Ucrânia: antecedentes e modus operandi do conflito
Golpe da Praça Maidan, em 2014, projetou a ultradireita e é chave para entender a guerra. Grupos nazistas tornaram impossível a autonomia do Donbass. EUA atiçam o conflito para defender supremacia geopolítica e vender entulhos militares
Publicado 04/03/2022 às 17:20 - Atualizado 04/03/2022 às 17:22
O atual conflito na Ucrânia tem como um dos seus marcos fundamentais as manifestações da Praça Maidan (o “Euromaidan”), ocorridas em 2013, que marcaram um ponto de inflexão na estratégia imperialista estadunidense e da OTAN para a região. Essas manifestações, financiadas e organizadas pela burguesia pró-ocidente radicada na Ucrânia, com o apoio de recursos financeiros e bélicos de EUA, Canadá e Reino Unido, engendraram as condições políticas internacionais para o golpe contra o então presidente ucraniano Viktor Yanukovich, que havia encerrado unilateralmente as negociações para o ingresso da Ucrânia na União Europeia. Diante da dissolução das instituições ucranianas, principalmente de suas forças armadas, a Federação Russa anexa a Crimeia, apoiada por suposto referendo local.
Concomitantemente ocorreram levantes separatistas pró-russos por todo o leste ucraniano, com apoio do Estado Russo – embora sem reconhecimento da condição de estados independentes, sendo que apenas em Donetsk e Lugansk (províncias da Bacia do DonBas) foram alcançadas posições de estabilidade temporária.
O que se seguiu a este conflito inicial de alta intensidade foi um conflito de baixa intensidade no contexto dos Acordo de Minsk, onde sucessivos cessar-fogo foram negociados entre Ucrânia, Rússia e as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, com a mediação dos governos de França e Alemanha. Parte desses Acordos de Minsk (o primeiro, de 5 de setembro de 2014; o segundo, de 12 de fevereiro de 2015) previa maior autonomia para as regiões separatistas e poder de veto em decisões de defesa, principalmente em uma eventual adesão ucraniana à OTAN. Enquanto isso, aumentavam as tensões em três frentes que provocaram, finalmente, o fracasso das negociações. Em primeiro lugar, entre Rússia e Ucrânia, em torno ao próprio descumprimento dos Acordos de Minsk. Em segundo lugar, pelo aumento do envolvimento da OTAN e seus aliados na Ucrânia, espoliando a indústria e as reservas naturais do país. Em terceiro lugar, com o tensionamento internamente à Ucrânia entre elementos liberais da classe política no poder e os movimentos de extrema-direita que os levaram ao poder.
Desde então, intensificou-se uma guerra de versões de ambos os lados. Do lado russo, desmobilização e suposto expurgo de lideranças mais problemáticas (criminosos de guerra e extrema-direita). Do lado ucraniano e ocidental, assimilação de elementos de extrema-direita que passaram a fazer parte das FFAA ucranianas e de posições-chave no governo da Ucrânia, ainda que estes movimentos não tenham logrado sucesso eleitoral.
Mais recentemente, como forma de pressionar a Ucrânia e na tentativa de estancar o processo de avanço da OTAN para o leste que se desenvolve desde 1991, a Federação Russa aumentou sua presença militar próxima à fronteira com a Ucrânia. Em resposta, a OTAN e seus aliados intensificaram sua campanha de propaganda e desinformação, no que foram acompanhados pela Federação Russa, em total sintonia com o modus operandi de ambas as partes. Basta verificar a Estratégia Nacional de Defesa dos EUA, orientada para conter a China, dividir a Eurásia, enfraquecer a Europa e garantir a dependência do sul global.
Cabe ressaltar que, nos últimos anos, dois acontecimentos aparentemente desconexos contribuíram para que o conflito eclodisse na forma atual. Os EUA alcançaram as condições tecnológicas e políticas para assumirem posição competitiva no mercado mundial de gás natural, em especial o crescente mercado europeu e em função de suas opções de matriz energética. A Federação Russa, por outro lado, desenvolveu aceleradamente seu poderio militar, colocando-se como uma agente de relevante poder neste âmbito, fato evidenciado pelo desempenho de suas tropas na Síria em 2017, por exemplo. Configura-se um cenário no qual os interesses dos EUA voltam-se para a Europa, em especial em uma conjuntura de crise prolongada, enquanto a Rússia se vê em condições de Defesa que lhe permitem desafiar o poderio estadunidense.
Dadas essas condições, o jogo diplomático entre Federação Russa e Estados Unidos culmina na disputa por mercados e influência em detrimento de Ucrânia e Europa. É neste contexto que se desencadeia a escalada militar recente, com a injeção de toneladas em armamentos defasados ou obsoletos na Ucrânia pelo Ocidente e manobras militares russas, estimuladas pela percepção de interesses conflitantes no âmago da OTAN. Exauridas as vias diplomáticas desde o ponto de vista do governo russo, Vladimir Putin, aproveitando o incentivo de uma moção do Partido Comunista (KPRF), reconhece Donetsk e Lugansk como dois novos países do Sistema Internacional. Esse reconhecimento russo abre a possibilidade no âmbito do Direito Internacional do estabelecimento de relações diplomáticas e, portanto, de cooperação militar entre a Federação Russa e as duas ex-províncias ucranianas. Desta forma, pode-se dizer que a escalada russa é defensiva e responde à escalada da OTAN. Porém, isso não significa tratar-se de uma ação anti-imperialista. Menos ainda defensável.
O governo Putin diz estar travando uma guerra contra o neofascismo que predominaria na Ucrânia atual. OTAN e Ucrânia afirmam que Putin é o neonazista. Nenhum desses discursos reflete a realidade do conflito. A região está sim minada de neonazistas, organizados em diversos grupos armados. Porém, os diferentes grupos foram mobilizados tanto pelo governo russo quanto por OTAN e Ucrânia. A Rússia e seus prepostos separatistas criaram a Brigada Rusich, de forte caráter neonazista, o Batalhão Svarozich, ligado aos movimentos de neopaganismo eslavo, e a franco-sérvia Unité Continentale, que aglutinou mercenários de extrema direita e chegou a incluir brasileiros em suas fileiras. Entre os criados pelos Estados Unidos, Canadá e aliados, os mais famosos são dois. O Batalhão Azov, grupo neonazista oriundo das torcidas organizadas de futebol que possui grande força militar e política, contando inclusive com campos de treinamento de adolescentes subsidiados pelo governo ucraniano. E a Legião Nacional da Geórgia (GNL), composta tanto de veteranos da Guerra da Geórgia de 2008 quanto de mercenários internacionais neonazistas ou não, alguns dos quais investigados pelos próprios países por crimes de guerra. Portanto, nenhum dos lados do conflito pode se arvorar estar travando uma luta antifascista. Todavia, seria ingênuo afirmar peremptoriamente que qualquer dos lados tenha por objetivos aqueles professados pelo neonazismo.
Explicitadas as origens e alguns métodos do conflito até o momento, quais seriam os objetivos da ofensiva militar russa? Putin parece desenvolver uma estratégia de guerra rápida para estabelecer um governo pró-russo ou que ao menos o atual governo aceite um novo acordo similar aos de Minsk. Quanto à ação dos EUA, poderíamos considerar até o momento bastante limitada a sanções comerciais. A estratégia estadunidense carece, entretanto, de dentes, visto que o bloqueio econômico encontra limites no relativo desenvolvimento autárquico russo e poderá favorecer, na pior das hipóteses, um maior alinhamento russo à esfera de influência da China.
Considerando o exposto, e à luz do comportamento observado dos grupos feministas ucranianos – excluído evidentemente o conservador FEMEN (ligado ao Movimento Azov) – e de anarquistas radicados na Ucrânia, dentre os quais destaca-se o militante Rev Dia, como também a ilegalidade do Partido Comunista, um alinhamento a um lado ou a outro do conflito interessa apenas à extrema direita. Efetivamente, tanto por parte do governo ucraniano de Volodimir Zelensky quanto por parte das tropas de ocupação russa há perseguição a anarquistas, feministas, população LGBTQIA+ e aos romani, além de flagrante anti-comunismo.
É crucial, acima de tudo, a defesa da vida e o acolhimento pleno dos milhões de refugiados potenciais deste conflito. A escalada da guerra promovida por EUA/União Europeia e seus agentes, de um lado, e pela Federação Russa, de outro, deve ser repudiada. Todo apoio à classe trabalhadora e aos oprimidos da Ucrânia em sua luta por derrotar o fascismo e impedir qualquer intervenção imperialista em seu país.
Passando o pano na Ucrânia fascista….