Auschwitz: os portões da memória ainda abertos

Viagem ao campo de extermínio, 75 anos após a libertação. Estruturas, transformadas em museu, testemunham o horror nazista. A câmara de gás. Os restos de cabelos, dentaduras e sapatos. Um alerta contra os que minimizam a ameaça da ultradireita

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Início da década de 1940, Europa central. O território polonês, historicamente encurralado entre alemães e russos, estava invadido e controlado pela Alemanha Nazista. No sul do país, na voivodia da Pequena Polônia, a importante cidade de Cracóvia se diferenciava de centenas de pequenas cidades e assentamentos rurais bem distantes de Berlim, de onde emanavam as ordens do governo do Terceiro Reich. Vizinha da Silésia, essa região quase eslovaca, quase tcheca, quase ucraniana, deitada sobre a cadeia de montanhas dos Cárpatos e atravessada pelo Vístula, o maior rio polonês, entraria definitivamente para o mapa geopolítico da II Guerra Mundial.

Longe de Berlim, Moscou, Paris ou qualquer outra grande cidade europeia de meados do século XX, a Pequena Polônia era a região perfeita para materializar o projeto nazista de construção do maior campo de concentração e extermínio: era isolada e central. Sua localização bem no centro do continente permitia que para ali fossem enviadas milhões de pessoas de todos os territórios controlados pelo governo de Hitler e, com difícil acesso, permanecer um tanto escondida dos olhos de políticos, jornalistas e da população em geral. Era a região remota mais central da Europa.

A pequena cidade de Oświęcim – chamada pelos alemães de Auschwitz, nome que se popularizou no ocidente – a cerca de 60 quilômetros de Cracóvia, hoje com pouco menos de 40 mil habitantes, foi escolhida pelos nazistas para a instalação daquele que seria o maior campo de concentração. Auschwitz foi, na verdade, uma rede de campos constituída por Auschwitz I (sede administrativa), Auschwitz II – Birkenau (campo de extermínio) e Auschwitz III – Monowitz. Birkenau, que passou a nomear o matadouro humano, foi uma pequena vila no meio de florestas totalmente destruída pelos nazistas. Estima-se que entre 1,3 e 3 milhões de pessoas (este último o número do Julgamento de Nuremberg) foram executadas somente nesse sítio entre 1940 e janeiro de 1945, quando o local foi libertado por tropas soviéticas.

Dois anos após a libertação, o governo polonês transformou Auschwitz I e II num museu que já recebeu mais de 30 milhões de visitantes de todo o mundo, em busca de reencontrar histórias da própria família ou de conhecer mais sobre o que fora o holocausto. O mais interessante do museu, contudo, é a visitação que permite uma experiência que simula o tratamento sofrido pelas vítimas, com os locais e tipos de execução. Embora essa não seja uma experiência fácil (muitos visitantes desistem durante o percurso), ela ultrapassa a tradicional contemplação passiva que caracteriza os museus.

O caminho de Cracóvia até Oświęcim pode ser percorrido de trem numa viagem bucólica que dura cerca de uma hora e meia. No caminho, vilarejos rurais e campos de agricultura familiar, algumas paradas para embarque e desembarque e uma paisagem marcada por uma região e uma população economicamente pobres, para os padrões europeus. O próprio trem se diferencia bastante daqueles que levam, por exemplo, à capital Varsóvia. Alguns passageiros locais e outros que se dirigem à fronteira com a Eslováquia utilizam os vagões. A chegada em Oświęcim não tem surpresas: pequena estação, ruas pacatas, algum pequeno comércio, e uma fama de lugar mal-assombrado que parece agradar mais a turistas do que moradores locais. E sim, os muitos turistas, as filas enormes e os souvenirs típicos de lugares assim.

Em Auschwitz II – Birkenau, as construções foram conservadas, reproduzindo o ambiente sombrio onde foram executados judeus, ciganos, latinos, homossexuais, opositores do regime, entre muitos outros. Muros, cercas, postes típicos da época e um arruamento com casario que obedecia a uma divisão do trabalho: alojamentos, lugares de trabalho forçado, muros de execução, câmaras de gás, etc. O silêncio é a principal companhia dos grupos de visitantes, que conta com guias que falam diversos idiomas e os acompanha durante todo o dia na visita de seis horas.

Ali podem ser encontrados diversos objetos que pertenciam às vítimas do holocausto: roupas, calçados, óculos, objetos de higiene pessoal e também cartas. O museu não permite fotografar partes do corpo das vítimas, como cabelos e dentaduras, que também estão expostas para os visitantes. Brinquedos e objetos de crianças têm um destaque especial, com inúmeras bonecas e carrinhos dos pequenos assassinados. Muitas dessas crianças e alguns adultos também foram usados como cobaias para estudos em experimentos de procedimentos médicos e testes de novos medicamentos de diversos laboratórios alemães. Algumas mulheres eram forçadas a ficarem grávidas e darem à luz para estudos realizados nessa época, como as investigações científicas sobre gêmeos.

Dali para uma parada especial. O muro onde foram executados à bala dezenas de pessoas todos os dias, sendo que em muitos casos foram mortas famílias inteiras, com pais e filhos juntos. A guia pede um minuto de silêncio. Os visitantes não aguentam, todos choram; alguns em pavor desistiram de prosseguir o tour do horror ali mesmo. Um pranto mais comovido se escuta: era a própria guia polonesa que teve seu avô executado naquele muro quem cede às lágrimas.

Os alojamentos do campo eram estruturas insalubres de cimento, onde várias pessoas dividiam o mesmo lugar para dormir. Todas essas eram controladas constantemente desde uma torre de vigia que ficava na entrada da área, onde ainda pode ser encontrado os restos da ferrovia que trazia as vítimas do massacre.

De volta para o interior de um dos prédios, uma atividade igualmente comovente, onde é possível adentrar um corredor com fotografias de vítimas do extermínio e escolher uma delas para, a partir daí, passar por uma simulação da maneira como foi morto. Eu fui Stanisław Koza, um alfaiate polonês morto em 1942 às vésperas de completar 24 anos de idade, após passar um ano no campo de concentração. Ele foi executado numa câmara de gás, para onde fomos todos. A câmara foi fechada, numa escuridão total. Se só se via uma luz na parte superior, por onde uma cápsula da bomba é lançada por um funcionário do museu e a abertura fechada, causando um ruído angustiante dentro da câmara de gás. Ali se permanece por alguns minutos. Muito choro pode ser escutado e, na saída, a visitação está encerrada. Nenhuma palavra mais pronunciada.

Passados 75 anos da libertação do campo de concentração, a versão polaca da história, não somente disseminada pelo museu, mas largamente aceita (pelo menos no ocidente) começou a ser questionada por Vladimir Putin, interessado em criar uma narrativa compatível com os interesses de Moscou. Durante o Fórum Mundial do Holocausto, que ocorreu em Jerusalém no mês passado, o líder russo defendeu uma nova interpretação da deflagração da II Guerra, na qual os poloneses seriam igualmente culpados devido aos acordos firmados com a Alemanha na ocasião. O presidente polonês se recusou a participar da cerimônia, alegando ainda a invisibilidade com que têm sido tratados os mais de três milhões de poloneses mortos no holocausto, mesmo número dos judeus.

O Kremlin vem ressuscitando ideias do geopolítico inglês Mackinder, que em seu Geographical Pivot of History (1904) formulou a teoria do heartland. Segundo ele, quem controlasse o heartland, que corresponderia à Europa Oriental dominaria sobre a ilha mundial eurasiática, e assim dominaria o mundo. Alemanha e União Soviética foram as duas principais forças de controle e embate nessa região durante o século XX e por isso, segundo o próprio Mackinder, uma aliança entre esses países seria fatal para a hegemonia britânica no mundo. Essa disputa ocidente-oriente na região, que foi palco da Guerra Fria, se atualiza agora para uma relação conflituosa entre União Europeia e Rússia, tendo mais uma vez a Polônia, mas também a Hungria, a Tchequia e outros países da Europa centro-oriental encurralados nessa disputa. Além de ter anexado parte da Ucrânia (Criméia e porção oriental) na conjuntura de sinalização de entrada na UE por aquele país onde grupos financiados pelos EUA executavam uma série de protestos, a Rússia agora se opõe à entrada de Belarus e pratica vários boicotes a essa ex-república soviética. Moscou já havia categoricamente ensaiado conflitos com as três repúblicas bálticas – Estônia, Letônia e Lituânia – quando essas formalmente ingressaram ao bloco ocidental, que já conta com Polônia e quase todos os países centro-europeus do antigo Pacto de Varsóvia, não sem experimentarem todos os prejuízos advindos das sucessivas crises econômicas. A expansão geográfica da hegemonia ocidental-europeia parece estar saturada ou em seus últimos tempos.

Enquanto o mundo disputa quem foram os demais vilões e cúmplices da história, no Brasil a apologia explícita ao nazismo aparece dentro do governo Bolsonaro, algo que não surpreende, mas também chega ao cúmulo da exposição da suástica e bandeiras nazistas em escolas e outros espaços. Aqui chamá-los de nazistas não basta, termo tido por alguns como elogio. O exercício da memória deve ser uma ferramenta educativa na sociedade em sentido amplo, uma verdadeira arma política e geopolítica. Não deixaremos esquecidas as consequências do fascismo, nem jamais ocultaremos os desígnios dos seus seguidores.

Mapa de origem da população enviada para o campo de concentração de Auschwitz. Fonte: Museu Auschwitz-Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Chegada de trem na pequena cidade de Oświęcim, Polônia, onde foi construído o campo de concentração. Foto: Igor Venceslau
Fachada da estação de trem na pequena cidade de Oświęcim, Polônia, onde foi construído o campo de concentração. Foto: Igor Venceslau
Entrada do antigo campo de concentração Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Sapatos das vítimas do holocausto, expostos no museu Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Vestimentas das vítimas do holocausto, expostos no museu Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Fotografia de crianças vítimas do holocausto utilizadas em experimentos médicos, exposta no museu Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Muro de extermínio de vítimas do holocausto, no museu Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Corredor com fotografia das vítimas do holocausto, no museu Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Fotografia de alfaiate polonês vítima do holocausto, exposta no museu Auschwitz II -Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Recipientes de bombas de gás utilizadas em câmaras de extermínio, expostos no museu Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Vagão de trem utilizado para transportar prisioneiros do campo de concentração Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Vencesl
Lápide de homenagem às vítimas do holocausto, no museu Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Interior de alojamento do campo de concentração Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Vista panarômica do campo de concentração Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau
Linha do trem e torre de vigia do campo de concentração Auschwitz II – Birkenau. Foto: Igor Venceslau


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4 comentários para "Auschwitz: os portões da memória ainda abertos"

  1. Frederico disse:

    Tinha de enfiar os neonazistas aí, deixando-os nas mesmas condições por pelo menos um mês.

  2. Marco Garou disse:

    Meu Deus quase não consegui terminar de LER a matéria de tão incomoda, imagina quem visita o museu. Meus agradecimentos mesmo em português aos administradores desse museu, é essa experiência tão incomoda mesmo quase oitenta anos depois do ocorrido que talvez garanta que nunca mais isso se repetirá.

  3. Marco Garou disse:

    Se essa ultradireita que felizmente já acabou a 80 ANOS, ainda tem resquícios e consequências até hoje nas chagas dos crimes contra a humanidade, imagina a ultraesquerda que inventou os protótipos desses campos de concentração da Matéria como as GULAGS. E continua viva até hoje em países como Vitnãn, Gongo e Coréia do Norte… Preocupação mais urgente deveria ser com o ódio que não acabou, do que com aquele que felizmente existe só em museus por hora (e tomara que pra sempre).

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