Quem se importa com os bombardeios no Iêmen?

Mais de 400 mil já foram mortos, no massacre promovido pela monarquia saudita, para ampliar seu espaço estratégico no Oriente Médio. Em vez de solidariedade pelas vítimas, lá o Ocidente oferece armas e apagão midiático em favor dos algozes

Meninos sobre os escombros de uma casa destruída por ataques aéreos sauditas em Sana’a, Iêmen, 25 de agosto de 2017. Hani Mohammed | AP
.

Por Ahmed Abdulkareem no MintPress News | tradução de Maurício Ayer

Hajjah, Iêmen – “Somos brutalmente bombardeados todos os dias. Então por que é que o mundo ocidental não se importa como faz com a Ucrânia!!… É porque não temos cabelo louro e olhos azuis como os ucranianos?” – perguntou, de cenho crispado, Ahmed Tamri, iemenita e pai de quatro filhos, a respeito do efusivo apoio internacional e cobertura midiática da invasão russa na Ucrânia, em contraposição à total ausência de reação desse tipo à guerra no Iémen.

No fim de semana, um membro da família de Tamri foi morto e nove familiares ficaram feridos, após serem alvejados por um ataque aéreo da coalizão liderada pelos sauditas na remota área al-Saqf, na governadoria de Hajjah. Tamri afirma que al-Saqf foi submetida a uma brutal campanha de bombardeios sauditas durante os últimos sete anos – muito mais, diz ele, do que a Ucrânia suportou desde que foi invadida pela Rússia.

Apesar dos horríveis bombardeios contra civis iemenitas, as violações dos direitos humanos e os crimes de guerra da Arábia Saudita nem de longe atingiram o nível de cobertura e simpatia que a grande mídia ocidental tem corretamente dado à Ucrânia. “Eles derramam lágrimas pelos ucranianos, e ignoram nossas tragédias… Que hipocrisia e racismo!”, disse Tamri à MintPress News.

Os iemenitas perguntam o óbvio

Enquanto a invasão russa da Ucrânia prossegue pelo sexto dia, um efusivo apoio aos ucranianos continua a ser observado em todo o mundo ocidental. Os Estados Unidos, a Europa, a Austrália e o Ocidente em geral impuseram severas sanções contra a Rússia, em meio a uma enxurrada de discussões de emergência no Conselho de Segurança da ONU. A velocidade da retaliação ocidental – que inclui banir a Rússia da rede internacional de operações bancárias SWIFT (Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais) e convocações a tratar os russos como párias internacionais no esporte, cultura e até mesmo na ciência – deixou estupefatos os iemenitas, que vêm suportando uma implacável campanha de bombardeio e bloqueio aéreo, terrestre e marítimo ao longo de 2.520 dias consecutivos.

Desde quinta-feira, quando as forças russas começaram seu amplo ataque à Ucrânia, a Coligação liderada pela Arábia Saudita, apoiada pelos Estados Unidos, lançou mais ataques aéreos no Iêmen do que a Rússia lançou na Ucrânia. Em Hajjah, uma província cercada por artilharia pesada saudita, aviões de guerra da Coalizão efetuaram mais de 150 ataques aéreos contra as cidades de Haradh, Heiraan, Abbs e Mustab, matando dezenas de civis, incluindo um pai de seis filhos que foi morto no fim de semana por um drone saudita que fez alvo em seu carro enquanto viajava entre Shafar e o mercado Khamis Al-Wahat.

Desde que a incursão russa na Ucrânia começou, dezenas de civis, incluindo muitos migrantes africanos, foram mortos e centenas de feridos pela artilharia e ataques aéreos sauditas na província de Saada, densamente povoada, do Iêmen, declarada área militar pela Arábia Saudita no início de sua campanha militar em março de 2015.

Corpos de civis, em um ataque aéreo saudita que matou pelo menos 87 pessoas na fronteira Iêmen-Arábia Saudita, 22 de janeiro de 2022. Hani Mohammed | AP

Enquanto as câmeras da imprensa e os protestos de solidariedade manifestavam a tão necessária simpatia aos civis ucranianos, em Sana’a, Iêmen – que foi efetivamente transformada em uma grande prisão para os mais de 4 milhões de residentes e refugiados da cidade, graças a um devastador bloqueio saudita – os aviões de guerra bombardearam várias áreas densamente povoadas, incluindo o aeroporto. Foram lançados mais 160 ataques aéreos nas províncias de Marib, al-Jawf, al-Baydha, Taiz, Najran e Hodeida, o principal ponto de entrada de bens comerciais e de ajuda a um país que enfrenta a pior fome provocada pelo homem do século XXI.

De fato, parece que o regime saudita está se aproveitando da distração da mídia para intensificar os ataques a vários alvos sensíveis ao longo da fronteira Iêmen-Arábia Saudita e fortalecer seu domínio sobre a governadoria do Al-Mahra. Os Emirados Árabes Unidos, outra grande monarquia petrolífera apoiada pelo Ocidente que ocupa o Iêmen, também estão aproveitando a deixa, acelerando seu projeto de mudar a demografia da apreciada ilha de Socotra, desalojando os nativos em favor de colonos mais alinhados com as suas políticas. Enquanto os EUA preparam enormes carregamentos de armas e ajuda militar para os “combatentes da liberdade” ucranianos que se defendem contra uma invasão russa, os “rebeldes” iemenitas derrubaram um drone MQ9-1 de fabricação americana pilotado pelos EAU em al-Jawf e dois Boeings Insitu ScanEagles, igualmente de fabricação americana, em Marib e Hajjah.

Enquanto os países que passaram as últimas décadas construindo muros – literais e figurados – para manter do lado de fora os refugiados pardos e negros que, desesperados, fogem da violência e da invasão estrangeira em suas próprias terras, abrem seus braços, casas e corações para acolher os refugiados ucranianos em fuga, a Arábia Saudita lançou um exército de mercenários iemenitas sobre sua terra natal com a promessa de um visto permanente saudita e segurança para suas famílias, como pagamento por atacarem seus próprios compatriotas. Ironicamente denominada “Forças Felizes do Iêmen”, a unidade foi encerrada no final de 2021, de acordo com documentos militares vazados, com a missão de proteger a fronteira da Arábia Saudita com o Iêmen e garantir a segurança saudita em troca do visto permanente e do acesso aos serviços sociais sauditas que o acompanham.

Se formos comparar

Em termos do custo absoluto em vidas humanas, a tragédia no Iêmen foi muito mais mortal do que a da Ucrânia, onde 325 ucranianos, incluindo 14 crianças, perderam tragicamente suas vidas, de acordo com as autoridades do país [até o dia 2 de março]. É verdade que a guerra no Iêmen já dura mais de seis anos, mas comparativamente os números são assustadores. Desde 2015, a cifra de mortos já atingiu cerca de 400 mil pessoas, incluindo 3.900 crianças.

Essas mortes incluíram ataques a civis tão hediondos que atraíram a atenção da mídia, mas, inevitavelmente, nenhuma sanção, pouca condenação internacional, nem mesmo a cessação da ajuda militar e do apoio aos perpetradores. Bombardeios em escolas, funerais, salões de casamento, campos de refugiados, até mesmo um ônibus escolar cheio de crianças atingido pelo armamento estadunidense mais avançado no mercado, nada disso foi suficiente para provocar a reação que a Ucrânia obteve em menos de uma semana.

Desde 2015, os aviões de guerra da Coalizão liderada pela Arábia Saudita desfecharam sobre o Iêmen mais de 266 mil ataques aéreos, de acordo com a Sala de Operações do Exército do Iêmen, que registra os ataques aéreos contra alvos civis e militares. Setenta por cento desses ataques atingiram alvos civis. A crescente fumaça, os escombros e as chamas agora vistos na Ucrânia têm sido o status quo no Iêmen por anos, ao passo que a mídia ocidental frequentemente considera as imagens de pais tirando pedaços de seus filhos dos escombros de suas casas ou escolas, mostradas nos canais iemenitas, demasiado explícitas para serem exibidas.

Enfermeira segura uma menina subnutrida no hospital al-Sabeen em Sana’a, Iêmen, 27 de outubro de 2020. Khaled Abdullah | Reuters

Milhares de instalações economicamente vitais do Iêmen, como fábricas, instalações para armazenamento de alimentos, barcos de pesca, mercados de alimentos e navios-tanque de combustível foram bombardeados pela Coalizão Saudita apoiada pelo Ocidente. A infraestrutura crítica – incluindo aeroportos, portos marítimos, estações elétricas, tanques de água, estradas e pontes e incontáveis outras escolas, campos agrícolas e locais de culto – foi destruída ou danificada. O bloqueio saudita e os ataques aéreos aos hospitais paralisaram o sistema de saúde do Iêmen, deixando-o incapaz de lidar até mesmo com as necessidades mais básicas de saúde pública e deixando as 300 instalações que permanecem em todo o país funcionando por um fio, enquanto a covid-19 se espalha como fogo na mata.

Enquanto a condenação da invasão russa continua, os governos ocidentais enviaram imensos pacotes de ajuda à Ucrânia e as campanhas de mídias sociais preenchem as lacunas – já no Iêmen, as Nações Unidas anunciaram que até março provavelmente cortariam a ajuda para 8 milhões de pessoas em um país que a instituição reconhece como o local da pior crise humanitária do mundo. A insegurança alimentar no Iêmen paira sobre 80% das famílias. Quase um terço da população não tem alimentos suficientes para satisfazer até mesmo as necessidades nutricionais básicas. Crianças abaixo do peso e atrofiadas tornaram-se uma visão cotidiana. E o pior ainda está por vir, pois a invasão russa levou a um aumento dos preços dos combustíveis e dos alimentos ao mesmo tempo que os fundos humanitários se exaurem, de acordo com o Programa Alimentar Mundial da ONU.

Escolhendo a dedo qual invasão condenar

Em março de 2015, mais de 17 países liderados pela monarquia petroleira da Arábia Saudita lançaram uma invasão militar do Iêmen, um Estado soberano e membro das Nações Unidas. Ostensivamente, a guerra foi lançada para recolocar o presidente Abdrabbuh Mansur Hadi no poder após ele ter sido deposto na sequência de protestos populares em meio à Primavera Árabe.

Em 26 de março daquele ano, a Coalizão saudita, apoiada militar e diplomaticamente pelos Estados Unidos, iniciaria uma campanha de bombardeio que matou, mutilou e destruiu indiscriminadamente durante sete anos. A Arábia Saudita, possivelmente a ditadura mais repressiva do mundo, não apenas forçou Hadi de voltar ao poder sob o pretexto de proteger a democracia, mas também ocupou enormes faixas do sul do Iêmen desde o al-Mahara até o estreito de Bab al-Mandab.

Jornalistas, ativistas e políticos iemenitas ficam a refletir sobre a razão pela qual os governos ocidentais – em particular o governo Biden – condenam a Rússia por invadir a Ucrânia sob o pretexto da segurança nacional, enquanto defendem o “direito legítimo” do regime saudita de invadir o Iêmen sob o mesmo pretexto.

Apesar das horríveis violações dos direitos humanos realizadas pela Arábia Saudita no Iêmen, as nações ocidentais, e os Estados Unidos em particular, não apenas forneceram armas letais, treinamento, manutenção, inteligência e cobertura política e diplomática à monarquia, mas impuseram restrições à cobertura dos abusos dos direitos humanos do regime saudita no Iêmen, pressionando as empresas de tecnologia e de mídia social a excluir de suas plataformas e banir abertamente os ativistas e a mídia iemenitas que são críticos à guerra.

Iemenitas assistem a uma manifestação contra os EUA por sua decisão de designar os Houthis como uma organização terrorista estrangeira, em Sana’a, 25 de janeiro de 2021. Hani Mohammed | AP

Enquanto a grande mídia ocidental dá cobertura radiante aos ucranianos que resistem a seus invasores e ocupantes estrangeiros – e os líderes ocidentais aplaudem a firmeza e resistência dos ucranianos e lhes enviam ajuda, armas e apoio moral –, essa mesma mídia rotula os iemenitas como terroristas e os alvejam com bombas inteligentes e ataques com drones de fabricação americana. Os iemenitas que pegam armas contra as forças invasoras sauditas e inimigas são sancionados e rejeitados como procuradores do Irã por veículos da mídia liberal que afirmam opor-se à guerra.

Na segunda-feira, o Conselho de Segurança das Nações Unidas prorrogou um embargo de armas e uma proibição de viagem às forças iemenitas. A resolução condenou veementemente o que chamou de ataques transfronteiriços pelos “Houthis”, um termo depreciativo usado para se referir a Ansar Allah, a maior força única a desafiar a invasão e ocupação saudita. A resolução condenou ainda “ataques à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos”, referindo-se aos ataques de mísseis e drones de Ansar Allah aos aeroportos e instalações de armazenamento de petróleo da Coalizão liderada pela Arábia Saudita.

Comentando a resolução – que veio quando os EAU se recusaram a condenar publicamente a Rússia por sua invasão à Ucrânia, esperando obter o apoio russo para sua própria invasão do Iêmen – o líder da Ansar Allah, Mohammed al-Houthi, fez um pedido simples: que o alvo deliberado da Arábia Saudita de civis no Iêmen levasse a uma proibição de armas sauditas. Essencialmente, al-Houthi pediu que se encerre a aplicação os dois pesos e duas medidas, um pedido aparentemente impossível no clima político de hoje.

Leia Também:

5 comentários para "Quem se importa com os bombardeios no Iêmen?"

  1. Boa Noite sou brasileira . Tem médico conhecido Dr Radall collins ele estava no lemen foi prestar serviços ! Ele e natural de Curitiba Paraná. A última vez falou comigo ia mandar um pacote pra me aqui do Brasil . Depois recebi um e-mail que tinha que pagar 3.100 pra coisa dele chega como não tenho condições tô preocupada tem duas filhas . Me ajude a receber as coisas segundo ele a Internet e ruim não tem banco lá

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *