A fala de Zema e gênese do pavoroso sertão

Em 1923, série de artigos publicada no Estadão cristalizou os preconceitos sobre o Nordeste. Xenofobia dos textos alude a “inferioridade da raça” e “miséria habitual” e dialogam com o que havia de mais racista no Brasil do século XX

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Por Octávio Santiago, na Piauí

Já se formava uma fila na Estação de São Bento, na cidade do Porto, quando me dei conta de que deveria ajudá-la. Os comandos da máquina de autoatendimento pareciam confundir em vez de orientar a atrapalhada senhora naquela gélida manhã de novembro em Portugal. Pedi licença e a auxiliei a tirar o bilhete do trem. Ela devolveu palavras de gratidão, mas que ecoaram para além dos azulejos da estação:

– Você não é daqui, não é? –, perguntou.

– Não, sou de Natal.

Ao que ela treplicou:

– É mesmo? Nossa! Mas você não tem cara de nordestino!

A senhora brasileira não sabia, mas acabara de me ajudar num dilema que havia dias aperreava o meu sono: como iniciar a apresentação de meu projeto de tese.

A Universidade do Minho, em Braga, distante 55 km do Porto, era o meu destino naquela segunda-feira, com o objetivo de expor a pesquisa em curso, justamente sobre a origem do preconceito contra o povo do Nordeste – esse que sou, mas cuja “cara” não tenho.

Esse preconceito, que é histórico, muitas vezes recalcado pelo povo do Sudeste e do Sul, reemergiu com toda força nas recentes declarações do governador Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais. Ele defendeu a união de estados do Sudeste e do Sul frente ao Nordeste e ao Norte, alegando que os primeiros produzem mais riqueza para o país que os segundos, que, porém, obtêm mais vantagens junto ao governo. A sugestão de Zema foi acompanhada de uma avalanche de reações de indignação por resvalar para o separatismo.

Horas depois do meu encontro na estação, meu projeto foi aprovado na universidade, com a orientação da professora e pesquisadora Rosa Cabecinhas, que escreveu certa vez num artigo: “Os estereótipos nunca são neutros.” Se a rotulação de nossa aparência persiste e atravessa o tempo e o espaço – chegou a Portugal, veja você –, de onde partiu esse arrasamento social e a que interesses atendeu? Alguém definiu o homem do Nordeste e fez isso de modo depreciativo, em alto e bom som, para que a pecha ainda servisse muitos anos depois. Talvez cem anos depois. Ou exatamente cem anos depois.

Na Pauliceia recém-enamorada da indústria, da urbanização e do modernismo, o jornal O Estado de S. Paulo publicou em agosto de 1923 as Impressões do Nordeste, título de uma série de artigos matutados pelo médico sanitarista Paulo de Moraes Barros, após uma “expedição” de 32 dias àquela porção do Brasil, chamada por ele, logo de cara, de “terra do sofrimento”. O intento inicial do articulista era apenas lançar luz sobre as obras que visavam amenizar a seca na região recém-batizada: portos, açudes e estradas de ferro, bancadas pela União desde o fim dos anos 1910.

Com o patrocínio da Sociedade Rural Brasileira (enfatizado no subtítulo de cada artigo), criada com o propósito de fomentar o agronegócio do país, leia-se o café, Moraes Barros seguiu de barco até Recife, de onde acessou o interior pernambucano e cidades da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. A “expedição”, como escreveu o emissário, “era desejo do supremo magistrado da nação, para que fosse informado ao país” sobre os investimentos feitos na terra dos “esquálidos retirantes”. 

A série rendeu quatro longos artigos – a reprodução de conferências realizadas no Club Commercial –, publicados em dez edições do jornal que naquele tempo ostentava a maior circulação do Brasil. São linhas e mais linhas das piores impressões sobre o Nordeste e, sobretudo, sobre o seu povo, que desde os artigos de Euclides da Cunha no mesmo jornal em 1897 não era vítima de tamanho reducionismo. A novidade era o Nordeste enquanto recorte espacial. Até então, falava-se de um Norte, vago, que abrangia tudo o que estivesse acima do que hoje se entende como Sudeste. Agora existia o Norte e, dentro dele, o Nordeste.

Já no texto de estreia, em 10 de agosto, o homem da nova região é tratado por Moraes Barros como fruto de uma “Babel de sangue deprimida”, na qual uma gente “supersticiosa”, “fatalista” e “indolente”, que “vive de farinha e rapadura” e “vegeta por contemplação”, sobrevive, “com o espírito sempre voltado para o seu pequenino mundo desolador”. Claramente afetado pelo naturalismo de Euclides da Cunha e guiado pelas teorias eugenistas que pautavam a ciência na época, Moraes Barros enxerga o “outro” como antítese, e separa a terra do homem, para que possa compartilhar com os compatriotas do Sul as suas sinceras impressões a respeito dos “bípedes” – sim, essa é a palavra usada nos textos – que habitam o tal Nordeste do Brasil. 

Assim como em Os Sertões, as Impressões de Moraes Barros publicadas pelo Estado de S. Paulo avançam primeiro sobre características gerais, geográficas e hidrográficas, para então adentrar o mérito da “formação étnica”. Ainda no início, fala em “poupar o Nordeste de julgamentos prévios”, mas não hesita em discorrer de modo hostil, assumindo o racismo e o determinismo geográfico como bússola: “Essa população, genuinamente nacional, é ainda amálgama informe de cruzamentos entre brancos, pretos e aborígenes, em todos os graus de sub-mestiçagem. […] Há muito preto retinto e ainda mais embaçado; muito branco alourado, de olhos azuis, assim como moreno, de nariz grego ou romano, traindo origem europeia, muito índio legítimo, de tez requeimada e cabelos corredios de azeviche. Também há muito mulato sem cor, muito cabra disfarçado […]. Claro, muito bugre sem raça, como muito branco tostado.”

Foi, aliás, uma encomenda de O Estado de S. Paulo que levou Euclides a Canudos, acompanhando uma expedição militar ao povoado, em 1897. A jornada rendeu uma série de artigos maltratantes com relação à população local que serviu de base, após abrandamento, à escrita de Os Sertões, publicado em 1902. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, escreveu Euclides, mas acrescentou que “o mestiço é um decaído, sem a energia física dos ancestrais selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores”.

Na segunda conferência de Moraes Barros, que o jornal publicou em duas partes, em 15 e 16 de agosto, o médico sanitarista volta a desembestar sobre a “raça” do homem do Nordeste e o “movimento regressivo” que por si só representa. Ele escreve: “Patente a sua degeneração, que se afirma em taxa progressiva, quer considerada pelo lado físico, quer pelo intelectual.” Chega a pontuar os quatro “elementos básicos da degeneração” do nordestino, a saber: “O cruzamento de indivíduos de raças extremas; a miséria habitual, agravada pelo flagelo periódico; o clima quente, sem o ambiente moderador da vegetação; e as moléstias endêmicas.”

Nessas linhas de enjeitamento da segunda conferência, a descrição física dos que habitam o Nordeste ganha mais corpo, com o requinte de quem tem disposição intelectual para arrasar a sua gente: “O homem é geralmente pequeno e descarnado, com tendência à fixação de esqueleto defeituoso, como normal, sobretudo da ossatura torácica, cervical e craneana. A mulher, raramente atraente, envelhece precocemente pela prematura concepção e excessiva prolificidade, não sendo raro ter mais de quinze filhos e, como resultado, a decrepitude aos 40 anos.”

A reprodução desse trecho durante a apresentação do meu projeto pareceu convencer a banca do doutoramento em ciências da comunicação da Universidade do Minho de que a pesquisa que eu propunha tinha sustância e poderia render frutos proveitosos. Minha missão não era inferir ou apreender o dito nas entrelinhas: tudo estava escancarado, de modo palpável, sem eufemismos ou disfarces. O olhar piedoso das professoras presentes foi quase a certeza do ansiado “sim”.

Mas, voltando a Moraes Barros, é como diz aquela frase de origem incerta: “Não há nada tão ruim que não possa piorar.” É na segunda conferência que os escritos dialogam de maneira íntima com o que havia de mais racista no Brasil do início do século xx: a promoção do branqueamento da sua população, cujo movimento maior foi o incentivo agressivo à imigração de trabalhadores da Europa. O remédio é também receitado pelo médico sanitarista: “Faz-se mister que, ao par das grandes obras, que assegurarão a labuta sadia e remuneradora, se faça naquelas populações depauperadas injeção consentânea de sangue restaurador, europeu”, sob pena de acontecer “o completo abastardamento étnico da região.”

 “A mestiçagem era tratada como uma raça impura, degenerada, atrasada e indolente”, diz Marlon Marcos Vieira Passos, doutor em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), que pesquisa a formação étnica do Nordeste. “O nordestino era majoritariamente negro ou mestiço. A visão era a da supremacia branca, como se houvesse uma Europa dentro de São Paulo, que não existia no Nordeste do país.”

Autor do livro A Invenção do Nordeste, o professor e historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. explica que o termo “Nordeste”, usado para designar a região, apareceu pela primeira vez em um documento público em 1919, quando da criação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (Ifocs), como ressalta o próprio Moraes Barros. O órgão foi instalado durante o governo do presidente Epitácio Pessoa (1909-10) para realizar obras que amenizassem a estiagem nos estados.

Moraes Barros foi convidado a visitar justamente esses locais. Ele conta que partiu do novo presidente, o mineiro Artur Bernardes (1922-26), o telegrama etiquetado como “urgente”, para que a sua “expedição” acontecesse de imediato, com ordens específicas do Executivo para que informasse o Brasil sobre as dispendiosas intervenções feitas na região.

Albuquerque Jr. lembra que o tempero dessa história era a disputa inter-regional que seguia em andamento, com o confronto bem aquecido entre as elites ascendentes do Sudeste e as que estavam em falência no Nordeste, como os senhores de engenho de Pernambuco, que viram seu prestígio político encolher junto da economia do açúcar. “O Nordeste virou um centro de atenção porque era uma região cujas elites ainda disputavam a hegemonia nacional e todo o investimento recente feito pela União significava o remanejamento de recursos reivindicados pelo chamado Sul, que era o novo espaço de poder”, me explica o historiador. 

Elite nordestina, vale o registro, que não recebe qualquer citação nas conferências de 1923. Apenas a decadência econômica da região é citada e recitada nos textos, incitando à cisão entre “nós”, de São Paulo, e os “outros”, do Nordeste. Soma-se a isso as migrações em curso do Nordeste para São Paulo, onde se ampliavam as possibilidades de emprego graças à urbanização e à industrialização. Coincidentemente, foi também nas páginas de O Estado de S. Paulo que o governador Romeu Zema comparou o Nordeste-Norte com “vaquinhas que produzem pouco” e o Sul-Sudeste com “vaquinhas que produzem mais”. É uma variante do discurso de cem anos atrás.

A terceira e a quarta conferências, também publicadas no mês de agosto de 1923, aprofundam sobre as obras contra a seca, falando dos investimentos realizados e da capacidade potencial dos empreendimentos, que estavam atrasados quando da visita de Moraes Barros. O fenômeno da seca aparece como causa e consequência daquela “grandiosa e triste opulência da desolação” que é a paisagem geográfica e humana do Nordeste. Vieira Passos diz que se tratava de um projeto da época: o de reduzir a região à irregularidade de chuvas, tornando um problema climático maior que o drama de sua população. Essa perspectiva é reiterada por Moraes Barros, em suas recomendações para que as despesas da União sempre se pautem pela balança do razoável. Afinal, “tudo isso custa caro e muito caro, por ser feita em terra desprovida de recursos e, ainda mais, por ser o Brasil o seu tesoureiro”.

No primeiro turno das eleições presidenciais de 2022, apoiadores de Jair Bolsonaro publicaram nas redes sociais uma série de ofensas às pessoas do Nordeste, região onde Lula havia obtido a maioria dos votos. “Imbecil” e “jumento” foram alguns dos xingamentos usados. Os seguidores de Bolsonaro se sentem à vontade para esse tipo de tratamento, uma vez que o ex-presidente costumava se referir aos nordestinos como “paraíbas”. Em uma transmissão ao vivo pela internet, ele perguntou a Tarcísio de Freitas, então ministro da Infraestrutura e hoje governador de São Paulo, se ele tinha algum parente “pau de arara” – meio de transporte utilizado nos movimentos migratórios de nordestinos para o Sudeste nas décadas de 1930 e 1940. Após Freitas confirmar que tinha familiares no Nordeste, Bolsonaro acrescentou: “Com essa cabeça aí, você não nega, não.”

Uma investigação realizada na Universidade Federal do Paraná (UFPR) por Alice Lima, doutoranda em comunicação política, sob a orientação de Carla Rizzotto, professora de comunicação, examinou os discursos de teor racista e xenofóbico contra os nordestinos durante a campanha de 2022. As falas preconceituosas contra estrangeiros e pessoas de outras regiões do país foram as que mais cresceram nas redes sociais. Segundo levantamento feito pela Safernet, ONG que acolhe denúncias de crimes contra os direitos humanos na internet, houve um aumento de 821% com relação a 2021. “Os melhores antídotos contra essa prática são a informação e a desconstrução imediata das manifestações logo que acontecerem”, diz Lima. “As vozes de líderes políticos e formadores de opinião também são fundamentais nesse processo.”

No dia a dia, os preconceitos se difundem ainda hoje, incontroláveis. Por ter forte sotaque nordestino, mas ser loira, a bancária Lara Barros, de 39 anos, intrigou um grupo de paulistas que fazia um curso com ela fora do país. Uma das colegas chegou a afirmar que “não existem pessoas” com as características físicas de Barros no Nordeste. A afirmação preconceituosa demonstra desconhecimento sobre a história do Brasil e a formação da população nordestina. Além da presença portuguesa, que se deu em todo o território nacional, o Rio Grande do Norte, onde a bancária nasceu, foi ocupado por holandeses no século XVII. A cidade de Natal, inclusive, chegou a ser rebatizada de Nova Amsterdã durante esse período.

No Rio de Janeiro, durante a pandemia, a jornalista Gabriela Leal, de 36 anos, em uma das suas idas a uma feira no bairro de Botafogo, ouviu uma cliente reclamar dos nordestinos por causa da escassez de manteiga de garrafa. De nada adiantou a vendedora explicar que a crise sanitária estava atrapalhando a produção e a distribuição da iguaria vinda do Nordeste. A cliente inconformada disparou, buscando a cumplicidade de quem estava perto dela: “Mas esses nordestinos são muito preguiçosos mesmo, não são?” Leal não teria como concordar. Ela começou na labuta cedo, no comércio dos pais, entre as cidades de Natal e Recife. Mudou-se para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, onde trabalha dois expedientes e cria um filho de dois anos. A preguiça nunca foi um privilégio possível para ela.

A publicitária Mariana Gurgel, de 36 anos, participava da primeira confraternização do seu novo emprego, em São Paulo, quando o chefe pediu licença a todos para tecer elogios aos colaboradores da equipe. Na hora de falar sobre Mariana, destacou que a entrega dela ao trabalho fora para ele uma “grata surpresa”: “Mesmo você sendo do Nordeste, demonstrou muita competência.”

Surpresas como essa podem acontecer também no campo artístico. O ator e dramaturgo Henrique Fontes, de 48 anos, recebeu um elogio similar ao final da apresentação de uma peça. “Nem parece uma peça nordestina”, disse um espectador para a trupe, depois de uma exibição. Fontes é um dos atores da peça A Invenção do Nordeste, adaptada do livro do historiador Albuquerque Jr. pelo Grupo Carmim, formado por ele, Robson Medeiros e Mateus Cardoso. Apesar do trabalho quase pedagógico feito no palco, os atores passam por amargas experiências quando resolvem se candidatar a outras peças ou filmes. “Ao fazer testes, sobretudo para produções audiovisuais, ou você tem ‘sotaque demais’ ou ‘não é nordestino o suficiente’”, conta Fontes.

O tal “sotaque nordestino” é um dos elementos que cimentam a estereotipação do variado povo da região, como se o cearense falasse do mesmo jeito que o baiano, o piauiense de maneira igual ao pernambucano. Não se vê reducionismo similar quando se trata de paulistas, cariocas e mineiros, cujos modos de falar nunca são reduzidos a um só, genérico. Mesmo nas novelas e filmes, o erro sobre os nordestinos persiste há décadas. E há coisa pior: os produtos audiovisuais frequentemente escalam atores nascidos fora do Nordeste para interpretar o “nordestino de folhetim”, com sotaque e trejeitos tão falaciosos quanto ofensivos.

Recentemente, viralizou nas redes sociais um vídeo mostrando o jornalista Alan Severiano, que é de Natal, em dois momentos diversos da sua carreira. O primeiro de quando ele era repórter da TV Universitária, emissora educativa subordinada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O segundo de quando ele passou a apresentador substituto do Jornal Hoje. Severiano tem um sotaque diferente em cada vídeo. As consoantes “t” e “d” faladas do modo como são escritas (como, por exemplo, em “teatro”), prática comum do povo potiguar, dão lugar a chiados que não costumam ser ouvidos entre os seus conterrâneos (como na pronúncia “tchiatro”). As discussões inflamadas nas redes sociais ressaltaram como um sotaque neutro (mas nem tão neutro assim) é imposto aos não cariocas e não paulistas que conseguem chegar a uma grande emissora de tevê.

Se todas essas situações têm efeitos devastadores do ponto de vista humano e mesmo reputacional nos dias de hoje, quais não terão sido as consequências dos artigos de Moraes Barros em 1923? É todo um século durante o qual o povo do Nordeste foi sucessivamente tachado de inferior, submetido a anedotas e gracejos, em que a própria região, tão diversa entre si, foi tratada conjuntamente como um “pavoroso sertão”, para citar o médico sanitarista. São cem anos de perversa rejeição de parte do Brasil e de parte de seu povo.

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