Paquistão: assim os EUA derrubaram Imran Khan

Quinto país mais populoso do mundo irá às urnas nesta semana, porém com cartas marcadas. Associados a Washington, militares depuseram e prenderam o líder político mais popular do país. Seu crime: mobilizou as maiorias e se recusou a ser submisso

Foto: Associated Press of Pakistan
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Por Jeffrey D. Sachs, no Common Dreams | Tradução: Antonio Martins

Um instrumento central da política externa dos EUA são a mudanças encobertas de regime, que equivalem a uma ação secreta de Washington para derrubar o governo de outro país. Há fortes motivos para acreditar que as ações dos EUA levaram à remoção do poder do primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan. Deposto em abril de 2022, ele foi preso a seguir, sob acusações fabricadas de corrupção e espionagem, e sentenciado esta semana a 10 anos de prisão, por acusações de espionagem. O objetivo político é impedir que o político mais popular do Paquistão retorne poder nas eleições de 8 de fevereiro.

A chave para as operações encobertas, é claro, é que elas são secretas e, portanto, podem ser negadas pelo governo dos EUA. Mesmo quando as evidências vêm à tona através de denunciantes ou vazamentos, como muitas vezes acontece, o governo dos EUA rejeita a autenticidade das evidências e a mídia mainstream geralmente ignora a história porque contradiz a narrativa oficial. Como os editores desses veículos não querem lidar com “teorias da conspiração”, ou simplesmente estão felizes em serem porta-vozes do poder estabelecido, dão ao governo dos EUA uma ampla margem para conspirações reais de mudança de regime.

É um processo surpreendentemente rotineiro. Um estudo de Lindsay O’Rourke, professora da Universidade de Boston, conta 64 operações encobertas de mudança de regime pelos EUA durante a Guerra Fria (1947 e 1989). Na verdade, o número foi muito maior porque ela optou por contar tentativas repetidas dentro de um país como um único episódio prolongado. Desde então, as operações de mudança de regime dos EUA continuaram frequentes, como quando o presidente Barack Obama incumbiu a CIA (Operação Sycamore Timber) de derrubar o presidente da Síria, Bashar al-Assad. Essa operação encoberta permaneceu secreta até vários anos após a operação e, mesmo então, foi pouco coberta pela mídia mainstream.

Tudo isso nos leva ao Paquistão, outro caso onde as evidências apontam fortemente para uma mudança de regime liderada pelos EUA. Neste caso, os EUA desejavam derrubar o governo do primeiro-ministro Imran Khan, renomado tanto por sua maestria no críquete de nível mundial quanto por sua proximidade com o povo. Seu carisma, independência e enormes talentos tornaram-no um alvo principal dos EUA, que se preocupam com líderes populares não alinhados com sua política.

O “crime” de Imran Khan foi ser muito cooperativo com o presidente russo Vladimir Putin e o presidente chinês Xi Jinping, enquanto também buscava relações normais com os Estados Unidos. O grande mantra da política externa dos EUA e o princípio ativador da CIA é que um líder estrangeiro está “ou conosco ou contra nós”. Líderes que tentam ser neutros entre as grandes potências correm o risco de perderem suas posições, ou até mesmo suas vidas, por instigação dos EUA, já que estes não aceitam neutralidade. Líderes que buscam neutralidade, como Patrice Lumumba (Zaire), Norodom Sihanouk (Camboja), Viktor Yanukovych (Ucrânia) e muitos outros, foram derrubados com a mão não tão oculta do governo dos EUA.

Como muitos líderes do mundo em desenvolvimento, Khan não quis romper relações com os EUA nem com a Rússia por causa da guerra na Ucrânia. Por pura coincidência de agendamento anterior, ele estava em Moscou para se encontrar com Putin no dia em que a Rússia lançou a operação militar especial (24 de fevereiro de 2022). Desde o início, Khan defendeu que o conflito na Ucrânia deveria ser resolvido na mesa de negociações, e não no campo de batalha. Os EUA e a União Europeia (UE) pressionaram líderes estrangeiros, incluindo Khan, para se alinharem contra Putin e apoiarem sanções ocidentais contra a Rússia, mas o primeiro ministro paquistanês resistiu.

Khan provavelmente selou seu destino em 6 de março de 2022, quando realizou um grande comício no norte do Paquistão. No evento, ele criticou o Ocidente, e especialmente 22 embaixadores da UE, por pressioná-lo a condenar a Rússia em uma votação nas Nações Unidas. Também criticou a guerra da OTAN contra o terror no vizinho Afeganistão, lembrando que tem sido absolutamente devastadora para o Paquistão, sem reconhecimento, respeito ou apreciação pelo sofrimento de seu povo.

Khan disse para as multidões que o ovacionavam: “Os embaixadores da UE nos escreveram uma carta pedindo-nos para condenar e votar contra a Rússia… O que vocês acham de nós? Que somos seus escravos? .Que faremos o que vocês dizem?”. Ele acrescentou: “Somos amigos da Rússia, e também somos amigos dos Estados Unidos; somos amigos da China e da Europa; não estamos em nenhum campo. O Paquistão permanecerá neutro e trabalhará com aqueles que tentam acabar com a guerra na Ucrânia.”

Do ponto de vista dos EUA, “neutro” é uma palavra de desafio. A sombria verdade foi revelada para Khan em agosto de 2023 por repórteres investigativos do The Intercept. Apenas um dia após o comício de Khan, o Secretário Assistente de Estado dos EUA para Assuntos Sul e Centro-asiáticos, Donald Lu, encontrou-se em Washington com o Embaixador do Paquistão nos EUA, Asad Majeed Khan. Após a reunião, o embaixador Asad enviou um cabo secreto (um “cifrado”) de volta a Islamabad, que foi então vazado para o The Intercept por um oficial militar paquistanês.

O cabo relata como o Secretário Assistente Lu repreendeu o então primeiro-ministro Khan por sua posição neutra. O cabo cita Lu dizendo que “as pessoas aqui e na Europa estão bastante preocupadas com o motivo pelo qual o Paquistão está adotando uma posição tão agressivamente neutra (sobre a Ucrânia), se tal posição é sequer possível. Não nos parece uma posição tão neutra.”

Lu então transmitiu a linha para o embaixador Asad. “Eu acho que se a moção de desconfiança contra o primeiro-ministro tiver sucesso, tudo será perdoado em Washington, porque a visita à Rússia está sendo vista como uma decisão do primeiro-ministro. Caso contrário, acho que será difícil prosseguir.”

Cinco semanas depois, em 10 de abril de 2022, com a ameaça direta dos EUA pairando sobre o poderoso exército paquistanês, e com o controle do exército sobre o parlamento, o este destituiu Khan em uma moção de desconfiança. Em questão de semanas, o novo governo seguiu com acusações descaradamente fabricadas de corrupção contra Khan, para prendê-lo e impedir seu retorno ao poder. Em uma reviravolta completamente orwelliana, quando Khan tornou conhecida a existência do cabo diplomático que revelou o papel dos EUA em sua destituição, o novo governo acusou-o de espionagem. Ele agora foi condenado por essas acusações a mais 10 anos de prisão (além dos 14 iniciais), com o governo dos EUA permanecendo em silêncio sobre tal patifaria.

Quando questionado sobre a condenação de Khan, o Departamento de Estado teve o seguinte a dizer: “É uma questão para os tribunais paquistaneses.” Uma resposta tal é um exemplo brutal de como a mudança de regime liderada pelos EUA funciona. O Departamento de Estado apoia a prisão de Khan por ele ter tornado públicas as ações de Washington.

Portanto, o Paquistão realizará eleições em 8 de fevereiro com seu líder democrático mais popular na prisão e com o partido de Khan sendo alvo de ataques implacáveis, assassinatos políticos, censura na mídia e outras repressões pesadas. Em tudo isso, o governo dos EUA é totalmente cúmplice. E assim acabam os “valores democráticos” da América. O governo dos EUA foi vitorioso por enquanto – e desestabilizou profundamente uma nação de 240 milhões de pessoas, com poderio militar nuclear. Só a libertação de Khan da prisão e sua participação em eleições limpas poderiam restaurar a estabilidade

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