Epidemias brasileiras e a prática de dizimar os povos

País enfrentou diversas crises sanitárias: varíola, gripe espanhola, poliomielite, meningite. Há um padrão: autoridades tardam em combatê-las, temendo afetar economia e os negócios — e causando milhares de mortes evitáveis

Enfermaria do hospital provisório Escola Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, em 2918. Acervo: Biblioteca Guita e José Mindlin
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Por Evanildo da Silveira, na BBC Brasil

Desde que foi “descoberto”, o Brasil enfrentou várias epidemias, como as de varíola, febre amarela, gripe espanhola, poliomielite, meningite, só para citar as mais devastadoras.

O que quase não mudou em pouco mais de cinco séculos, segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil, foi o comportamento das autoridades públicas frente a elas.

Suas respostas e ações sempre foram um tanto tardias, depois que a doença já havia se espalhado, havendo certo número de mortos e sob a pressão da opinião pública, repercutida nos meios de comunicação de cada época.

Segundo a doutora em História das Ciências e da Saúde, Christiane Maria Cruz de Souza, do Núcleo de Tecnologia em Saúde do Instituto Federal da Bahia (NTS/IFBA), foram muitos os surtos enfrentados pelo país desde 1500.

“No início da colonização, a derrubada da Mata Atlântica para a plantação de canaviais propiciou a proliferação de mosquitos e disseminação das ‘febres'”, explica ela, autora de uma tese que deu origem ao livro Gripe Espanhola na Bahia – Saúde, Política e Medicina em Tempos de Epidemia.

A circulação de povos de origens diversas, europeus e africanos, e a introdução de animais como vacas, galinhas e porcos, por exemplo, também contribuíram para disseminar doenças desconhecidas no Novo Mundo, dizimando povos nativos, assim como enfermidades locais adoeceram os que vieram de fora.

“Durante séculos, tivemos que lidar com o assédio de doenças transmissíveis como a varíola, a peste bubônica, a malária, a febre amarela, a cólera, a gripe e as disenterias”, diz Souza.

Mortes evitáveis

O que há em comum aos casos é o comportamento e ações das autoridades públicas durante todo este tempo.

“Os governos sempre temeram que o reconhecimento público de uma epidemia atrapalhasse os negócios, prejudicando a economia”, explica Christiane.

“A eficiência e o comprometimento das autoridades públicas eram colocados em xeque, na medida em que a crise se agravava e os adversários políticos se aproveitavam para tentar desestabilizar os que se encontravam no poder.”

O doutor em Saúde Pública Paulo Frazão, do Departamento de Política, Gestão e Saúde, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), vai além.

“A lentidão, a insuficiência na resposta e o descaso das autoridades para com as populações de trabalhadores, as famílias de baixa renda e moradores da periferia e das favelas têm levado a um número elevado de mortes evitáveis”, diz.

De acordo com ele, contribui para isso “o descaso para a necessidade de dotar o sistema público de saúde dos recursos necessários, especialmente os órgãos de vigilância ambiental, epidemiológica e sanitária, que se ressentem da campanha permanente de desvalorização do servidor público e do processo de precarização das estruturas de planejamento estratégico e tático-operacional”.

O especialista em história da saúde coletiva brasileira André Mota, do Departamento de Medicina Preventiva e coordenador do Museu Histórico, ambos da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), a ação dos governos frente às epidemias será sempre uma complexa relação política, social e de tecnologia médica e de saúde pública, o que sempre resultará em uma resposta também complexa.

No entanto, acrescenta ele, há um fato que merece ser pensado sobre esse tema e que pode servir de aprendizado.

“Na República, tivemos epidemias que foram debeladas, quase sempre sem articulação entre serviços e hospitais e com limites evidentes, já que não havia cobertura de saúde para todas as pessoas, resultando, nesses casos, em muitas vítimas”, explica.

“O Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, teve como primeiro desafio epidêmico a Aids e conseguiu demonstrar resultados importantes na prevenção e cuidado, justamente, por ter como objetivo essa integração: serviços, cuidados e direito ao acesso.”

De todas as epidemias que assolaram o Brasil ao longo dos tempos, as de varíola – foram mais de uma – estão entre as mais devastadoras.

Dificuldades na vacinação

O médico epidemiologista João Baptista Risi Junior, especialista em poliomielite e em vigilância epidemiológica e ex-secretário nacional de Ações Básicas de Saúde do Ministério da Saúde, lembra que a doença foi introduzida no Brasil logo após o descobrimento, tendo causado enorme mortalidade entre as populações nativas.

Epidemias muito graves dela ocorreram nos séculos seguintes, até as primeiras décadas do 20. “De 1902 a 1926, a doença causou 21 mil mortes somente no Rio de Janeiro, então capital da República”, diz Risi.

“A vacinação contra a varíola foi introduzida no Brasil no início do século 19 e oficializada três anos após a chegada da corte portuguesa, em 1811. Mas havia imensas dificuldades técnicas e operacionais para realizá-la de modo efetivo.”

Com a criação do Instituto Vacínico no Rio de Janeiro, em 1887, a vacina pôde ser produzida em escala e aplicada mais amplamente. Mas a população também não contribuía muito.

“Em 1904, Oswaldo Cruz tomou medidas para impor a vacinação obrigatória, o que provocou forte reação popular, conhecida como a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro”, conta Risi.

A doença continuou endêmica no Brasil, apesar de vacinação rotineira nos serviços de saúde do país. “O problema somente veio a ser solucionado com a criação da Campanha de Erradicação da Varíola, em 1966, como parte de um esforço internacional coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)”, lembra Risi.

“O último caso no Brasil ocorreu em 1971, no Rio de Janeiro. Em 1980 a vacina deixou de ser aplicada no país.”

Gripe espanhola

Em 1918, foi a vez da pandemia de gripe espanhola, que atingiu duramente o Brasil. “Há relatos terríveis do sofrimento que causou à população em várias cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, com enorme mortalidade”, diz Risi.

“Houve dificuldade até para recolher e sepultar os cadáveres, mas a crise desapareceu da mesma forma que havia surgido.”

De acordo com ele, os problemas ocorreram, porque o sistema de saúde estava inteiramente despreparado para enfrentar a epidemia, e os dados disponíveis são muito precários.

“Uma das vítimas foi o presidente Rodrigues Alves, que iria iniciar o seu segundo mandato e nem chegou a tomar posse, sendo substituído provisoriamente pelo vice Delfim Moreira, até o resultado de nova eleição”, lembra. Ele morreu em 16 de janeiro de 1919.

Segundo o médico Eliseu Alves Waldman, do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP, a década de 1940 marcou o surgimentos das epidemias de poliomielite no Brasil.

“Mas somente na década seguinte (as contaminações) são incluídas entre as prioridades de saúde pública, à medida que os surtos se tornam mais severos e frequentes”, diz ele, que é especialista em Medicina Tropical e em Saúde Pública e doutor em Epidemiologia.

Antes disso, no dia 2 de fevereiro de 1943, o filho do então presidente Getúlio Vargas, que tinha o mesmo nome do pai, morreu da doença.

“Sua morte, no entanto, não chamou a atenção dos governantes ou mesmo da sociedade civil, pouco mobilizada a época, pois estávamos em plena ditadura do Estado Novo”, diz Waldman.

“A maior epidemia de poliomielite ocorreu, entretanto, em 1959/60. O controle da doença começou nos anos 1960, com a introdução das vacinas de vírus vivo atenuado (vacina Sabin) e de vírus inativado (vacina Salk). Ela finalmente foi eliminada em 1989.”

A meningite foi outra doença que causou um número elevado de mortes e muito sofrimento. “Houve uma epidemia que durou de 1945 e 1957, que não foi reconhecida, mas omitida pelas autoridades de saúde”, conta Mota.

“Fosse como tragédia ou como farsa, ela voltou a se alastrar na década de 1970, ganhando mais força, mesmo com o silêncio das autoridades e a proibição do regime militar sobre os números assombrosos que, aos poucos, foram criando pânico entre a população.”

Waldman lembra que essa epidemia ocorreu em pleno período autoritário, quando o governo tentou negá-la, somente a confirmando quando haviam sido esgotados os leitos hospitalares para atendimento dos pacientes.

“Para termos uma ideia, nos períodos de pico da epidemia, que durou cinco anos, chegamos a ter, somente no município de São Paulo, 200 casos por dia com uma letalidade de 10%, ou seja, de cerca de 20 mortes diárias”, diz. “Isso foi nos meses de abril e maio de 1974.”

Segundo Mota, conforme estudos realizados posteriormente, no caso paulista “a epidemia pôs a descoberto a anarquia na organização dos serviços de saúde no município de São Paulo, revelando a inoperância da rede hospitalar e a total falta de integração entre os serviços locais, destinados ao primeiro atendimento, e os hospitais”. “Centenas de pessoas morreram até seu controle”, acrescenta. “Muitas sem saber o que tinham.”

Depois veio a Aids, mas que teve uma forte reação governamental, porque já existia o SUS. Mais recentemente surgiram as epidemias sazonais de dengue, chikungunya e zika, todas transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.

A história deste inseto é antiga no Brasil. Em 1900, ele foi identificado como o transmissor da febre amarela urbana, da qual houve várias epidemias. “No Rio de Janeiro, foram registradas 58 mil mortes pela doença entre 1850 e 1902”, informa Risi.

Depois da identificação do transmissor, tiveram início as ações de combate a ele, em São Paulo e no Rio de Janeiro. “Oswaldo Cruz foi reconhecido internacionalmente por sua luta contra a febre amarela, mas ela continuou um grande problema em vários estados litorâneos”, diz Risi.

“Em 1928, voltou a causar uma importante epidemia no Rio de Janeiro. Por isso, na década de 1930, a Fundação Rockefeller cooperou com o governo brasileiro para organizar um programa de combate à doença em todo o país.”

Desse trabalho resultou o desenvolvimento da vacina contra a febre amarela, em 1937, e o início da sua produção no Instituto Oswaldo Cruz.

“Em 1955, o mosquito Aedes aegypti foi considerado erradicado no Brasil”, conta Risi. “Em 1966, no entanto, ele foi reintroduzido nas cidades de São Luiz e Belém, e novamente erradicado. Mas na década de 1970, a presença desse vetor foi mais uma vez detectada, agora no litoral da Bahia, e rapidamente se propagou a todo o país, tornando-se impossível voltar a erradicá-lo.”

As epidemias que atingiram o Brasil nesses mais de cinco séculos de História não trouxeram apenas desgraças, mortes e sofrimentos, no entanto.

“Com erros e acertos, podemos dizer que a saúde pública brasileira amadureceu e se consolidou como um dos setores que influenciaram e contribuíram para o desenvolvimento do país”, diz Waldman.

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