Um Lula sem meias palavras na ONU

Justiça social é central em qualquer debate sobre os rumos do planeta, sugere o presidente. E denuncia a volúpia bélica e a inércia dos países ricos diante das desigualdades brutais e da crise climática – que aflige mais intensamente o Sul

Foto: Ricardo Stuckert
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Ao anunciar em seu discurso na Assembleia Geral da ONU que o Brasil havia “voltado”, evidenciando o contraste com o governo anterior que contou com um ministro das Relações Exteriores que se orgulhava da condição do país de “pária internacional”, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não só ilustrou o que sua intensa agenda internacional vem demonstrando desde o início do ano, como também abriu a possibilidade de haver uma mudança no debate global sobre economia e justiça social.

A palavra “desigualdade”, absolutamente ausente dos quatro discursos do presidente brasileiro anterior em suas falas nas Nações Unidas e igualmente invisível em seus discursos no dia de posse, apareceu em sua forma singular ou plural 14 vezes na fala de Lula. Trata-se de um desafio histórico para o Brasil, mas que também deveria ser pauta central em todo o mundo.

No último discurso feito na ONU por Lula em seu segundo mandato, em 2009, o mundo estava sentindo os efeitos da pior crise econômico-financeira desde a chamada Grande Depressão. Ali, as mazelas do capital improdutivo ficaram transparentes e o presidente brasileiro abordou a questão de forma direta.

“Foi a tese da liberdade absoluta para o capital financeiro, sem regras nem transparência, acima dos povos e das instituições. Foi a apologia perversa do Estado mínimo, atrofiado, fragilizado, incapaz de promover o desenvolvimento e de combater a pobreza e as desigualdades; a demonização das políticas sociais, a obsessão de precarizar o trabalho, a mercantilização irresponsável dos serviços públicos. A verdadeira raiz da crise foi o confisco de grande parte da soberania popular e nacional – dos Estados e dos governos democráticos – por circuitos autônomos de riqueza e de poder”, disse Lula na ocasião.

Ele ainda falou à época sobre o perigo de se normalizar o que havia acontecido. “Passados doze meses, constatamos que houve alguns progressos mas que persistem muitas indefinições. Ainda não há uma clara disposição para enfrentar, no âmbito multilateral, as graves distorções da economia global. O fato de ter sido evitado o colapso total do sistema parece ter provocado em alguns um perigoso conformismo.”

A desigualdade não é obra da natureza

Após 14 anos daquele discurso, a desigualdade continua na ordem do dia. Relatório divulgado no começo de 2023 pela Oxfam denominado A Sobrevivência do mais rico – porque é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades, apontou que, pela primeira vez em um período de 30 anos, a riqueza extrema e a pobreza extrema cresceram de forma simultânea. Entre os anos de 2020 e 2022, o segmento dos 1% mais ricos do planeta ficou com quase 2/3 de toda riqueza, aproximadamente US$ 42 trilhões. Um total equivalente a seis vezes mais do que o total recebido por 90% da população.

A desigualdade, contudo, é construída social e historicamente, não uma obra da natureza. O economista francês Thomas Piketty já pontuou que estes sistemas são constituídos “por um conjunto de discursos e dispositivos institucionais que visam justificar e estruturar as desigualdades econômicas, sociais e políticas de uma determinada sociedade”. Ou seja, a construção de uma sociedade menos desigual passa pelo aprofundamento do tema na sociedade, para que se dê a ele a devida prioridade.

Nesse aspecto, é interessante reforçar ainda a relação entre a desigualdade com outras duas questões abordadas por Lula no discurso da ONU desta terça-feira. Primeiro, as mudanças climáticas. “Os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima. A emergência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado. Não é por outra razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, lembrou Lula.

“São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima. Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera. Nós, países em desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo”, complementou, destacando que a desigualdade se reflete nas duas pontas: primeiro, são as nações mais ricas que poluem e, ao longo da história, poluíram mais e têm a maior parcela de responsabilidade nas mudanças climáticas. Na outra ponta, são as nações mais pobres que vão arcar com os custos humanos dos impactos já sentidos pelo aumento da temperatura global.

Outro ponto abordado foi a volúpia bélica alimentada pelos países mais ricos. “Investe-se muito em armamentos e pouco em desenvolvimento. No ano passado os gastos militares somaram mais de 2 trilhões de dólares. As despesas com armas nucleares chegaram a 83 bilhões de dólares, valor vinte vezes superior ao orçamento regular da ONU. Estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade”, destacou o presidente.

Assim como no caso das alterações do clima, a desigualdade aparece de duas formas distintas. Os recursos investidos em grandes transnacionais monopolistas aumentam o fosso entre pobres e ricos e os efeitos das guerras, em geral, são sentidos também pelos países mais pobres, nos quais as potências globais utilizam sua moral dúbia para apoiar conflitos armados.

Caminhos da mudança

Desde o discurso de Lula em 2009 até hoje, não houve nenhuma revolução que impedisse ou mudasse as principais condutas dos agentes do sistema financeiro internacional e do capital improdutivo mundial. Mas é necessário lembrar os impactos de movimentos como o Occupy Wall Street, que gerou uma mobilização política da sempre minoritária esquerda nos EUA como há muito não havia, permitindo inclusive a candidatura presidencial de um senador, Bernie Sanders, que não se esquiva da alcunha de “socialista”. E também do 15-M, da Espanha, que inovou em formas de mobilização e também influenciou a política do ponto de vista partidário-institucional.

Talvez estes sejam dois exemplos, nascidos daquela crise global, que podem servir de norte para os dias atuais, com base, inclusive, em outro trecho da fala do presidente brasileiro. “A desigualdade precisa inspirar indignação. Indignação com a fome, a pobreza, a guerra, o desrespeito ao ser humano. Somente movidos pela força da indignação poderemos agir com vontade e determinação para vencer a desigualdade e transformar efetivamente o mundo a nosso redor.”

Tal indignação foi captada pela extrema-direita, que em países como o Brasil se transformou num dos principais botes salva-vidas do neoliberalismo moribundo, e também aparece em outros lugares, como na candidatura à presidência argentina de Javier Milei. Se os extremistas em países latino-americanos perderam a vergonha de se assumir como tal, chegando a defender os méritos e valores de regimes autoritários passados, se tornaram também porta-vozes de grandes interesses econômico-financeiros ao anunciarem privatizações e desmonte do Estado.

Disputar estes sentidos é essencial, fazendo-se o esforço para mostrar o quanto a desigualdade é um problema crucial, multidimensional, que se cruza com as diversas formas de opressões que distintos segmentos da sociedade sofrem todos os dias, refletindo questões de gênero, étnico-raciais e regionais. E é necessário que se cobre a concretização desses discurso também no âmbito interno, para que o Brasil deixe de ser um dos mais desiguais do mundo.

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