Artur Araújo (1958-2023)

Uma partida inesperada enfraquece as lutas e reflexões por outro país possível. Gilberto Maringoni traça a trajetória de “uma das pessoas mais cultas e perspicazes que conheci”. Antonio Martins afirma: “Algo morre em nós com ele. Algo precisa, urgente, reagir”

I.

Esta foto sintetiza muito da inteligência e do humor implacável de meu amigo Artur, que se foi nesta madrugada. Como muitos de nossa geração que se mantiveram nas fileiras da esquerda, ele se considerava – positivamente! – um dinossauro. A imagem abaixo foi fixada na frente da biblioteca municipal Mario de Andrade, em São Paulo, e o cartaz ao fundo é quase uma legenda..

Artur foi uma das pessoas mais cultas e perspicazes que conheci. Companheiro de movimento estudantil no final dos anos 1970, passou pela Ação Popular (APML) e pelo PCB, antes de se filiar ao PT. Não chegou a concluir o curso na tradicional Escola Politécnica da USP, mas era vivamente interessado nas relações entre Engenharia e desenvolvimento, sua maior especialidade.

Suas análises de conjuntura tinham a precisão de quem sabia combinar vivência política – foi assessor de David Capistrano Filho (1948-2000) na prefeitura de Santos – e profundo conhecimento de Economia e História. No primeiro governo Lula (2003-2007) foi diretor da Embratur e mais recentemente assessorou o Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo e a Fundação Perseu Abramos, vinculada ao PT.

Suas áreas de interesse não ficavam por aí. A cultura literária era admirável, vinda de leituras dos grandes escritores estadunidenses que saíram do jornalismo no século XX, como Hemingway, Fitzgerald, John dos Passos, John Fante e Steinbeck, sem esquecer dos que saltaram das pulp magazines para o panteão da novela policial, como Hammet, Chandler e Spillane. Dos tempos em que era executivo de redes hoteleiras transnacionais, quando viajava contantemente aos Estados Unidos, desenvolveu meticuloso conhecimento da trajetória dos músicos e compositores do blues, do folk e do jazz. Não bastasse, era cozinheiro mais do que exemplar.

Artur foi um intelectual sem obra escrita ou vida acadêmica. Era um cultor da conversa e da polêmica, com percepções e sacadas sempre inusitadas e dono de irritante realismo. Chamava atenção sempre para aspectos concretos e quase comezinhos da vida política. “Sei, Lula viajou, falou e brilhou no exterior. Mas se as pessoas não tiverem emprego, salário e comida no prato, o governo fracassa”, repetia sempre, com uma voz cristalina, quase de barítono. Eu lhe dizia que se não desse para nada na vida, poderia ser locutor de sucesso. “Nada, sou um dinossauro”, cortava na lata.

Foi-se meu amigo Artur. Que merda, que merda… (Gilberto Maringoni)

II.

O arco da boca curva-se muito discretamente para cima, nas duas pontas. Os vincos da pele ao lado do nariz e as bochechas salientes traem o movimento dos músculos faciais, incapazes de conter o sorriso. Por trás dos óculos, brilha o olhar. Na foto, Artur Araújo exibe os traços mais típicos de sua fisionomia. Nunca será de indiferença, mas também não é de indignação oca. É um sarcasmo altivo, e ao mesmo tempo acolhedor e amoroso, o que estes olhos denunciam.

Na madrugada árida de segunda-feira (12/6), em São Paulo, eles cansaram-se da vida. Lutaram muito antes de se entregar aos azares de uma cardiopatia grave e à desesperança diante de um mundo que se tornou hostil à ação coletiva. Quando reencontrei Artur após décadas, e a poucos meses das eleições de 2018, ele mantinha uma rotina impressionante de acompanhamento dos fatos e tentativa de intervir sobre seus desdobramentos. Lia os jornais – inclusive os impressos – a partir das 6h. Alimentado por eles, dava-se nas horas seguintes a interlocuções que iam de velhos militantes (como o consultor sindical João Guilherme Vargas Neto e o ex-presidente do Clube de Engenharia do Rio, Pedro Celestino) a jovens ativistas. São notáveis tanto a rede de relações que cultivou entre os círculos de esquerda do Centro Acadêmico XI de Agosto quanto sua habilidade de praticar, junto a eles, pedagogia política sem arrogância. “Quem não repõe seu estoque de amizades morre mais cedo”, disse-me certa vez. À época, encontrava tempo para escrever, com alguma frequência, notas sobre a conjuntura, que enriqueceram Outras Palavras.

Desde o final dos anos 1970, quando a luta pela reconstrução da UNE perturbou a ditadura, tomou as ruas das metrópoles e antecedeu as próprias greves operárias, Artur destacou-se por uma combinação incomum de sagacidade, erudição e irreverência. Estas qualidades o acompanharam na breve passagem por jornais comunistas, na assessoria à gestão histórica de Davi Capistrano na prefeitura de Santos e nas análises finas de conjuntura que sempre teve prazer de compor. Mas ele cultivava, em paralelo a elas, um notável desapego por prêmio, aval e posto.

De modo que há quatro anos, já se via sem meios para influir na política das grandes decisões. A institucionalização da esquerda esvaziara a ação militante. Os partidos haviam se transformado, ele dizia, em federações de mandatos – preocupados muito mais com sua própria sobrevivência do que com o exame dos problemas do país e das alternativas. Ainda assim, recusava-se a pensar que pudessem ser substituídos por novas formas de articular a vontade política, e aí estava uma de nossas divergências.

Fugia dos dogmáticos. Entusiasmou-se, em 2018, quando o movimento #elenão estimulou multidões a irem às ruas para tentar dar ânimo à campanha de Haddad contra Bolsonaro. Buscou compreender a fundo a Teoria Monetária Moderna, que alguns marxistas rejeitam por não ter sido antevista pelo velho barbudo. Angustiaram-lhe, nos últimos tempos, as dificuldades para construir o que chamava de uma “pauta do povo”. A campanha de Lula, lamentava, era lentíssima em mobilizar as maiorias em torno de seus dramas: desemprego, pobreza, endividamento, carestia. Viu esta resistência persistir nos primeiros meses de governo, associada a uma aposta insana nas negociações com um Parlamento decrépito e corrupto.

O discreto sarcasmo no sorriso de Artur expressava uma crença na razão e na inteligência, aplicadas na transformação do mundo. Aos poucos, os obstáculos cairão, parecia apostar. Mas duas forças podem ter desfeito a curva que os lábios descrevem na foto. A um infarto que permaneceu silencioso por dois dias, em 2021, seguiram-se duas paradas cardíacas e meses de internação no Incor. Aguardava, com limitações, na fila do transplante. Clinicamente, melhorou nos últimos meses. Mas afastou-se, no mesmo período, dos encontros no Sujinho e da atividade, antes muito profícua, nos grupos da internet. É provável que o persistente esvaziamento da política, enquanto os grãos de areia teimam em passar pela fresta da ampulheta, o tenha abalado.

Algo morre em nós com Artur Araújo. Algo precisa, urgente, reagir. (Antonio Martins)

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Um comentario para "Artur Araújo (1958-2023)"

  1. Solange disse:

    Lembrei dele, Antonio, somente agora ao ver a foto. Lembrei do moço que conhecemos no movimento estudantil. Como disse, vai um pouco de nós também. Precisamos resistir sim, infelizmente só não sei mais como! um abraço.

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