. Aguenta este namoro e me queira sempre bem”, dizia a carta de Mário que Manuel Bandeira nunca leu.

Para desvendar algumas dessas histórias, Outras Palavras entrevistou os curadores da exposição e autores do livro. Luiz Armando Bagolin é filósofo, docente e pesquisador do IEB/USP, foi diretor da Biblioteca Mário de Andrade (a principal biblioteca municipal de São Paulo) de 2013 a 2016, e é pesquisador e curador de artes visuais; Fabrício Reiner é graduado em história e mestre em filosofia pela USP, foi supervisor de planejamento da Biblioteca Mário de Andrade e participou de diversos projetos acadêmicos junto ao IEB/USP, onde desenvolveu pesquisas na área de história das artes. A conversa aconteceu na (gélida) noite de 19 de maio de 2022 e foi transmitida ao vivo pelas redes sociais.

A entrevista

Esta entrevista foi realizada como parte do projeto Ateliê da Palavra – Expresso 22-22, concebido por Maurício Ayer e Patrícia Ceschi e produzido pela Aymberê Produções Artísticas, em parceria com Outras Palavras. O projeto foi contemplado pelo ProAC editais 21/2021 do Governo do Estado de São Paulo.

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Exposição Era uma vez o moderno  

Período expositivo: de 10 de dezembro de 2021 a 29 de maio de 2022.   

Horários: de quarta a sexta, das 12h às 20h, e sábado e domingo, das 11h às 20h.   

Local: Galeria de Arte do Centro Cultural Fiesp.  

Endereço: Avenida Paulista, 1313 (em frente ao Metrô Trianon-Masp)   

Entrada gratuita.   

Agendamento de visitas em: www.sesisp.org.br/eventos   

Agendamentos escolares e de grupos: [email protected]   

Mais informações: www.centroculturalfiesp.com.br  

Livro Era uma vez o moderno

Autores: Luiz Armando Bagolin e Fabrício Reiner

Onde comprar: na livraria do Centro Cultural Fiesp ou no site da SESI-SP Edições

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2 comentários para "O modernismo a contrapelo – em exposição e livro"

  1. Eliane Accioly Fonseca disse:

    Muito bom o site, a matéria veiculada por ele.

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