O insólito “drible” chinês no capitalismo

Nos anos 80, Pequim iniciou experimento inédito: convidar o capital, sob as rédeas de um Estado forte e socialista. Em meio a avanços sociais, país tornou-se potência. Resultados sugerem: é possível ir muito além da socialdemocracia e da globalização neoliberal

Foto: VCG/Getty Images
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Título original: O processo de superação do capitalismo e o caráter do socialismo

A intenção principal deste texto, que é um fragmento dentro de uma série [leia o primeiro] , é realizar uma análise da realidade contemporânea e expor a sua fundamentação. Nele estão delineados aspectos centrais da dinâmica capitalista contemporânea, o estágio atual da superação do capitalismo mundial e o papel e a relevância da China socialista neste processo.

A história nos permite concluir que o capitalismo é uma forma de organização da produção e da vida social em geral, uma forma de sistema social, que permite, promove e, até, assegura o desenvolvimento das forças produtivas da humanidade, ainda que de modo muito contraditório, muito destrutivo. De fato, o capitalismo tem propiciado o desenvolvimento econômico da humanidade, com uma escala, uma aceleração e uma intensidade que, ao que parece, nunca existiu antes na história conhecida das civilizações.

De um modo sintético, é certo dizer que a dinâmica econômica capitalista, em sua estrutura essencial mesma, promove o aumento geral da riqueza humana. Com o livre mercado, a competição entre os interesses privados, a luta de cada indivíduo, de cada família e de cada empresa pelos seus interesses próprios, resulta em aumento progressivo da produção social, ou seja, da riqueza de todos. A livre competição e a livre acumulação, capitalistas, promovem alguma racionalidade econômica na alocação dos recursos sociais e impulsionam o desenvolvimento da produtividade social, da ciência e da tecnologia, da riqueza social, enfim. Um dos aspectos centrais da lógica econômica capitalista é este impulso à reprodução e acumulação de capital, que a competição no mercado impõe às empresas, ao centros de produção capitalistas e, por extensão, também aos centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológico. É claro também que esta lógica, que impulsiona ao desenvolvimento da produção, requer um mercado consumidor igualmente expansionista. A economia capitalista, portanto, ao contrário de modos de produção anteriores, tem como condição intrínseca a produção em massa expansiva, logo, correspondentemente, o consumo de massas também expansivo, apesar das crises sistêmicas periódicas e da paradoxal pobreza que o sistema capitalista produz e reproduz constantemente. A economia capitalista apenas se realiza através do consumo das massas e, para ser mais preciso, do consumo das massas em expansão. Ou seja, a economia capitalista é uma economia de massas expansionista.

São estes os motores internos da economia capitalista, para o desenvolvimento da produção, para o aumento da riqueza geral das sociedades e para a ampliação do consumo das massas. E, com certeza, são eles que fizeram, e ainda fazem, a vitalidade histórica do capitalismo. Mas, ao desenvolver a produtividade social, ao desenvolver os meios de produção da humanidade, o capitalismo cria também as condições para que o modo de produção socialista progressivamente o supere. O capitalismo desenvolve os meios, os recursos materiais e intelectuais, os sistemas de produção e as bases científicas e tecnológicas para a produção social de nível superior, mais consciente e organizada, garantindo um desenvolvimento mais seguro e a prosperidade mais ampla e disseminada na sociedade.

Por sua estrutura econômica mesma, o capitalismo pressiona para a acumulação constante dos capitais privados, tendendo, portanto, necessariamente, à concentração de riquezas. A acumulação ilimitada, através da livre competição no mercado, tende a produzir uma imensa concentração das riquezas nas mãos dos capitalistas e, objetivamente, de um número relativamente pequeno destes. Há, portanto, um impulso constante para a concentração dos ganhos de riqueza nas mãos de poucos e, correspondentemente, para a restrição da riqueza nas mãos das massas. Além disto, o direcionamento estratégico da produção através da livre competição das empresas privadas, no mercado capitalista, resulta em um alto grau de irracionalidade geral no sistema produtivo e a própria alocação dos recursos produtivos, exclusivamente por mecanismos de mercado, termina sendo muito falha, envolvendo o sistema em crises frequentes, algumas de altíssima destrutividade.

O sistema capitalista mundial é marcado por altos níveis de pobreza e violência, que lhe são estruturais, as guerras são constantes e, nas grandes crises econômicas o capitalismo mostra, para além de qualquer dúvida, as suas grandes falhas e o seu fracasso na alocação e na reprodução dos recursos sociais de produção. O capitalismo é profundamente explorador, injusto e destrutivo.

Ainda assim, a economia capitalista consegue persistir em desenvolvimento acelerado, quando consideramos o longo curso da história. Eu entendo que isto só tem sido possível, até agora, pelos instrumentos socialistas que se desenvolveram dentro do sistema econômico capitalista mundial.

As tendências autodestrutivas para o sistema econômico mundial e as suas terríveis consequências sociais, inerentes à lógica própria da economia capitalista, as tendências à ampliação da exploração social e à desorganização da produção, à alocação incorreta de recursos e a crises periódicas extremas têm sido mitigadas e corrigidas com conquistas sociais que controlam e reparam as desigualdades de riqueza e poder e as desordens econômicas. O socialismo se desenvolve dentro e em contraposição ao capitalismo, como uma resposta para as necessidades de um mínimo de estabilidade social, de bem estar e de dignidade individuais, e para a própria subsistência do sistema de produção social mundial.

Considerando-se os últimos 150 anos, por exemplo, não há como negar que tenha sido um período de grande socialização do capitalismo. Este é justamente o período de consolidação de um sistema econômico-social capitalista mundial. Um período de imenso desenvolvimento científico, tecnológico e produtivo e de grande integração da economia mundial, que pode ser chamado de capitalismo contemporâneo, ou, sistema capitalista mundial contemporâneo. Não há dúvidas que, neste período, se desenvolveram, dentro do sistema capitalista, muitos recursos e instrumentos de controle social da produção, de regulação pública das finanças e da produção, assim como de proteção e de promoção social, para os grupos desprotegidos e explorados pela dinâmica social capitalista. Todos sabemos que estes recursos e instrumentos só se desenvolvem de modo parcial e contraditório dentro do sistema capitalista mundial, através de lutas e conflitos sociais, muitas vezes extremos, com grandes idas e vindas, ganhos e perdas históricas, tanto no interior dos países quanto no plano internacional. Mas, também é óbvio que, no cômputo geral, eles realmente se desenvolveram muito neste período e que o sistema capitalista mundial só chegou até aqui por causa do desenvolvimento destes recursos públicos regulatórios. Sem estes instrumentos e recursos, a pobreza e as crises teriam sido muito piores e as guerras, civis e internacionais, teriam sido ainda mais frequentes e destrutivas.

A economia socialista, como a experiência chinesa comprova, é capaz de produzir uma melhor alocação de recursos, com maior benefício social, através da associação entre o controle estratégico e financeiro pelo Estado e um bom funcionamento da economia de livre de mercado, nos outros níveis da economia. O socialismo, com o funcionamento do livre mercado submetido ao direcionamento do planejamento central e ao forte controle estatal, regulatório e financeiro, da economia, conseguiu produzir uma alocação mais efetiva dos recursos produtivos sociais, uma alocação mais produtiva e mais segura, de modo a promover o desenvolvimento contínuo e acelerado por período de tempo que ainda não havia sido conquistado na história das potências capitalistas.

É o que a experiência chinesa mostra, sem sombra de dúvidas.

Algo que a experiência social-democrata, nos países centrais do sistema capitalista, e até mesmo as tentativas extemporâneas de implantação do comunismo, já mostravam, mas, ainda de modo muito limitado e irresolutivo. Estas, com certeza, não pareciam respostas suficientes para o sistema econômico mundial e, quando as forças produtivas mundiais deram novos saltos, as estruturas sociais-democratas e o comunismo precoce surgiram como limites e, a partir do início dos anos 80 do século passado, foram envolvidas e, em parte, vencidas pela nova onda liberal, pela onda neoliberal.

Neste mesmo tempo, a experiência socialista chinesa decolava para um desenvolvimento produtivo e social continuado e acelerado, sem precedentes na história contemporânea. Isto foi possível pela análise correta da realidade econômica mundial do seu tempo e pela correta compreensão do caráter do socialismo, como sendo uma economia de transição e superação do capitalismo, ainda dentro do sistema capitalista mundial, ainda capitalista, portanto. Sim, a China, a grande potência emergente no mundo atual, é socialista e foi justamente pelo reconhecimento consciente de sua condição socialista que ela arrancou e persistiu em desenvolvimento contínuo e acelerado nos últimos mais de 40 anos. A China, na virada da década de 1970 para 80, reconheceu que era impossível e irracional tentar implantar o comunismo no país naquele momento histórico. Era impossível pelos recursos disponíveis, pelo nível de desenvolvimento naquela época e também porque é impossível e irracional tentar implantar o comunismo em um só país, ou numa parcela limitada e secundária do sistema capitalista mundial. O comunismo deve pressupor um desenvolvimento ainda bem maior das forças produtivas em toda a humanidade e uma integração mundial também muito mais ampla e intensa do que aquela que havia no final dos anos 1970. E até mesmo do que já temos na atualidade. Portanto, a China e o mundo, obviamente, teriam que passar por um período de transição de muitas décadas ou de alguns séculos, pelo menos. A China teria que ser ainda capitalista por um longo tempo. Mas, colocando a dinâmica capitalista de mercado sob o controle estratégico e financeiro do Estado socialista. Isto propiciou o sucesso econômico contínuo e intenso da China, desde então e até os dias de hoje.

Este sucesso, que já não pode ser ignorado, confirma, de modo incontestável, que o controle estratégico e financeiro da economia por forças sociais além do mercado pode ser, e é, mais efetivo que a regulação apenas pelo mercado. A história do sistema capitalista contemporâneo já mostrava que a regulação pública é, na verdade, necessária para a simples continuidade do sistema, dada a gravidade dos desequilíbrios e das crises que assolam a economia mundial na contemporaneidade e que, sem esta regulação, assolariam ainda muito mais. Mas, ainda restava muita dúvida e muitas vezes parecia que esta regulação apenas criava mais problemas e entraves e que a liberdade do mercado seria o único recurso realmente eficaz na regulação da economia. A história já nos mostrava que, ao contrário, o capitalismo, deixado por si mesmo, apresenta uma tendência inexorável para a desigualdade extrema e termina gerando erros extremos na alocação dos recursos sociais de produção e grandes crises econômicas cíclicas, com consequências muito danosas para o próprio desenvolvimento econômico e catastróficas para a sociedade, sobretudo para os trabalhadores e pobres. Não teríamos mesmo chegado até aqui sem os diversos recursos e instrumentos públicos de regulação econômica e proteção social que se desenvolveram nestes últimos 150 anos.

Agora já podemos entender, também, com mais segurança, o significado e os limites da onda neoliberal do final do século passado, que está findando. É apenas um movimento ondular característico do processo de desenvolvimento do sistema capitalista mundial. A onda neoliberal da economia mundial representou uma resposta do sistema aos desafios econômicos do momento e deve, agora, ceder espaço à nova onda socialista, que já está em franco crescimento no mundo, capitaneada pelo grande desenvolvimento da China e pelo seu papel de locomotiva (de trem bala, na verdade) na integração econômica e social mundial. De fato, nenhuma economia se beneficiou mais da onda neoliberal e da nova globalização que a economia socialista chinesa, tanto que chegamos finalmente ao ponto em que os liberais, que propugnaram pela globalização, agora regridem para ideologias de desintegração da economia mundial, para o nacionalismo, a xenofobia, o fascismo e as guerras. Os meios de produção atuais, incluindo as tecnologias de informação e comunicação são muito mais adequadas à economia socialista. Não há como negar que os meios de produção atuais permitem muito melhores níveis de informação social geral e, portanto, de eficiência do planejamento central, do que em qualquer momento anterior na história contemporânea. O mesmo se pode falar do desenvolvimento teórico e prático dos instrumentos e recursos do sistema financeiro e de regulação e gestão econômica em geral, assim como do nível tecnológico e da integração transnacional da produção social mundial. Tudo isto interessa ao socialismo e tudo isto é, já, condição e resultado do próprio socialismo. É o desenvolvimento do socialismo, dentro e em contradição com o capitalismo.

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Um comentario para "O insólito “drible” chinês no capitalismo"

  1. deusdete disse:

    O capitalismo de estado chinês não é modelo para nada e dependente dos circuitos deficitários do pacífico. A China foi construída pelo capitais internacionais e transnacionais, pelo imperialismo com sede nos EUA. É mais uma nação teleguiada igual todas as outras.

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