Ucrânia: não há “mocinhos” na guerra

Se EUA nutrem projeto imperialista na Europa através da OTAN, resposta de Putin é selvagem, inclusive com ameaças nucleares. Resultado: o naufrágio da diplomacia, crise de refugiados (e mais racismos) e sanções com impactos globais

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Muito tem se escrito sobre a recente invasão russa na Ucrânia, nos últimos dias. Pode-se afirmar que ela configura a maior intervenção militar na Europa, desde a II Guerra Mundial (1939-1945), segundo o cientista político Christopher Garman. Certamente trará drásticas perdas humanas, infraestruturais, econômicas, fratura de vínculos sociais e esgarçamento do tecido social, bem como aumento do número de refugiados e profundos e duradouros impactos psicossociais nas populações atingidas. O problema do racismo aparece logo no início do processo da movimentação dos novos refugiados/as, na fronteira da Polônia.

Trata-se de uma ação orquestrada por terra, mar e ar. É também uma guerra cibernética, cujos horrores são transmitidos em tempo real, evidenciando como as fronteiras espaço-temporais foram diluídas com a aceleração e abrangência da digitalização das sociedades. É um contexto de grande turbulência, que aponta para a derrocada do ordenamento internacional de cunho liberal, pois alicerçado nas diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, ainda que brevemente, é importante explicar as raízes desse processo, sua complexidade e a controvérsia que ele enseja tanto à direita como à esquerda do espectro político-ideológico.

O cenário pós-1945 foi marcado pela bipolaridade entre os EUA e antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), bem como a ordem internacional pós-Guerra Fria. Com o fim da II Guerra Mundial e a emergência da ordem multilateral bipolar, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), diga-se, os EUA juntamente com o Canadá e a Europa, vêm expandindo a sua área de influência no globo, abarcando os países do Leste Europeu, que fizeram parte da URSS. À época, em contraposição à lógica liberal e capitalista, a URSS criou o Pacto de Varsóvia, ou seja, uma coalizão militar para resguardar os países sob a zona de influência comunista. Entre 1991 e 1997, com a derrocada da URSS, do comunismo e o triunfo do capitalismo global, 13 países foram incorporados à OTAN, com destaque para Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Bulgária. A maioria desses países já estabeleceu relações com as instituições da União Europeia, incorporando os valores Ocidentais de livre mercado, bem como práticas culturais, comerciais e influência das mídias ocidentais.

A estratégia dos EUA, com o suporte diplomático e militar da União Europeia, consistia em reduzir a influência geopolítica e econômica da Rússia na região. Ainda que historicamente disseminem a retórica falaciosa da liberdade e da democracia, como antídotos aos governos tirânicos e opressores, os EUA não exercem na prática o que defendem na teoria. Na verdade, estimulam tensões geopolíticas, turbulências políticas domésticas, rupturas democráticas e guerras. Há fartas evidências históricas a este respeito. Citaremos algumas: (1) apoio robusto às ditaduras na América Latina, durante as décadas de 1960 e 1970. Além da ditadura militar brasileira (1964-1985), um exemplo paradigmático foi o Chile, com a ascensão do general Augusto Pinochet. O ditador bombardeou o palácio do presidente eleito democraticamente, Salvador Allende, matando-o. Na sequência, implementou um experimento neoliberal radical, com profundos cortes de gastos, privatização e a instauração do modelo de capitalização na previdência social, no qual o trabalhador é o responsável por contribuir individualmente, sem a ajuda do governo e do patronato; (2) para explorar o petróleo, orquestrou a invasão do Iraque em 2003, com a alegação de que este país possuía armas nucleares; (3) venda de armas para ditaduras do Oriente Médio, como Arábia Saudita; (4) apoio militar e logístico ao grupo fundamentalista Al-Qaeda para combater as tropas soviéticas na Guerra do Afeganistão, na década de 1980, durante a Guerra Fria; (5) o fomento às guerras étnico-fratricidas na África, a disseminação de bases militares e o apoio a ditadores. Tal quadro agravou a destruição da infraestrutura de territórios que foram divididos pelas potências ocidentais para exploração de recursos naturais durante o imperialismo europeu, entre o final do século XIX e o limiar do século XX; (6) a Operação Java Jato no Brasil. Por meio da atuação do ex-juiz Sérgio Moro, aliado aos interesses imperialistas dos EUA, à mídia oligopolista e os procuradores baluartes da moralidade, atacaram a Petrobras, arruinaram a cadeia produtiva de petróleo, gás, infraestrutura, indústria naval e construção civil. A retórica antipolítica alimentada sistematicamente pela mídia convergiu para a deterioração da economia, o desemprego em massa e a instrumentalização das instituições de justiça para o esfacelamento do Estado Democrático de Direito, o que a literatura chama de “lawfare”. No entanto, acreditamos ser importante evitar um “antiamericanismo” pouco reflexivo, que provoca adesão automática a quem confrontar o país norte-americano. Têm-se lido posicionamentos que justificam a ação de Vladimir Putin, a partir desse histórico de interesses dos Estados Unidos em termos de recuperação de poder geopolítico. Falou-se até em “guerra defensiva”.

Não se trata, a nosso ver, de “escolher um lado”, mas sim de compreender uma realidade bem mais complexa do que as ideologias de parte a parte poderiam sugerir. Além disso, as nações não são somente seus governantes da hora. Elas são também territórios simbólicos ocupados por milhares, milhões de pessoas que constituem sociedades multiculturais e têm direito à soberania de seus respectivos países. Por isso, atribuir a um país inteiro uma “vocação à maldade” – tem parecido que isso ocorre sobretudo com EUA e Israel – é uma atitude preconceituosa contra as cidadãs e os cidadãos desses países, que acabam sendo alvo de ódio político. São sociedades plurais, multiculturais, assim como é o Brasil. Não é porque Jair Bolsonaro foi eleito, que a população brasileira em sua totalidade será de extrema-direita, como é o mandatário atual no executivo. Seria muito injusto se nações estrangeiras atribuíssem essa pecha a todos nós.

O fato é que há mais de uma década diplomatas, analistas de estratégia e estudiosos de Relações Internacionais alertavam para que os EUA e a Europa, sob governos de viés democrata ou conservador, respeitassem a área de influência da Rússia. Essa postura definitivamente afetou as relações multilaterais. Em 2007, na 43ª Conferência de Política de Segurança, Putin condenou a ordem unipolar dos EUA. Na sequência, a Rússia invadiu a Georgia, em 2008, e anexou a Crimeia, situada no Mar Negro, em 2014, com o fito de afastá-las da zona de influência da OTAN. Outro evento histórico que mostrou a gravidade das tensões geopolíticas foi a crise dos mísseis, em 1962, com a notória ameaça de emprego de armas de destruição em massa pelas duas superpotências. Somados, os EUA e a Rússia concentram 90% das armas nucleares do planeta. Certamente há oligarcas e bilionários na Rússia, mas há também nos EUA, representados pelos poderosos interesses da indústria bélica que influenciam fortemente a política. A mídia corporativa, no entanto, tem destacado de forma crítica somente a oligarquia russa, em sua cobertura dos eventos.

Na recente invasão da Ucrânia o argumento aventado pelo presidente Putin é a urgência de promover a “desmilitarização” e “desnazificação” do país. O seu propósito é estimular o ressentimento provocado pela invasão da ex-URSS pelos nazistas, na II Guerra Mundial. Putin mobiliza a memória social da população contra as práticas de genocídio e de limpeza étnica perpetradas pelos nazistas durante o Holocausto. De forma oportunista, mobiliza a retórica do genocídio para estimular a agressão, ofendendo a memória das milhões de vítimas do nazismo e dos soldados ucranianos e russos que, reunidos no Exército Vermelho, combateram o expansionismo militar de Hitler. Analistas e estudiosos internacionais, no entanto, têm ressaltado que a política da Ucrânia não é controlada por elementos nazistas, ultranacionalistas, extremistas de direita, xenofóbicos violentos ou fascistas, ainda que estes grupos tenham crescido nos últimos anos. Grupos dessa natureza também têm avançado no Brasil de forma surpreendente, sobretudo com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, que exalta torturadores e a ditadura militar. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que tem carreira de comediante na televisão, é judeu e teve seus tios assassinados durante a perseguição de Hitler na II Guerra Mundial.

Argumenta-se que há sinergias entre os EUA e a Ucrânia, que querem impedir o fim das obras do gasoduto russo Nord Stream 2. Trata-se de uma parceria entre a Rússia e a Alemanha com o propósito de comercializar o gás russo na Europa e usá-lo para finalidades domésticas. Contudo, os EUA praticam uma política de isolamento econômico dos russos, pois querem comercializar o seu gás natural líquido na Europa a um preço elevado. Os EUA financiaram grupos supremacistas e neonazistas na Ucrânia para aumentar a instabilidade política, como foi o caso da crise em 2014, que assinalou a derrubada do presidente eleito, Viktor Yanukovych, pró-Rússia, envolvido em casos de corrupção e que rejeitou um acordo de aproximação com a União Europeia. Os conflitos entre separatistas pró-Rússia e o Exército da Ucrânia, tiveram um salto terrível de 15 mil mortos.

Essa guerra mostra também o racismo estrutural reproduzido ao longo da história pelos europeus e norte-americanos contra os imigrantes, refugiados de guerra, pessoas não-brancas, não-europeias e países do Oriente Médio (Iraque, Afeganistão, Síria). A cobertura da imprensa ocidental evoca um tom de superioridade que remonta às práticas de eugenia, seleção natural e darwinismo social, como exemplificaram as falas explícitas de jornalistas, correspondentes e entrevistados estrangeiros. Segundo eles, a guerra não afeta mais populações pobres, mas uma população que assiste Netflix, próspera, de classe média, ou seja, um “povo de cabelos loiros e olhos azuis”, vitimado pelo poder bélico dos russos.

No dia 02/03/2022, por 141 votos favoravelmente (incluindo o Brasil) contra 35 abstenções e 5 contrários, a Assembleia Geral da ONU condenou a guerra de Putin na Ucrânia. A abstenção foi considerável entre os países africanos (Angola, Burundi, Argélia, República Centro-Africana, Congo, Guiné Equatorial, Mongólia, Madagascar, Moçambique, Namíbia, Zimbábue, dentre outros) que alegaram a falta de cobertura da mídia ocidental com relação às intervenções militares, guerras e constantes violações de direitos humanos em seus territórios. Além disso, uma das possíveis razões para as abstenções é o fato de que países africanos como Moçambique têm fortes laços bilaterais com a Rússia, que lhes fornece equipamentos militares para a polícia e o exército. No terreno diplomático, procuram fazer amigos e evitar inimigos. Conforme já apontado, a mídia dos países ricos, ainda que tenha se retratado, tratou de forma preconceituosa e jocosa imigrantes africanos e asiáticos. Estes sofreram racismo nas fronteiras da Ucrânia e nos países vizinhos. Homens brancos, mulheres e crianças são priorizadas nas estações de trem de Kiev. Ao tentarem fugir do país atacado por Putin, os imigrantes negros, árabes e sírios foram colocados no final da fila, barrados por guardas de embarcarem em ônibus para a Polônia e intimidados com armas nas fronteiras.

Economicamente, os efeitos da guerra já se fazem sentir com a elevação do preço do petróleo, do trigo e do gás. De forma inédita os governos ocidentais superaram divergências e se uniram para impor graves sanções econômicas à Rússia, com a saída de diversas corporações (Apple, Shell, BP, Exxon, Visa, Mastercard, Volvo, General Motors, Microsoft, dentre outras) e a desvalorização recorde da moeda (rublo). Cabe destacar o rebaixamento dos títulos, classificados como lixo, pois não encontram comprador, e a asfixia financeira, isolando a Rússia do sistema financeiro global. Entretanto, não somente a Rússia vem sofrendo os efeitos das sanções econômicas, mas o mundo todo, com significativos impactos no comércio internacional. A ruptura nas cadeias globais de fornecimento afeta o fluxo de mercadorias e, consequentemente, a recuperação econômica no contexto pós-pandemia da covid-19.

Ainda que lamentavelmente defendido e idealizado por setores de esquerda no Brasil, Putin é um político conservador, autoritário, perseguidor dos direitos civis da população russa (sexualidade/identidade de gênero, liberdade de opinião, livre convicção religiosa e filosófica), de minorias e que prende arbitrariamente quem lhe contraria, até mesmo crianças que se manifestaram contra a guerra na Ucrânia. O autocrata manipula a imprensa, as mídias digitais, rejeita a diplomacia. É apontado o seu envolvimento em assassinatos de opositores ao seu regime e envolvimento em casos de corrupção e enriquecimento ilícito. Nesse sentido, manifestamos o nosso repúdio ao imperialismo econômico, ao expansionismo militar e à supressão de liberdades individuais em todas as suas formas e filiações políticas. Seguindo a lógica de Maquiavel, o líder russo age de forma impiedosa e cruel, sem se preocupar com questões éticas e morais para alcançar o seu objetivo de conquistar (e destruir) o território ucraniano.

A democracia é um valor inegociável. É inadmissível que, em pleno século XXI, Putin tenha que recorrer ao incontrastável poder bélico e à ostentação de armas nucleares capazes de devastar o planeta, para (tentar) solucionar contendas político-econômicas e geopolíticas históricas. Putin claramente ameaçou com o uso de armas nucleares os países que vierem a intervir em sua guerra: “Quem tentar interferir levará a consequências como nunca experimentado na história”. A violação da Carta da ONU, do Direito Internacional, do princípio da não-intervenção, da autodeterminação do povo ucraniano e da soberania territorial não são o caminho. A primazia da lei do mais forte e da selvageria, similares ao modelo imaginário de sociabilidade do “estado de natureza”, de Thomas Hobbes (filósofo do século XVII), somente retroalimentará o ódio, o ressentimento e a intolerância. Por fim, a verdadeira guerra que precisamos é contra a desigualdade, a fome, a destruição dos sistemas de proteção social ao redor do mundo e ao racismo que segrega e exclui.

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Um comentario para "Ucrânia: não há “mocinhos” na guerra"

  1. Geraldo Lucchese disse:

    Colocar a complexidade dessa situação não é defender tudo o que faz Putin. É buscar compreender as raízes do problema. Não é verdade que Putin despreza a diplomacia. Seu ministro das relações exteriores é reconhecido como um dos melhores negociadores da atualidade. Os EUA, Biden à frente, tem ódio aos russos e querem sua derrocada política e econômica. Rejeitou qualquer tentativa de entendimento com os russos. O ocidente manipula totalmente as informações sobre as reais causas da invasão e as notícias sobre a guerra. E, estrategicamente, manda dinheiro e armas para os nazistas na Ucrânia. O presidente da Ucrânia, apesar de judeu, é um fantoche dos interesses dos EUA e OTAN e tolera e apoia os grupos nazistas da Ucrânia, sim, bem como o assédio, para não falar em massacre das populações do russas Dombass. O golpe de 2014, que tirou Yanukovich da Presidência da Ucrânia, apoiado amplamente por todo o ocidente, sob o pretexto da corrupção (semelhante ao golpe que tirou Dilma da Presidência) é, também, um das raízes dessa situação. Tudo isso é realidade é deve ser mostrada e considerada. Não é defender o político Putin e sua situação na Rússia, mas sua preocupação com a segurança e com a economia da Rússia, ante a total negativa de buscar entendimento por parte de EUA/OTAN, pode ser compreendida. Pessoalizar no Putin a causa da guerra é reduzir uma realidade complexa e lidar com ela com o maniqueísmo de bandido e mocinho, tão familiar a toda a produção cultural dos EUA. EUA/OTAN querem um mundo com uma visão e um único governo, o deles. E essa visão é imperialista, não admite adversários ou ideologias diferentes. Isso não é a melhor alternativa para o mundo, muito pelo contrário. Os grandes do capital não aparecem, inclusive os fabricantes de armas, mas são eles que manejam toda essa essa situação e encenação.

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