A resposta do Irã aos novos planos dos EUA

Diante da guerra, Teerã busca blindar-se de ameaças ocidentais. Aprofunda laços com a Rússia e ataca alvos “terroristas” em seu entorno. O recado é claro à Washington e sua estratégia de encurralar o país através de novos acordos com o Paquistão e o Iraque

Equipe de resgate no local da explosão, após ataque do Estado Islâmico, durante cerimônia de homenagem a Qasem Soleimani, em Kerman, no Irã. Imagem: 3.jan.2024-Sare Tajalli / ISNA / AFP
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Por M. K. Bhadrakumar, no Indian Punchline, com tradução em A Terra é Redonda

Os impressionantes ataques iranianos com mísseis e drones contra os territórios de três países (Síria, Iraque e Paquistão), ao longo de 24 horas, e a decisão extraordinária de Teerã de anunciar sua responsabilidade por eles transmitiram uma mensagem contundente a Washington – seu estratagema de criar uma coligação de grupos terroristas ao redor do Irã será resolutamente combatido.

Que a estratégia dos Estados Unidos contra o Irã começou a assumir novas formas foi algo que emergiu após a operação do Hamas de 7 de outubro contra Israel, que erodiu a posição deste último como supremo regional. A aproximação entre Irã e Arábia Saudita, mediada pela China, e a inclusão de Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Egito nos BRICS colocaram os estrategistas norte-americanos em modo de pânico.

Já havia sinais, no segundo semestre de 2023, de que o eixo Washington-Tel Aviv estava planejando usar o terrorismo como único meio viável para enfraquecer o Irã e restaurar o equilíbrio regional a favor de Israel, o que é de importância crítica para o giro de Washington para a Ásia-Pacífico, que ainda precisa controlar a circulação de petróleo do Oriente Médio. A rigor, uma guerra convencional com o Irã já não é viável para os Estados Unidos, pois enseja o risco de virtual destruição de Israel.

Os futuros historiadores certamente estudarão, analisarão e chegarão a conclusões sóbrias no que respeita aos ataques a Israel pela resistência palestina em 7 de outubro. Na doutrina militar clássica, eles foram, por excelência, um ataque preventivo de grupos de resistência, antes que Estados Unidos e Israel manobrassem o rolo compressor seus grupos terroristas – como o Estado Islâmico e o Mujahideen-e-Khalq –, para se transformarem numa plataforma rival equiparável ao eixo da resistência.

O Irã está consciente da urgente necessidade de conquistar profundidade estratégica antes que os lobos se aproximem. Teerã vinha pressionando Moscou para acelerar um pacto estratégico bilateral, mas, sem surpresa [dada a situação na Ucrânia], os russos o estavam protelando. Um dos pontos chave na agenda da “visita de trabalho” do presidente Ebrahim Raisi a Moscou em 7 de dezembro era o da finalização do pacto, a partir de um encontro pessoal com o presidente Vladimir Putin.

Foi então que, no último dia 15 de janeiro, o Ministério da Defesa russo revelou, numa rara declaração, que o ministro Sergey Shoigu telefonou ao seu homólogo iraniano, Mohammad-Reza Ashtiani, para comunicar que Moscou havia concordado em assinar o pacto: “ambas as partes sublinharam o seu compromisso com os princípios fundamentais das relações russo-iranianas, incluindo o respeito incondicional pela soberania e integridade territorial de cada um, que será confirmado no importante tratado intergovernamental entre a Rússia e o Irã, logo que esse documento estiver finalizado”.

De acordo com a agência de notícias iraniana IRNA, Sergey Shoigu fez saber que o compromisso da Rússia com a soberania e integridade territorial do Irã será explicitamente declarado no pacto. A matéria acrescenta que “os dois ministros também salientaram a importância das questões relacionadas à segurança regional, e sublinharam que Moscou e Teerã continuarão nos seus esforços em conjunto para o estabelecimento de uma ordem mundial multipolar e para a negação do unilateralismo norte-americano”.

Dois dias depois, Maria Zakharova, porta-voz do Ministério do Exterior russo, disse aos jornalistas em Moscou que o novo tratado consolidará a parceria estratégica entre Rússia e Irã, e cobrirá toda uma gama de laços. “Esse documento não é apenas oportuno; ele já está atrasado” – acrescentou Maria Zakharova.

“Desde a assinatura do tratado atualmente em vigor, o contexto internacional mudou e as relações entre os dois países estão experimentando uma ascensão sem precedentes” – observou ela. Maria Zakharova disse que se espera que o novo tratado seja assinado durante o que ela designou como um próximo contato entre os dois presidentes.

De outra parte, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, foi citado pela agência de notícias estatal TASS, mencionando que uma data exata para uma reunião entre Putin e Raisi vai ser determinada. É evidente que algo de profundo significado para a geopolítica do Oriente Médio está acontecendo diante dos nossos olhos.

Basta dizer que os ataques de mísseis e drones do Irã contra alvos terroristas no dia 16 são uma demonstração vívida da sua assertividade para agir em legítima defesa no novo ambiente regional e internacional. Os assim chamados “representantes” do Irã – seja o Hezbollah ou os Houthis – atingiram a idade adulta, com ideias próprias, para decidir o seu próprio posicionamento estratégico dentro do eixo da resistência. Eles não necessitam de um sistema de suporte de vida de Teerã. Pode levar algum tempo até que os estrategistas anglo-saxônicos se habituem a essa nova realidade, mas eventualmente isso acontecerá.

Assim, seria claramente subestimado considerar os ataques de mísseis e drones do Irã como meras operações antiterroristas. No que respeita ao ataque às posições de comando do grupo terrorista Jaish al-Zulm, no Baluchistão paquistanês, ele ocorreu, curiosa e coincidentemente, um mês após a viagem de uma semana do chefe do Estado-Maior do Exército do Paquistão, general Asim Munir, a Washington.

Asim Munir se encontrou com altos funcionários norte-americanos, incluindo o secretário de Estado Antony Blinken, o secretário de Defesa Lloyd Austin, o presidente do Estado-Maior Conjunto das Forças dos Estados Unidos, general Charles Q. Brown, e o vice-conselheiro de segurança nacional, Jonathan Finer – além, é claro, a temível subsecretária de Estado Victoria Nuland, a força motriz por trás das políticas neoconservadoras do governo de Joe Biden.

Uma declaração oficial de Islamabad, no dia 15 de dezembro, durante essa viagem, afirmou que o Paquistão e os Estados Unidos “pretendem aumentar a atuação recíproca” em compromissos “mutuamente benéficos”. Afirmou que os dois lados discutiram os conflitos em curso na região e “concordaram em aumentar as interações entre Islamabad e Washington”. A declaração dizia ainda que “questões de interesse bilateral, de segurança global e regional e de conflitos em curso foram discutidos durante as reuniões. Ambas as partes concordaram em continuar seu envolvimento na exploração de potenciais vias de colaboração bilateral na busca de realização de interesses partilhados”.

A declaração acrescenta que durante a reunião entre os principais responsáveis da defesa dos dois países, “a cooperação no combate ao terrorismo e a colaboração na defesa foram identificadas como áreas cardinais de cooperação”. De sua parte, e de acordo com a declaração paquistanesa, Asim Munir teria sublinhado a importância de “compreender as perspectivas uns dos outros” sobre questões de segurança regional e desdobramentos que afetem a estabilidade estratégica no Sul da Ásia.

O Paquistão tem toda uma história de serviços aos interesses norte-americanos na região, e seu quartel-general em Rawalpindi tem sido o chofer dessa colaboração. O que no momento está em evidência é que as próximas eleições no Paquistão não desencorajaram a administração Joe Biden a estender o tapete vermelho para Asim Munir. Mas a melhor parte é que tanto o Irã como o Paquistão são suficientemente inteligentes para conhecerem os limites um do outro.

As intenções dos Estados Unidos são claras: flanquear Teerã por oeste e por leste, por meio de Estados falidos e fáceis de manipular. As reuniões organizadas às pressas em Davos, entre o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, e altos funcionários do Iraque e da representação étnica dos curdos, na sequência dos ataques iranianos explicitaram: (i) “a importância do [Curdistão] retomar as exportações de petróleo [para Israel], face ao apoio de Washington à “forte parceria da região do Curdistão com os Estados Unidos”; (ii) a importância de deter os ataques contra o pessoal norte-americano no Iraque e na Síria; (iii) o compromisso dos Estados Unidos em “melhorar a cooperação em segurança, como parte de uma parceria de defesa sustentável e de longo prazo”; (iv) o apoio norte-americano à soberania do Iraque; e (v) o convite de Joe Biden para que o primeiro-ministro iraquiano, Mohammed Shia’ Al Sudani, visite a Casa Branca “em breve”.

Em essência, Jake Sullivan manifestou a intenção norte-americana de reforçar sua presença no Iraque. Seus objetivos são os mesmos também no Paquistão. Washington confia em Asim Munir para garantir que o primeiro ministro deposto Imran Khan permaneça na prisão, independente do resultado das eleições no Paquistão.

Esse realinhamento estratégico surge no momento em que o Afeganistão escapa definitivamente da órbita anglo-americana, e a Arábia Saudita já não demonstra mais qualquer interesse em ser uma roda dentada da engrenagem americana ou de seguir se maculando com as forças do extremismo e do terrorismo.

M. K. Bhadrakumar, diplomata aposentado indiano, foi embaixador do seu país no Uzbequistão e na Turquia.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente no portal Indian Punchline.

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