Equador: um capítulo abominável da diplomacia

Embaixadas mexicanas têm rica história de abrigar perseguidos políticos, desde os anos 30. Acolheram vítimas de várias ditaduras do mundo. Sua invasão não só viola o direito internacional: é ataque a tradição de apoio humanitário da América Latina

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“A guerra é meramente a continuação da política por outros meios” (Claude von Clausewitz).

Por Julio da Silveira Moreira, em A Terra é Redonda

A frase utilizada nesta epígrafe ilustra a atitude deplorável do presidente do Equador, Daniel Noboa, de ordenar a invasão da Embaixada do México em Quito, no último dia 5 de abril. A ação, flagrantemente violatória do Direito Internacional, é justificada pela ideia de que não há limites para combater o crime, um discurso e prática similar aos do vizinho da América Central, Nayib Bukele, presidente de El Salvador.

Ambos materializam a versão contemporânea do Estado de exceção permanente na América Latina. A violação da embaixada do México e as agressões ao agente diplomático Roberto Canseco é um capítulo horroroso da história da diplomacia latino-americana, no qual ainda estamos apenas na primeira página.

Antes de analisar os fatos recentes, devo contextualizar a famosa frase do general prussiano Clausewitz. Ela é parte do livro Da guerra, uma compilação de manuscritos publicada em 1832, um ano após seu falecimento. Um clássico da teoria militar, assim como a milenar A arte da guerra, do chinês Sun Tzu.

Clausewitz argumenta que toda ação militar deve ser entendida e conduzida dentro do contexto dos objetivos políticos que busca alcançar. Mas não está dizendo que a recíproca seja verdadeira, ou seja, que todo ato político seja inerentemente uma guerra. Muita coisa aconteceu depois da publicação desse texto, sobretudo as duas grandes guerras mundiais, que legaram ao mundo o primado da solução pacífica das controvérsias internacionais, sintetizado no artigo 33 da Carta das Nações Unidas:

As partes em uma controvérsia, que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a organismos ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha.

Mais do que isto, estamos falando do contexto latino-americano, que desenvolveu princípios e mecanismos avançados de diplomacia e solução de controvérsias, muito antes das guerras do século XX, no Congresso do Panamá, em 1826. Enquanto a Europa de Clausewitz se dilacerava nas guerras napoleônicas e na restauração das monarquias, a América Latina formava alianças para a defesa comum do território, o respeito mútuo à soberania, o sistema republicano, a abolição da escravidão e a integração comercial.

Par in parem non habet imperium

As teorias sobre igualdade e respeito mútuo entre Estados remontam a Santo Agostinho, que testemunhou a queda do Império Romano e assentou princípios de paz e justiça nas relações entre povos. Posteriormente, Hugo Grotius, que é considerado por muitos como fundador do Direito Internacional moderno, estabeleceu o conceito de igualdade soberana assessorando diretamente o Tratado de Paz de Vestfália (1648) e com sua obra “Do direito da guerra e da paz”. Daí resulta o princípio da imunidade de jurisdição, que assegura que um ente soberano não possa submeter a sua ordem interna outro ente soberano – aí está a base das relações diplomáticas contemporâneas.

Já mencionada anteriormente, foi a Carta das Nações Unidas, em 1945, quem renovou e sistematizou as bases do Direito Internacional e das relações diplomáticas, estimulada por um arranjo geopolítico internacional que preconizava a paz e a segurança internacional, as relações amistosas entre as nações e a cooperação internacional para o desenvolvimento e os direitos humanos.

Embora o estabelecimento de missões diplomáticas e dos princípios da imunidade de jurisdição e da reciprocidade já viessem do costume internacional ao longo dos séculos, foram as Convenções de Viena de 1961, uma sobre relações diplomáticas e outra sobre relações consulares, que estabeleceram e sistematizaram o funcionamento das embaixadas, consulados e delegações internacionais. A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas assegura que “a finalidade de tais privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos, mas, sim, a de garantir o eficaz desempenho das funções das Missões diplomáticas, em seu caráter de representantes dos Estados”.

E no artigo 22, estabelece: (i) Os locais da missão são invioláveis. Os agentes do Estado acreditado não poderão neles penetrar sem o consentimento do chefe da missão. (ii) O Estado acreditado tem a obrigação especial de adotar todas as medidas apropriadas para proteger os locais da missão contra qualquer intrusão ou dano e evitar perturbações à tranquilidade da missão ou ofensas à sua dignidade. (iii) Os locais da missão, seu mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução.

A Convenção ressalta ainda que, até mesmo em caso de conflito armado, as instalações da embaixada devem ser protegidas, conforme artigo45, (a): “o Estado acreditado está obrigado a respeitar e a proteger, mesmo em caso de conflito armado, os locais da Missão bem como os seus bens e arquivos”.

O asilo diplomático: instituto latino-americano

A concessão de asilo, por parte de um Estado, a um estrangeiro que solicita proteção por sofrer perseguição política, é prática integrante do Direito Internacional e regulamentada por vários tratados e documentos internacionais, como parte do direito à mobilidade humana. Vale recordar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ao dispor que “todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países” (art. 14, 1), e a Constituição brasileira, que inclui a concessão do asilo político entre os princípios que regem o país nas relações internacionais (art. 4º, X).

Embora o asilo territorial seja a modalidade mais conhecida, quando o indivíduo se encontra presente no território do Estado ao qual solicita o asilo, há também o asilo diplomático, quando o indivíduo solicita proteção a um país através de suas instalações ou residências diplomáticas, no próprio território do Estado que o persegue. Como enfatiza Paulo Portela (p. 381), “o asilo é instituto de caráter eminentemente humanitário”.

Vale lembrar aqui, o princípio da hospitalidade, já definido por Francisco de Vitória em 1532, e reforçado por Immanuel Kant em 1795, ao enumerar os artigos definitivos para a paz perpétua entre Estados: “o direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal”, ressaltando que não se trata de uma filantropia, mas do “direito de um estrangeiro, por ocasião de sua chegada ao solo de outro, de não ser tratado de maneira hostil”. Contemporaneamente, o direito à hospitalidade é recuperado pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli, em seus escritos sobre a cidadania universal.

Há uma grande discussão se o Estado solicitado pode recusar a recepção do estrangeiro que alega perseguição, e o consenso é de que se trata de um instituto discricionário. A Resolução n. 3.212 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1967, reafirmou que o asilo é um direito (e não um dever) do Estado baseado em sua soberania, e deve ser respeitado pelos demais Estados. Para sua concessão, é necessária a caracterização da natureza política dos atos que levaram à perseguição e que esta seja atual ou iminente.

As pessoas que se encontram nessa situação não devem ter a sua entrada proibida pelo país asilante nem ser expulsas para estado onde podem estar sujeitas à perseguição ou repatriamento forçado ao país de origem. Nos anos seguintes, a noção de perseguição política foi ampliada para perseguição por motivos de raça, origem étnica ou nacional, por convicção política ou por lutar contra o colonialismo ou o apartheid.

O asilo, muitas vezes com o nome de exílio, tem um lugar especial na história das relações internacionais na América Latina. Vale lembrar a decisão do então presidente do México, Lázaro Cárdenas, de conceder asilo para os perseguidos pela ditadura fascista de Francisco Franco, durante a Guerra Civil Espanhola, na década de 1930. Esse ato notabilizou no México a tradição de asilo e da postura acolhedora do país em relação a indivíduos e grupos perseguidos por ideias ou ações políticas.

Isso que ficou marcado nas décadas seguintes, em diversos episódios, como a recepção de Fidel Castro e demais integrantes cubanos do Movimento 26 de Julho, em 1955, que anteriormente se encontravam presos em Cuba após a derrota no assalto ao quartel Moncada, em 1953. Já nos anos seguintes, a concessão de asilo foi marcante para acolher indivíduos perseguidos pelas ditaduras militares que se sucederam em diversos países, como Paraguai, Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.

Assim como o asilo territorial, o asilo diplomático tem tradição na América Latina. Aliás, é considerado um instituto tipicamente latino-americano, pois sua prática, legitimação e regulamentação ao longo das décadas avançou aí mais que em outras partes do mundo. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, foram firmadas três convenções interamericanas sobre esse tema: a de Havana (1928), a de Montevidéu (1933) e a de Caracas (1954).

Na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça, um caso célebre é o do revolucionário peruano Haya de la Torre, que procurou asilo na Embaixada da Colômbia. Na sentença de 1951, “embora considerando ilegal o ato, decidiu a Corte que a Colômbia não estava obrigada a entregá-lo, mas que as partes, pelos princípios de cortesia e boa vizinhança, deveriam chegar numa solução prática” (Mazzuoli, 2010, p. 739). Haya de la Torre permaneceu por cinco anos na Embaixada da Colômbia em Lima, até que foi concluído um acordo de cooperação permitindo sua saída do território peruano.

Vale lembrar o caso mais recente do então presidente de Honduras, Manuel Zelaya, que sofreu um golpe de Estado em 2009, com a invasão de sua residência presidencial, e buscou asilo na Embaixada do Brasil na capital, Tegucigalpa, ali permanecendo por 4 meses, até que um acordo mediado pelo presidente da República Dominicana permitiu que saísse com segurança de Honduras para aquele país.

Estado de exceção permanente

Anteriormente à invasão da embaixada mexicana, na mesma semana, o presidente Daniel Noboa havia declarado persona non grata à embaixadora mexicana no Equador, Raquel Serur, como reação a um comentário feito pelo presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador. Falando no contexto atual das eleições no México e nas preocupações com a violência política, o presidente deu o exemplo das recentes eleições no Equador, sobre como o assassinato do candidato Fernando Villavicencio definiu os resultados.

No dia seguinte, o ex-vice-presidente Jorge Glas, que se encontrava em asilo diplomático na embaixada mexicana, solicitou salvo-conduto para deixar o país, o que foi negado pelo presidente Daniel Noboa, que em seguida ordenou a invasão da sede diplomática com sua polícia nacional e veículos militares. O encarregado da embaixada, Roberto Canseco, tentou de todas as formas, com seu próprio corpo, defender a missão diplomática, como era seu dever institucional, até ser atirado ao chão e algemado pelos policiais equatorianos.

Percebemos aqui, uma escalada de conflito entre os dois países, até culminar com a ruptura de relações diplomáticas e retorno ao México de toda sua missão diplomática no país sul-americano. Uma série de países repudiou a grave violação praticada pelo Estado equatoriano, e alguns, como a Nicarágua, acompanharam o México na ruptura de relações diplomáticas com o Equador. O secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, declarou estar alarmado.

O editorial do jornal La Jornada, de domingo, 7 de abril, intitulado “Ecuador: barbárie oligárquica”, destacando que historicamente, apenas na Guatemala, durante um regime que visava eliminar povos indígenas opostos à expropriação de terras incentivada pela CIA, ocorreu uma situação semelhante. Diferentemente, nem as ditaduras de Augusto Pinochet no Chile nem a Junta Militar argentina violaram embaixadas mexicanas, que serviram de refúgio contra o terrorismo de Estado.

Essa ação desastrosa só confirma o discurso anterior de López Obrador, sobre como se utiliza da violência como arma política. Desta vez, a violência explícita não parte de uma oculta fração do crime organizado, mas do próprio mandatário do país, diante de todo o mundo, ao ordenar a ação de invasão da embaixada e sequestro de seu desafeto político.

Ao violar deliberadamente uma norma tão elementar do Direito Internacional, Daniel Noboa preconiza que sua política não encontra limite no direito, ou melhor, que o direito se curva e se ajusta aos interesses da política, perfazendo o que Giorgio Agamben, baseado em Walter Benjamin, Carl Schmitt e Hannah Arendt, definiu como Estado de exceção permanente.

Giorgio Agamben se refere à condição na qual os poderes governamentais operam de maneira contínua sob normas que deveriam ser aplicadas apenas em circunstâncias extraordinárias. Explora como o estado de exceção, originalmente concebido como uma resposta temporária a crises agudas, pode se tornar uma prática governamental constante, onde as liberdades civis são sistematicamente reduzidas ou suspensas sob o pretexto de necessidade ou segurança nacional.

Não é uma coincidência histórica e conceitual o fato de o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, que conseguiu que o congresso aprovasse um regime de exceção em março de 2022, que tem sido reiteradamente prorrogado até a presente data, restringido garantias individuais e realizando milhares de prisões massivas sem um devido processo e julgamento, incluindo manobras para obter maioria no congresso e conseguir sua reeleição. O mandatário equatoriano, por sua vez, anunciou em janeiro de 2024 que seu país havia entrado em um “estado de guerra”, depois de três dias de ataques de grupos do narcotráfico.

A invasão da embaixada mexicana no Equador destaca um desvio gravíssimo e preocupante dos princípios fundamentais que têm orientado as relações internacionais e diplomáticas na América Latina. Este ato não apenas transgride a imunidade diplomática, consagrada tanto pelo costume quanto pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, mas também contraria o legado de solidariedade e hospitalidade que define a região.

A América Latina, com sua rica história de abrigar perseguidos políticos, desde os exilados da Guerra Civil Espanhola acolhidos pelo México até o asilo concedido a Manuel Zelaya na Embaixada do Brasil, tem se destacado por práticas de asilo enraizadas em um profundo senso de humanidade e justiça. Este episódio coloca em xeque valores como a soberania, a integração e a solução pacífica de controvérsias, evidenciados desde o Congresso do Panamá em 1826, princípios que deveriam guiar as ações dos Estados na comunidade internacional.

A violação da embaixada mexicana, portanto, não apenas representa um ato isolado de transgressão, mas sim uma ameaça aos ideais de cooperação, respeito mútuo e apoio humanitário que têm sido pilares das relações diplomáticas e do direito de asilo na América Latina.

Julio da Silveira Moreira é professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).


Referências

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