Trump: Não tão “louco” como parece

Tarifaço não é agressão aleatória. Copia McKinley, presidente estadunidense do século XIX, e baseia-se numa visão geopolítica baseada em intimidações e recompensas. Diante do declínio dos EUA, seu objetivo não é prevenir crises, mas lucrar com os caos

Foto: Chip Somodevilla/Getty Images
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Muita gente está dizendo que Trump está louco e que as suas políticas de tarifas não fazem sentido algum. Porém, esta suposição não nos leva a entender o que realmente está acontecendo. Sua política tarifária não é mera ação impulsiva. O fundamento é mais profundo. A economia dos EUA tem dependido fortemente de déficits massivos para sustentar a demanda doméstica, uma prática que agora se tornou insustentável. A imposição dessas tarifas por Trump é uma reação nascida dessa disfunção econômica mais profunda, isso é, são sintomas de uma crise mais ampla. Sua motivação principal é o declínio dos EUA, em grande medida similar ao império britânico antes da Primeira Guerra Mundial. Os EUA têm um déficit enorme (US$ 1,9 trilhão ou 7% do seu PIB), tem uma participação decrescente na manufatura global (17% contra 30% da China) e temem perder a batalha por novas tecnologias – IA, carros elétricos e painéis solares, por exemplo. Assim, as tarifas de Trump visam intimidar o resto do mundo a subsidiar uma retomada da economia dos EUA. 

A segunda Administração Trump marca uma mudança sísmica nos assuntos mundiais e exige conhecimento histórico para entendê-la. Alguns dias depois de assumir o cargo, Trump disse: “Fomos mais ricos de 1870 a 1913. Foi quando éramos um país tarifário. E então eles adotaram um conceito de imposto de renda. É hora de os Estados Unidos retornarem ao sistema que nos tornou mais ricos e poderosos do que nunca”. Durante diversos episódios, Trump vem comparando sua abordagem às políticas tarifárias do ex-presidente William McKinley do século XIX. Trump frequentemente elogia McKinley, desde que assumiu o cargo e durante a campanha eleitoral no ano passado. Em seu discurso de posse, ele se referiu a McKinley como um “grande presidente” que “tornou nosso país muito rico por meio de tarifas”.

William McKinley não é um presidente em quem a maioria dos americanos — ou, na verdade, a maioria das pessoas ao redor do mundo — pensa regularmente. O presidente Trump e seus assessores, no entanto, parecem ter pensado bastante na presidência de McKinley. Em meio às ameaças de Trump de anexar a Groenlândia, tomar o Canal do Panamá, confiscar Gaza, impor tarifas, eliminar agências federais e repelir o “wokeismo”, as influências de McKinley são onipresentes: de tarifas e protecionismo, ao imperialismo americano e ao “Fardo do Homem Branco”. Não foi coincidência que Trump assinou uma ordem executiva em 20 de janeiro renomeando o pico mais alto da América do Norte de “Denali”, um nome enraizado na herança indígena do Alasca, de volta para “Monte McKinley”, em homenagem ao 25º presidente dos EUA.

Antes de sua presidência, McKinley ficou conhecido por defender tarifas como um meio de proteger as indústrias dos EUA da concorrência estrangeira. Conhecido como um “entusiasta de tarifas”, o legado de McKinley inclui a lei tarifária de 1890 que leva seu nome, que aumentou substancialmente os impostos alfandegários sobre produtos estrangeiros. Na década de 1890, as tarifas alfandegárias representavam quase metade da receita federal, enquanto hoje representam menos de 2%. McKinley viveu durante um período em que os EUA se tornaram uma superpotência global. Entre 1865 e 1900, as exportações dos EUA quintuplicaram de US$ 261 milhões para US$ 1,53 bilhão. O crescimento mais rápido foi na indústria, onde empresas dos EUA emergiram como líderes mundiais, exportando bens ao redor do globo e alimentando superávits orçamentários de centenas de milhões de dólares. O progresso extraordinário na ciência, invenção e indústria nos EUA da Guerra Civil até 1900 foi em uma escala com o que a Grã-Bretanha havia alcançado de 1760 a 1830 durante a reunião da Revolução Industrial. A indústria dos EUA cresceu com famílias como Rockefeller, Carnegie, Vanderbilt e Westinghouse acumulando vastas fortunas. Além disso, McKinley foi a presidência imperialista americana anexando o Havaí, e depois da guerra com a Espanha anexando Porto Rico, Guam, Filipinas e Samoa Americana, bem como o controle de Cuba. Que o presidente Trump admire o presidente McKinley e imagine a anexação do Canadá, Groenlândia e Panamá se encaixa na visão de mundo.

Assim como McKinley, Trump também vê as tarifas como um meio de transferir o fardo da arrecadação de impostos dos americanos por meio de um Internal Revenue Service para a tributação de estrangeiros por meio de um External Revenue Service. Trump repete crenças antigas dentro dos círculos libertários e corporativos sobre os males da tributação doméstica. Se o governo federal cortar seu orçamento e gastar trilhões de dólares a menos a cada ano por meio da eliminação de agências como a USAID e o Departamento de Educação — juntamente com o aumento de mais receitas por meio de tarifas — isso, em teoria, reduziria substancialmente ou eliminaria os impostos pagos pelas corporações americanas e pelo povo americano.

Para Trump, grandes e persistentes déficits anuais no comércio de bens dos EUA levaram ao esvaziamento da base industrial, resultando em falta de incentivo para aumentar a capacidade industrial nacional avançada e tornando a base industrial de Defesa dependente de adversários estrangeiros. Visando uma “agenda de comércio recíproco”, Trump diz que a aplicação de taxas visa que as empresas norte-americanas voltem a investir no país. Em sua visão, essas tarifas buscam abordar as injustiças do comércio global, repatriar a indústria e impulsionar o crescimento econômico do povo americano. Trump reconhece que aumentar a manufatura nacional é essencial para a segurança nacional dos EUA. Para ele, a necessidade de manter uma capacidade de produção nacional resiliente é particularmente aguda em setores avançados como automóveis, construção naval, produtos farmacêuticos, equipamentos de transporte, produtos de tecnologia, máquinas-ferramentas e metais básicos e fabricados, onde a perda de capacidade pode enfraquecer permanentemente a competitividade dos EUA. O declínio na produção industrial reduziu a capacidade de produção dos EUA. Em 2023, a produção industrial dos EUA como parcela da produção industrial global foi de 17,4%, abaixo dos 28,4% em 2001. De 1997 a 2024, os EUA perderam cerca de 5 milhões de empregos na indústria e experimentaram uma das maiores quedas de empregos na indústria da história.

Durante seu discurso conjunto ao Congresso, Trump destacou um de seus principais argumentos de venda para tarifas: “Queremos cortar impostos sobre a produção doméstica e toda a manufatura”, disse ele. “Se você não fabricar seu produto na América, no entanto, sob a administração Trump, você pagará uma tarifa e, em alguns casos, uma bem grande”. Trump acredita que os efeitos das tarifas devem fortalecer a economia dos EUA e levar a uma realocação significativa em setores como manufatura e produção de aço. Num relatório da Casa Branca, aponta-se que “uma tarifa global de 10% faria a economia crescer em US$ 728 bilhões, criaria 2,8 milhões de empregos e aumentaria a renda familiar real em 5,7%”. Trump diz que o prêmio máximo — estimular mais produção nos EUA e recuperar o status do país como um reduto industrial — valerá a pena a turbulência. Por isso, como disse Michael Stutchbury, o “Dia da Libertação” de Trump corre o risco de remontar aos anos 90. Da década de 1890.

A mais recente enxurrada de tarifas de Donald Trump — cobradas contra importações da China, UE, México, Canadá e Reino Unido — desencadeou uma onda global de pânico. Os mercados de ações estão caindo, as relações comerciais estão se desintegrando e a ameaça de recessão está mais uma vez perseguindo a economia global. Quase US$ 9 trilhões foram cortados do valor das ações dos EUA na última semana, com possivelmente mais por vir esta semana, já que as tarifas ameaçam causar um surto de inflação e uma recessão, a pior de todas as combinações.

Peter Bloom apontou que as tarifas de Trump não são atos aleatórios de agressão econômica. Elas são ferramentas cuidadosamente colocadas de alavancagem política — destinadas a punir a dissidência e recompensar a obediência. Se as tarifas parecem irracionais através das lentes da economia tradicional, elas fazem todo o sentido quando vistas através das lentes do capitalismo de crise. Este é o manual: fabrique uma disrupção, crie volatilidade e deixe os bem posicionados lucrarem com as consequências. Isso não é novidade. As elites neoliberais há muito usam crises — sejam elas naturais, financeiras ou geopolíticas — como oportunidades para reestruturar economias a seu favor. O objetivo não é prevenir crises, mas sim possuí-las, transformar catástrofes sociais e econômicas em uma série de ganhos privatizados. À medida que os mercados quebram e as rotas comerciais entram em colapso, os investidores vinculados à rede Trump podem abocanhar ativos subvalorizados, explorar o estímulo do governo e revendê-los com lucros enormes. É uma desvalorização de ativos em escala global. É por isso que os mercados financeiros não estão meramente reagindo à incerteza comercial — eles estão antecipando uma redistribuição de poder. Os mercados não estão quebrando porque Trump calculou mal. Eles estão quebrando porque o sistema está sendo reiniciado. E quando a fumaça se dissipar, a questão não é quem pagará o preço, mas quem será o dono dos destroços.

Porém, diante da eminente reorganização das cadeias globais de valor, Trump conseguirá atingir seus objetivos? Será possível substituir a taxação interna pela externa? As indústrias voltaram para os EUA? Seu tratamento de choque terá os efeitos delineados? A guerra comercial de Trump significa que estamos entrando em uma fase qualitativamente nova na história do capitalismo?

As consequências das ideias de McKinley no segundo governo Trump ainda estão no começo. Entretanto, nota-se que seja improvável que uma parcela significativa de fabricantes com fábricas no exterior venha a mover cadeias de suprimentos estabelecidas para o outro lado do mundo sob a ameaça de tarifas intermitentes cuja duração é incerta em um clima econômico tumultuado. Aqueles que o fizerem teriam que lidar com severa escassez de trabalhadores qualificados. Mesmo que uma parcela considerável fosse transferida para os EUA, o número de empregos criados seria relativamente pequeno, com uma produção altamente mecanizada. Pode-se, assim, alcançar no limite um resultado intermediário, retardando a dinâmica do fluxo comercial desfavorável assim como ganhar com a recessão em outros países. Assim como os EUA podem estar cometendo um erro que prejudicará sua própria posição global, também podem aproveitar sua posição dominante para extrair de outros países os recursos para sua reindustrialização.

De mais concreto, as políticas unilateralistas de Trump, desde o enfraquecimento das instituições internacionais até sanções indiscriminadas, corroem a posição dos Estados Unidos como “guardiões da ordem liberal”, além de tornar a necessidade de se libertar da hegemonia baseada no dólar um discurso dominante. Os EUA são uma potência muito mais fraca do que no passado. Em 1890, os EUA não tinham grandes competidores. Agora tem a China com um dinamismo econômico e estabilidade política superior aos EUA e que está se levantando para transformar “crise em oportunidade” na redefinição do novo sistema de comércio global. Isso é, diante da ofensiva de Trump, a China e aliados agora têm a oportunidade de capitalizar esse momento histórico criando instituições paralelas para redefinir as regras globais. Uma dessas iniciativas é a expansão do BRICS para o BRICS+, aproveitando que diversos países devem reduzir sua dependência dos mercados ocidentais tradicionais e se integrar mais profundamente ao ecossistema industrial da Ásia. Com isso, outros países buscarão novos mercados e possivelmente buscarão alternativas ao dólar como moeda de reserva. O certo é apenas que a era da globalização baseada em regras e do livre comércio acabou. Estamos entrando em uma nova fase — mais protecionista, arbitrária e perigosa.

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