Fiori: a Peste, o Mercado e a Guerra

China reforça seu grande projeto, que mira 2050. União Europeia se esgarçará. EUA confiarão na força militar e financeira. Neoliberalismo finge-se de morto – mas tentará regressar, como em 2008… E Brasil arrisca-se a manter triste sina

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José Luís Fiori, entrevistado por Eleonora de Lucena, no Tutameia | Imagem: autoria desconhecida, a Peste Negra em Constantinopla, Museu de Arte Walters, Universidade de Georgetown

Qual o tamanho e quais os aspectos principais da crise vivemos? Já é possível prever alguma coisa do futuro? Faz sentido compará-la com a crise econômica de 29? Aliás, esta crise tem alguma comparação possível?

Por enquanto, a crise que estamos vivendo tem duas grandes “causas” ou dimensões fundamentais: uma biológica ou epidemiológica, que é a pandemia do novo Coronavirus, que já atingiu mais de 190 países e mais de um milhão de pessoas ao redor de todo mundo, e a outra econômica ou energética, associada à guerra de preços e a queda do preço do barril de petróleo que caiu de U$70 para U$23 em apenas uma semana, provocando um terremoto financeiro em todo mundo. É a maior crise da indústria do petróleo dos últimos cem anos, mas ela acabou se confundindo com a pandemia que se transformou no fator determinante da queda da produção e da demanda do óleo em todo mundo – mas particularmente na China, nos EUA e na Europa. Por isso pode-se dizer para simplificar a conversa, que a dimensão determinante da crise mundial, neste momento, é a sua dimensão epidemiológica.

Os germes e as grandes epidemias têm vida própria, e reaparecem através da história com uma frequência cada vez maior, apesar de que o reaparecimento periódico não obedeça a nenhum tipo de regra ou de ciclo conhecido e previsível. No caso específico desta última epidemia, não se decifrou ainda o vírus, não se conhece seu desenvolvimento e nem se sabe da possibilidade de que ele tenha recidivas onde já foi controlado. Portanto, desde logo, partindo de um ponto de vista estritamente biológico e médico, é muito difícil ainda fazer qualquer tipo de previsão sobre o futuro desta primeira grande peste do século XXI.

Nestes momentos de grande medo e imprevisibilidade, é muito comum que se façam comparações com a intenção de ajudar a pensar e prever o futuro, mas estas comparações são sempre limitadas e às vezes prejudicam mais do que ajudam, mesmo quando se restringem ao campo econômico. No caso das comparações com 1929, ou mesmo com a crise financeira de 2008, é importante ter presente que estamos falando, nos dois casos, de crises endógenas da economia capitalista, enquanto que no caso desta crise atual, estamos falando de uma crise que atinge a economia capitalista mas que foi provocada por um fator externo à própria economia, e que não obedece às chamadas “leis econômicas”, mesmo quando possa provocar um estrago econômico e social equivalente ao das crises econômicas que foram mencionadas.

Da mesma forma, é muito comum comparar ou associar as grandes epidemias com as guerras, como se as duas viessem sempre juntas. Ou ainda, dizer que as grandes pestes produzem sempre grandes inflexões, mudanças ou rupturas na trajetória das sociedades e do próprio sistema mundial. Nenhuma destas teses tem sustentação empírica ou validez universal. É verdade que quando as grandes pestes surgem ou se difundem junto com grandes guerras, elas tendem a ser mais rápidas e violentas, como foi o caso, por exemplo, da chamada “gripe espanhola”, que se difundiu logo depois da Primeira Grande Guerra, e que matou em torno de 50 milhões de pessoas em apenas dois anos, entre 1918 e 1920. No entanto, existem inúmeras outras epidemias que surgiram e se difundiram sem nenhuma relação com guerras, como foi o caso – só para citar algumas mais recentes – da febre amarela, sarampo, malária, varíola, tuberculose, ou mesmo a epidemia do HIV, que já infectou mais de 40 milhões de pessoas e matou mais de 20 milhões em todo o mundo, sem ter nenhuma ligação direta ou causal com grandes guerras.

Da mesma forma, pode-se dizer – mesmo com o perigo do anacronismo histórico – que a Peste de Justiniano (527-569), que durou dois séculos e matou mais 100 milhões de pessoas, teve uma relação muito estreita com o fim do Império Romano. E o mesmo se poderia dizer – talvez com muito maior razão – que a Peste Negra, que matou metade da população europeia no século XIV, teve um papel decisivo no nascimento do sistema interestatal europeu. O historiador inglês da Universidade de Oxford, Mark Harrison, sustenta inclusive a tese de que foi a Peste Negra que provocou a centralização do poder dos Estados e sua delimitação territorial, como forma de controlar e limitar o contágio, difundindo novas práticas higiênicas entre as populações que ainda viviam sob a servidão feudal. Aliás, acho que essa tese faz todo sentido e ajuda a entender a reação “egoísta” dos Estados nacionais, através dos tempos, toda vez que tiveram que se enfrentar com epidemias contagiosas que se expandem por cima de suas fronteiras territoriais. Mesmo assim, todas as demais epidemias ou pestes que mencionamos podem ter provocado grandes avanços médicos ou sanitários, mas não produziram nenhuma grande ruptura histórica, nem alteraram a rota expansiva do sistema mundial. Ou seja, a crise atual não é da mesma natureza que as crises de 1929 e de 2008, e não envolverá necessariamente nenhuma grande “ruptura histórica”.

Talvez por isto seja também muito comum comparar as epidemias com as guerras, ou mesmo falar das grandes epidemias como se fossem guerras? Qual a sua opinião sobre esta outra comparação?

Acho que é uma comparação muito forte e que pode ser útil para mobilizar as populações e os atores sociais e econômicos mais importantes para o combate à doença. E de fato, as grandes pestes costumam produzir consequências econômicas de curto e médio prazo parecidas com as das guerras. Além disto, nas grandes epidemias, como nas grandes guerras, os Estados nacionais são obrigados igualmente a assumir o comando estratégico do combate ao “inimigo comum”, estatizando atividades relevantes, e implementando políticas econômicas típicas das chamadas “economias de guerra”.

Mas, ao contrário das guerras, as epidemias não costumam destruir cidades, infraestruturas e equipamentos físicos, de fábricas ou de qualquer outra atividade econômica. Por outro lado, as guerras envolvem pelo menos dois atores ou Estados que se consideram inimigos e que têm uma materialidade e uma identidade emocional que provoca uma imediata solidariedade nacional por cima das próprias classes sociais. Enquanto as epidemias contagiosas, como esta que estamos vivendo, não têm uma materialidade clara e afetam as classes sociais de um mesmo país de forma inteiramente diferente, provocando uma reação defensiva de tipo “egoísta”, por parte dos Estados, das classes e dos indivíduos, sendo muito comum a estigmatização dos grupos sociais mais vulneráveis ou contagiados. Por fim, e esta é uma diferença fundamental, nas guerras sempre existem os vencedores e os perdedores, e cabe ao vencedor impor as regras de sua “paz hegemônica” que devem ser acatadas necessariamente pelos derrotados.

Enquanto que, no caso das grandes pandemias, como esta que estamos enfrentando, não há vitoriosos e perdedores nítidos, e não há nenhuma força material que imponha qualquer tipo de acordo em torno do que poderia ser um eventual plano de reconstrução coletiva. Ou seja, as guerras são muito mais destrutivas, mas as saídas das pandemias são muito menos solidárias. Hoje, muitos falam de um mundo novo que poderia nascer desta experiência traumática, e até apostam em mudanças humanitárias do capitalismo, mas não vejo a menor possibilidade de que isto aconteça. O próprio avanço da epidemia já está provocando uma guerra sem quartel entre as nações pelos equipamentos médicos, e esta guerra dever seguir e até aumentar depois da epidemia, junto com os ressentimentos que ficarão desta mega experiencia de egoísmo coletivo explicito

Quais as consequências desta crise para a geopolítica global? É correto pensar que a China se consolida como liderança global?

Do meu ponto de vista, esta pandemia não produzirá nenhuma grande inflexão geopolítica dentro do sistema mundial. O que ela fará é acelerar a velocidade das transformações que já estavam em curso e que seguirão se aprofundando. Alguém já disse que é na hora das grandes pestes que a gente conhece a verdadeira natureza de uma sociedade. Pois também acho que esta nova peste está apenas desvelando o que já existia, mas ainda estava encoberto pelo que talvez se pudesse chamar de último véu de hipocrisia do que muitos analistas chamam de “ordem liberal”, ou de “hegemonia americana” do século XX.

A epidemia do novo coronavírus foi identificada na China, no final de dezembro de 2019, mas hoje já está claro que seu epicentro se deslocou para a Europa e os Estados Unidos, e que sua duração não será nunca menor do que seis ou sete meses, sendo ainda difícil quantificar o tamanho do estrago e da destruição humana e econômica desses países. Mas ninguém tem dúvida que se ela se estender para o sul, terá um efeito muito maior e devastador sobre a população e a economia dos países “periféricos” da África, do Oriente Médio e da América Latina. E depois que a epidemia passar ou for controlada, como sempre acontece, serão as grandes potências que se recuperarão na frente, começando pela China e pelos Estados Unidos.

Neste sentido, o mais provável é que esta epidemia aumente a desigualdade e a polarização do mundo que já vinha crescendo de forma acelerada desde a crise financeira de 2008. E deve acentuar a nova virada nacionalista do sistema interestatal que já vinha se manifestando desdeo início do século XXI, e que assumiu alta velocidade depois que os Estados Unidos de Donald Trump mandaram para o espaço a suas antigas convicções multilateralistas e globalistas, começando pela sua própria política econômica. A Rússia deverá sofrer um novo baque econômico com a epidemia e com a crise da indústria do petróleo, mas isto não afetará a sua nova posição como grande potencia militar dentro do sistema mundial. Na União Europeia, por sua vez, a pandemia deve apenas acelerar e quem sabe concluir o processo de implosão ou desintegração do seu projeto unitário que já vinha se decompondo desde a crise de 2008, e que entrou em alta rotação depois do Brexit. E a China seguirá o curso do seu projeto expansivo programado para a metade do século XXI, aproveitando as oportunidades e brechas abertas pela decomposição europeia, pela desvinculação norte-americana da antiga utopia da ordem liberal e da economia globalizada.

A aposta do poder americano neste momento está inteiramente depositada na manutenção da sua supremacia no campo da moeda, das finanças e do controle naval de todos os mares e oceanos do mundo. Neste ponto não há que ter ilusões: o epicentro da crise de 2008 foi nos EUA, mas depois da crise e durante a segunda década do século XXI, foi o país que mais cresceu entre os considerados desenvolvidos, e chegou a aumentar sua participação no PIB mundial de 23% para 25%. Na mesma década, os EUA aumentaram seu poder financeiro global junto com sua capacidade de utilizar sua moeda e seu mercado financeiro para hostilizar seus inimigos e concorrentes. E neste período, o mercado de capitais americano aumentou 250%, ficando com 56% da capitalização financeira global.

Os grandes bancos americanos dominam hoje as finanças globais mais do que em 2010, e cerca de 90% das transações financeiras globais são feitas em dólares. Ou seja, não há nada que impeça que os EUA superem esta nova crise e recuperem rapidamente sua capacidade econômica e financeira global, na frente de todos os demais países desenvolvidos, com exceção talvez da China. Ou seja, olhando para a frente, há que colocar esta pandemia dentro de uma trajetória mundial de grandes transformações que já estavam em curso, incluindo a competição e o conflito entre China e Estados Unidos, que deve aumentar em escala exponencial depois da epidemia, sobretudo se Donald Trump for reeleito..

No estopim da crise no campo econômico está também a disputa pelo mercado de petróleo. Como essa luta deve evoluir? Quais devem ser os papéis da Rússia, da Arábia Saudita, da China e dos EUA?

A pressão sobre os preços e os níveis de produção mundial de petróleo já vinha se acentuando desde antes da epidemia e se materializou na ruptura das negociações da OPEP e no início da guerra de preços entre Rússia e Arábia Saudita. Não há dúvida, no entanto, de que a pandemia do coronavirus e a consequente queda da demanda mundial de óleo foram decisivos para que o preço do petróleo caísse de U$ 70 para U$ 25, dando início à maior crise da indústria petroleira nos últimos cem anos, segundo muitos especialistas da área.

Não se sabe ainda por quanto tempo se prolongarão a epidemia e o baque da economia mundial, nem tampouco se sabe o tamanho e a duração da recuperação econômica depois do fim da pandemia. Mas uma coisa é certa: se os preços do petróleo se mantiverem nos níveis atuais, eles terão um impacto muito grande sobre a geoeconomia mundial do petróleo. A indústria americana do shaleoil teria que ser protegida pelo governo ou quebraria, e neste caso os EUA perderiam a posição que conquistaram nos últimos três anos, de maior produtor mundial de petróleo. Esses preços afetariam também a capacidade fiscal da Rússia e da Arábia Saudita, e atingiriam em cheio os países petroleiros que trabalham com altos custos de produção, como é o caso do Irã, Venezuela, Iraque, Nigéria etc.

Por isso, é muito provável que se siga uma nova crise da dívida soberana destes países dependentes da exportação do petróleo, como no caso quase imediato do Equador e do México, mas também do Iraque e da Nigéria, entre outros. Neste momento, tudo leva a crer que as negociações que foram retomadas acabem levando a um acordo, mas não é provável que os novos preços sejam superiores aos U$ 35 por barril, e mesmo este preço seria insuficiente para alterar a situação do petróleo americano; e muito mais, dos países que dependem inteiramente da sua exportação de óleo. Seja como for, as perspectivas pela frente são muito ruins para a indústria do petróleo como um todo e como efeito derivado, para todo o mercado financeiro mundial, e norte-americano em particular, envolvido até o pescoço com as cadeias de investimento e pagamento da indústria do óleo, e com a própria valorização do petróleo como ativo financeiro.

Os EUA movimentam-se nesse momento no Caribe. Uma invasão norte-americana na Venezuela é um cenário possível? Quais as chances de essa investida ser bem-sucedida? Como reagiriam China e Rússia nessa hipótese? Qual seria o papel do Brasil?

No início de março, publicamos um artigo com William Nozaki, anunciando esta possibilidade através de um raciocínio e de um argumento deduzido a partir de várias evidências que pareciam ainda desconectadas. Mas hoje esta ameaça já se materializou com o cerco naval da Venezuela, em nome do combate ao tráfico de drogas que acontece sobretudo na Colômbia e no México. Já se falou de defesa da democracia, de necessidade humanitária, de combate ao comunismo etc., mas agora se trocou pelo combate ao tráfico de drogas para o mercado consumidor norte-americano. Os motivos alegados já são a esta altura inteiramente irrelevantes; o que importa é a decisão e a ação norte-americana, do seu bloqueio naval, das suas sanções comerciais e da tentativa de estrangulamento financeiro da economia e do Estado venezuelano.

Creio que a invasão militar direta ainda é improvável, e se ocorrer será através de bombardeios navais. Antes disto, entretanto, os EUA apertarão o cerco cada vez mais para provocar pânico e aumentar o estresse psicológico do governo e da população venezuelana. Inclusive com o boicote à capacidade médica venezuelana de combate na epidemia do coronavírus. Creio que Rússia e China manterão seu apoio ao atual governo venezuelano, mas não sei calcular sua capacidade de bloquear ou desativar esse tipo de guerra que os americanos estão promovendo. Do ponto de vista militar e estratégico, a Colômbia é muito mais importante do que o Brasil. As bases americanas já estão instaladas no território colombiano e a fronteira entre a Colômbia e a Venezuela é mais extensa e ativa do que a fronteira brasileira.

Neste momento, o Brasil não tem capacidade militar nem financeira para enfrentar a Venezuela, mas com certeza lhe será destinado um papel que o comprometa nesta ação, como fechar a fronteira sul da Venezuela, ou controlar e intervir na Bolívia e no Equador, que completam o quadro geopolítico junto com o Peru, da Amazônia Sul-Americana, e onde é muito provável que ocorram novas revoltas populares, na sequência da epidemia. A disputa dos EUA com a China e a Rússia já colocou a luta pelo controle da Amazônia Sul-Americana dentro do mapa geopolítico e econômico da competição entre as grandes potências econômicas e militares do sistema mundial, e este parece ser um processo irreversível..

Os novos acordos militares entre o Brasil e os EUA, negociados pelo governo Temer e completados pelo atual governo brasileiro, como no caso do recente acordo RDT&E, que foi assinado pelas autoridades brasileiras diretamente dentro do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA para a América Latina e o Caribe, inscrevem-se diretamente dentro desta estratégia americana à qual o Brasil agora está inteiramente subordinado.. Amplos setores das Forças Armadas brasileiras acreditam e apostam na possibilidade de que estes novos acordos possam transformar o Brasil numa espécie de “protetorado militar” dos EUA, com acesso a algumas tecnologias militares mais avançadas, que são entregues a alguns aliados mais estreitos dos EUA. Mas neste caso, não fica claro para que serviriam essas armas. Seria ridículo imaginar que elas fossem suficientes para defender o país do ataque das grandes potências militares do sistema mundial, e neste caso elas só seriam “úteis” contra os vizinhos mais fracos da América Latina, o que seria uma tragédia para as futuras gerações brasileiras. Além disso, seria importante que estes militares, que não têm a representação da sociedade brasileira para tomar uma decisão dessa gravidade, lembrassem, por um minuto que fosse, que o Iraque também foi armado pelos EUA para lutar contra o Irã, e depois foi inteiramente destroçado pelos próprios EUA.

Quais os impactos da crise sobre a economia? O atual arranjo produtivo da chamada globalização (com fragmentação da produção e precarização do trabalho) pode resistir a esta hecatombe?

Seus impactos imediatos serão devastadores. A epidemia do coronavírus não se destaca por sua taxa de mortalidade, que é bem menor do que muitas outras grandes epidemias. Ela se destaca pela velocidade do seu contágio e sua expansão universal. Ela foi identificada na China, no final do mês de dezembro de 2019, mas em três meses já atingiu quase 200 países, e mais de um milhão e meio de pessoas. Uma peste velocíssima e que é já praticamente universal, sem que se consiga prever o seu tempo de desenvolvimento futuro. Alguns especialistas falam em 6 a 7 meses, outros em 2 a 3 anos, mas seu impacto econômico foi quase instantâneo, atingindo a oferta e a demanda, com uma queda da produção e aumento vertiginoso do desemprego em quase todos os países do mundo, Seguindo-se a quebra das grandes cadeias globais de produção e de pagamento ao redor do mundo, com efeito imediato sobre os circuitos financeiros de todo o planeta, Hoje, as perspectivas futuras já são muito ruins, mas elas podem piorar ainda mais, dependendo da duração da epidemia e da paralisia econômica dos EUA, e da profundidade de seu impacto sobre a economia europeia, sobretudo sobre seu sistema monetário, que está ameaçado de naufragar junto com a própria União Europeia.

Não se deve esquecer que se esse “apagão” econômico do Ocidente se prolongar, ele acabará dificultando também a recuperação da economia chinesa, que ficará temporariamente afastada dos grandes mercados consumidores de sua produção industrial. O FMI está revendo suas previsões a cada semana, mas já não tem dúvidas de que em 2020 a economia mundial terá uma grande recessão, com altíssimas taxas de desemprego, muito piores do que na crise de 2008. Para os EUA em particular, estão prevendo uma queda do PIB neste ano que deverá ser o dobro da que ocorreu naquela grande crise. E a própria China está revendo para baixo suas previsões iniciais para sua economia, que já eram muito ruins, para eles e para todo mundo. A única pergunta que permanece sem resposta é sobre a duração provável deste baque econômico. Alguns falam em um semestre; outros em até três anos, e no caso da maioria dos países mais pobres, já se fala da década de 2020 como uma década inteira perdida.

Muitos têm apontado que a crise vai enterrar as ideias neoliberais e que o Estado voltará a ser considerado como essencial na condução do enfrentamento da crise. Isso faz sentido?

Num primeiro momento, como em todas as situações de guerra, ou de grandes catástrofes, o Estado será obrigado a centralizar o comando e o planejamento sanitário e econômico do país, e levar à frente uma política econômica “heterodoxa” de aumento expressivo dos seus gastos, e de multiplicação do dinheiro disponível para as pessoas e as empresas. Mas nada disto garante que depois da crise os países mantenham esta mesma política de cunho mais fortemente keynesiano.

As grandes potências deverão rever as estratégias de globalização de suas cadeias produtivas, e a Rússia, a China e alguns países europeus procurarão aumentar seus graus de liberdade com relação ao sistema financeiro e monetário norte-americano. E todos deverão aumentar o grau de proteção mercantilista de seus territórios e de sua economia. Mas os países periféricos e mais fracos, pelo contrário, deverão enfrentar as “dívidas da epidemia” com a volta radicalizada a suas políticas anteriores de austeridade fiscal e de venda acelerada do patrimônio público na “bacia das almas”, na busca impossível do “equilíbrio perdido”. Não é improvável que neste momento se multipliquem as revoltas sociais ao redor do mundo e a mudança de governos nos países que ainda mantenham a prática de fazer eleições periódicas e regulares, na década de 2020.

É possível prever uma crise financeira que resulte num encolhimento deste setor na economia mundial?

Se a epidemia e a recessão econômica se prolongarem, é muito provável que tenhamos uma crise financeira mais grave pela frente apesar de que os governos e os bancos centrais dos países mais ricos tenham reagido de forma bastante rápida, mais rápida do que em 2008. E neste momento é do interesse direto dos EUA e do seu banco central (o Fec) repetir o que fizeram naquela última crise financeira, assegurando liquidez em dólares para os bancos centrais das principais economias capitalistas dependentes do seu sistema financeiro. Seja como for, não devemos nunca esquecer a lição fundamental do historiador Fernand Braudel, sobre a história do capitalismo: na origem do capitalismo, na primeira hora de sua existência, se estabeleceu uma relação muito estreita entre os príncipes e os banqueiros, e desde então eles permanecem unidos, numa espécie de casamento indissolúvel, através de toda a história capitalista. E tudo indica que seguirão juntos e inseparáveis, defendendo-se mutuamente, e mantendo seus espaços relativos de poder, até o fim da história capitalista, se é que ela terá um fim.

O governo brasileiro tem se mostrado inepto no enfrentamento da crise. O que é possível prever sobre os desdobramentos da crise no país do ponto de vista sanitário, social e econômico?

A epidemia apenas explicitou o que já se sabia: que o Brasil é presidido neste momento por um cidadão inteiramente desequilibrado, inepto e ignorante; e que a economia brasileira está nas mãos de um pequeno financista que só tem uma única ideia fixa na sua cabeça, e por isso não consegue entender, pensar e reagir de forma um pouco mais inteligente e eficiente frente ao tamanho da crise que o país está enfrentando. Na verdade não se trata de um governo, trata-se de um amontoado de pessoas reunidas pelos seus medos, suas fobias e seu ódio ao petismo, ao lulismo, à China, ou seja lá o que for. Ou seja, um governo inteiramente despreparado e sem comando, e portanto incapaz de enfrentar uma crise destas proporções. Foram lentos e estão divididos frente à epidemia, e mal conseguem se mover no plano econômico para fazer o que todos os governos do mundo estão fazendo, ou seja, emitir e distribuir o dinheiro indispensável para que as pessoas – sobretudo os desempregados e subempregados – e as empresas possam seguir comprando, pagando, e cumprindo seus compromissos financeiros durante a paralisia inevitável da atividade econômica, e durante a longa recessão que teremos durante muito tempo..

Segundo o próprio ministério da Saúde, a epidemia no Brasil está recém na sua primeira fase, e deve se agravar no mês de maio e junho, chegando até no mínimo setembro. Além disso, o contágio epidêmico parece ainda não ter alcançado as populações mais pobres e marginalizadas das grandes cidades brasileiras – São Paulo e Rio de Janeiro em particular. Sabidamente, o Brasil está entre as sociedades mais desiguais do planeta, e isto o torna extremamente vulnerável frente à uma epidemia contagiosa que, quando alcançar as populações e as comunidades mais pobres, terá um efeito devastador.

Hoje, os governadores dos estados têm atuado de forma mais eficiente do que o governo federal, mas logo à frente o problema será alimentar a população de desempregados e miseráveis de todo o país, e sobretudo de suas grandes cidades, e aqui não há como enganar-se: os prognósticos para um país tão desigual e sem governo são os piores possíveis.

O senhor imagina que Bolsonaro possa sair do governo em meio a essa crise? Por impeachment? Por golpe? Ou por algum outro arranjo que ainda não vislumbramos?

Depois de um ano de pirotecnias verbais e gestuais, esse senhor não se sustenta mais por si mesmo. Ele foi instalado na presidência da República por uma operação política, jurídica e militar, nacional e supranacional bem-sucedida, mas ele é inteiramente incapaz de governar ou mesmo de tomar alguma decisão um pouco mais difícil, e que demande um nível intelectual um pouco mais elevado. Sua inépcia pessoal e sua total ignorância o impedem de saber o que fazer frente a situações desse tipo. Ele é uma espécie de boneco mecânico que foi programado para fazer sempre a mesma coisa, como se fosse um boneco que só sabe cuspir e que reage frente a tudo sempre da mesma maneira, cuspindo, em qualquer circunstância. Isto já estava claro desde o início, mas ficou muito mais visível no momento em que ele foi obrigado a enfrentar uma situação que não estava prevista no seu programa, e começou então a dizer bobagens e fazer agressões a esmo. Só que neste caso ameaçando a vida dos próprios brasileiros.

Frente a uma pandemia mundial, ele já não tem como jogar bananas, dizer palavrões e agredir quem quer que seja; sua única habilidade de paranoico agressivo ficou inteiramente fora de foco. Assim mesmo, o mais provável é que este senhor siga sentado na cadeira presidencial por inteira falta de alternativa de seus principais sustentadores: os financistas de plantão e os generais aposentados que o cercam. Por isto, este senhor deverá seguir onde está, e fazendo as suas asnices diárias que nos envergonham como brasileiros, e o país deverá seguir desgovernado a despeito da junta militar que cuida do capitão mas não tem comando direto sobre a hierarquia das Forças Armadas. E hoje existem poucos economistas que queiram substituir o pequeno ministro de uma ideia só, porque o desastre econômico já vai muito avançado para que alguém queira pagar a conta e ficar com o abacaxi na mão. E portanto o nosso prognóstico político e econômico para o Brasil é muito ruim, e a situação deverá ficar ainda pior quando começarem a surgir os primeiros focos de rebeldia social inorgânica, movidos pela fome e pela miséria que crescerá de forma geométrica no ano de 2020.

As oposições terão força política para agir nesse quadro?

Força política é uma coisa que se conquista no dia a dia, com a capacidade de saber o que dizer, e saber o que fazer frente aos grandes desafios e oportunidades que se abrem na hora das grandes crises. Ninguém é forte de antemão, e na hora das grandes catástrofes muitas fronteiras se desfazem Como dizia o poeta Antônio Machado, em plena Guerra Cvil espanhola: nestas horas, “o caminho se faz ao caminhar”.

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