Raízes da violência no Equador

Em profunda crise socioeconômica, país tornou-se ponte do tráfico para EUA e Europa. Privatização de segurança e promessas de combate ao crime desafiaram facções, que reagiram. Agora, violência é capitalizada para direita autoritária governar

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A administração do atual presidente Daniel Noboa representa o ponto culminante de três anos marcados por episódios de violência intensa. A campanha eleitoral do ano passado, notoriamente marcada pela extrema violência, chegou ao ápice com o assassinato de diversos candidatos e políticos, criando um clima de terror generalizado. Este contexto de tumulto e instabilidade agora se reflete na gestão de Noboa, que herda um cenário desafiador, demandando a implementação urgente de medidas para restabelecer a ordem e reconquistar a confiança da sociedade.

Ao longo dos últimos sete anos, observou-se um desmantelamento progressivo do Estado e a suspensão de instituições cruciais, como o Ministério da Justiça, acompanhado da supressão de políticas de segurança interna. A ascensão do crime organizado está proporcionalmente relacionado a essas medidas, culminando na transformação do Equador, antes considerado o segundo país mais seguro da América Latina, em um dos mais inseguros.

Exilado político na Bélgica, o ex-presidente Rafael Correa (2007-2017) esclareceu que “o Equador chegou a este ponto de violência depois de sete anos de destruição e desaparição do Estado de Direito”. Os “governos de Guillermo Lasso (2021-2023) e  Lenín Moreno (2017-2021) são os culpados pelo que está passando”, ressaltou Correa, frisando “nunca ter visto um processo de destruição em época de paz como no caso equatoriano”. Essa destruição, segundo Correa, foi caracterizada por uma série de políticas que minaram as estruturas estatais e enfraqueceram a segurança interna, abrindo espaço para a proliferação do crime organizado no país.

A transição da segurança interna soberana para uma abordagem securitista de mercado é um aspecto crucial a ser considerado. A privatização da segurança desempenha um papel central no problema atual, destacando-se pela inadequação das lógicas de mercado na resolução de questões de segurança.

Além das questões internas, a geopolítica desempenha um papel significativo. O estreitamento dos laços entre Equador e Estados Unidos, evidenciado por acordos de cooperação militar e legislação conjunta, cria um ambiente propício para a interferência estrangeira. Há possibilidade de tropas dos EUA atuarem no Equador, violando não apenas a Constituição do país, mas também a tradição latino-americana de ser uma zona de “paz”.

Conjuntura do política do Equador

O Equador, marcado por desafios históricos e mudanças significativas, viu seu cenário político moldado pelo boom do petróleo no início dos anos 2000. A gestão desse recurso trouxe benefícios econômicos, mas também desafios, destacando a vulnerabilidade do país à volatilidade dos preços globais da commodity.

A trajetória de Rafael Correa (2007-2017), ex-presidente em exílio na Bélgica por lawfare, exemplifica as divisões e tensões na política equatoriana. Seu governo, caracterizado por avanços sociais, enfrentou controvérsias e críticas, enquanto seu sucessor, Lenín Moreno (2017-2021) implementou uma guinada à direita, distanciando-se das políticas progressistas de Correa.

Guillermo Lasso assumiu a presidência em 2021, após vencer as eleições, e enfrentou desde então um cenário político desafiador, marcado por tensões e oposição significativa. O emprego da “morte cruzada”, dispositivo constitucional, que resultou na dissolução da Assembleia Nacional em maio de 2023, destaca-se como um ponto crucial nesse período turbulento.

A dissolução do parlamento foi percebida por muitos como uma estratégia política para enfrentar a oposição e consolidar o controle governamental, agravando as tensões pré-eleitorais. Lasso, que nunca deteve maioria parlamentar e enfrentava pedidos de impeachment, buscou uma reconfiguração do ambiente político por meio da convocação de eleições gerais antecipadas.

A chegada de Daniel Noboa à presidência, decorrente dessas eleições antecipadas, trouxe consigo um cenário de competição eleitoral renovado. No entanto, a situação política não se estabilizou, e o país enfrenta atualmente uma escalada de violência associada a bandos criminosos vinculados ao narcotráfico.

Confluência de crises

A atual crise equatoriana é resultado da confluência de três grandes turbulências. A primeira delas foi a crise das commodities, que teve início em 2014 e impactou significativamente a economia do país. O Equador, historicamente dependente de setores como petróleo e mineração, viu-se profundamente afetado pela volatilidade nos preços dessas commodities, o que resultou em instabilidade econômica e fragilidade fiscal.

A segunda turbulência foi a pandemia de Covid-19, que se revelou devastadora para o Equador, com 18 milhões de habitantes e cerca de 67 mil mortos, sendo Guayaquil o epicentro das tragédias. Além do impacto direto na saúde pública e as cenas de horror com centenas de corpos nas ruas, a pandemia desencadeou uma crise econômica, social e política, propiciando o recrutamento de jovens por facções criminosas e impulsionando as taxas de criminalidade em todo o território equatoriano.

A terceira turbulência refere-se ao já citado governo de Guillermo Lasso, eleito com minoria no Congresso. Diante de um legislativo com considerável poder, Lasso enfrentou uma contradição evidente. Em uma dinâmica em que o Congresso detém grande influência e o presidente possui a prerrogativa de dissolvê-lo, a tensão política complicou ainda mais a resposta efetiva às crises preexistentes.

Avanço do extremismo

A recente categorização, pelo presidente Daniel Noboa, de 22 grupos do crime organizado transnacional como organizações terroristas e “atores beligerantes não estatais” levanta preocupações sobre a aplicação equivocada do conceito de terrorismo.

É relevante ressaltar a possibilidade de emergência de um novo líder com características semelhantes a Nayib Bukele, personificado por Noboa, dadas as condições apresentadas pelo presidente de El Salvador. Desde sua ascensão ao cargo, Bukele tem desafiado os alicerces da República, representando uma ameaça à manutenção do Estado de Direito. O país enfrenta uma realidade em que mais de 1% da população está encarcerada, acompanhada por uma sequência de medidas autoritárias.

A advertência acerca do surgimento de um novo “Bukele” no Equador sublinha a preocupação com um potencial regime autoritário e concentração de poder, alertando para os perigos associados à erosão das instituições democráticas e do Estado de Direito. A prudência na implementação de medidas de combate ao crime organizado é crucial para evitar abusos e preservar os princípios democráticos fundamentais.

A Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) atribui a crise à radicalização das políticas neoliberais que destroem o Estado e aumentam a desigualdade. A “destruição das instituições estatais, incapazes de responder eficazmente”, é apontada como fator contribuinte para o recrutamento de jovens pelo crime organizado.

Carta branca

A atual crise, marcada por uma onda de violência, levou o presidente Daniel Noboa a decretar “Estado de exceção”, mobilizando as Forças Armadas e a Polícia Nacional para enfrentar grupos criminosos transnacionais. A escalada da violência, com fugas de líderes de gangues como “Fito” e “El Savage”, exige respostas enérgicas para restabelecer a ordem e a segurança.

Entretanto, a imposição do “Estado de exceção” suscita reflexões sobre as implicações políticas e sociais desse ato. Eleições em pleno clima de violência como a equatoriana do ano passado tendem a favorecer a direita, temos como exemplo o presidente salvadorenho Bukele. O endurecimento das leis e o emprego de medidas excepcionais, como a presença ostensiva do exército nas ruas e a suspensão de prerrogativas constitucionais, configuram um cenário que pode ser interpretado como uma expressão da direitização da América Latina.

Noboa, exercendo um mandato tampão de 17 meses até maio de 2025, encontra-se diante do desafio de lidar com a questão da violência, que se tornou premente durante seu governo. Para setores de direita, essa crise representa uma prerrogativa para a presença militar nas ruas, a suspensão de prerrogativas constitucionais e até mesmo a concessão de anistia prévia. Essa situação, com características de ditadura, sinaliza uma preocupante deriva autoritária e reforça a tendência de endurecimento político na região.

A oposição, liderada pela bancada da Revolução Cidadã (RC), respaldou as medidas emergenciais, destacando a necessidade de enfrentar as máfias e os bandos criminosos. Nesse contexto crítico, é notável o apoio incondicional do ex-presidente Rafael Correa às ações do presidente Noboa. Correa, atualmente em exilado, enfatizou a importância de unir esforços para superar a “guerra interna” em que o país se encontra, corroborando as medidas tomadas por Noboa para restabelecer a ordem e enfrentar os desafios iminentes, que incluem a recuperação econômica pós-pandemia e a busca por estabilidade política.

O chamado à unidade nacional, com respaldo de setores da oposição e apoio internacional de países como Brasil, Peru, Colômbia, Cuba e Bolívia, destacam a gravidade da situação.

Raízes do problema atual

A complexidade da situação exige uma investigação detalhada de três questões que ajudam a decifrar os elementos fundamentais dessa crise multifacetada.

1. Gangues e ascensão da violência

A crise de segurança no Equador atingiu seu auge nos últimos três anos, registrando um recorde histórico de homicídios em 2023. Com mais de 7.878 mortes, apenas 584 casos foram solucionados, evidenciando uma situação alarmante. O país emergiu como um importante centro regional de armazenamento, processamento e distribuição de drogas, fortalecendo mais de 20 quadrilhas criminosas operantes.

Essas gangues, como Los Choneros, Lobos, Lagartos e Tiguerones, desempenham um papel crucial na crescente violência, conectando-se aos grandes cartéis de drogas do México e da Colômbia. A morte do candidato presidencial Fernando Villavicencio em agosto do ano passado é o indicativo da ascendência dessas gangues sobre o controle político no país, revelando uma influência significativa dentro das instituições e da sociedade equatoriana.

A penetração dessas organizações criminosas não se limita apenas à população, mas também se estende à polícia e às Forças Armadas, evidenciando a corrupção sistêmica que permeia a estrutura do Estado. A fuga de líderes como Adolfo Macías, conhecido como “Fito”, e os motins em prisões, são sintomas diretos dessa influência avassaladora das gangues no Equador.

2. Eleição de Daniel Noboa

Daniel Noboa, presidente há apenas um mês e meio, assumiu o cargo em meio a uma crise de segurança iminente. Suas propostas centradas na economia e segurança conquistaram o apoio majoritário dos equatorianos, prometendo reformas nas prisões, medidas anti-crime rigorosas e avanços tecnológicos para combater o crime organizado.

No entanto, as intenções de Noboa tornaram-se um catalisador para a reação das gangues, demonstrando sua capacidade de desafiar a democracia equatoriana. A resposta rápida do presidente, declarando estado de emergência e buscando medidas mais rigorosas, parece ter inflamado ainda mais a hostilidade das gangues, levando a eventos como a invasão do canal de televisão TC em Guayaquil.

3. O mercado de drogas e conflitos territoriais

O Equador, estrategicamente localizado entre Colômbia e Peru, tornou-se um ponto crucial no mercado internacional de drogas. Aproximadamente um terço da cocaína colombiana passa pelo Equador antes de seguir para América do Norte e Europa. A desmobilização das FARC na Colômbia, após acordo em 2016, impulsionou grupos dissidentes e organizações vinculadas ao tráfico, descentralizando as cadeias de produção e distribuição de drogas.

A crescente presença de organizações criminosas internacionais, como os cartéis mexicanos Sinaloa e CJNG, intensificou os conflitos territoriais e aumentou a violência no Equador. A disputa por controle, aliada a múltiplas organizações criminosas de diferentes países, cria uma dinâmica complexa que contribui significativamente para a crise atual.

A capilarização do tráfico de drogas no norte do continente trouxe a entrada dos cartéis mexicanos no Equador. O vácuo deixado pela Colômbia, decorrente tanto da dissolução das FARC quanto da privatização das forças de segurança, foi preenchido por essas organizações criminosas. Contudo, o aspecto crucial dessa dinâmica é a economia dolarizada do Equador. A utilização do dólar como moeda, ao contrário da Colômbia e do Peru, que possuem moedas locais, torna as transações mais complexas e aumenta a atratividade do Equador para os cartéis internacionais.

Raízes sistêmicas

Superar essa crise exigirá não apenas ações imediatas e enérgicas, mas também estratégias a longo prazo que abordem as raízes sistêmicas do problema. A busca pela estabilidade e segurança no Equador requer uma abordagem integrada, envolvendo reformas institucionais, cooperação internacional e medidas socioeconômicas para desmantelar as estruturas que sustentam a violência no país.

Bruno Fabricio Alcebino da Silva é Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

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