Europa à deriva

A demolição da social-democracia, nos anos 90, talvez tenha sido o começo da crise. Submisso aos EUA, continente tornou-se marionete geopolítica na contenção da Rússia e China. Resultado: econômica instável, agitações sociais, ascensão da ultradireita e o retorno do militarismo

Imagem: Naufrágio de um Cargueiro (1810), de Turner
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O texto a seguir integra a edição nº 4 (março de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser baixada aqui

O continente europeu possui uma coluna dorsal: a União Europeia. Mesmo os países que não pertencem a ela, como a Ucrânia, a Noruega, a Suíça, a Turquia e a Islândia, além de outros, gravitam em torno da UE. E esta coluna dorsal está sendo desossada, e periga se liquefazer. Em parte, esta crise lhe veio das próprias entranhas. Em parte, foi importada de fora, ou lhe foi imposta. Quem lhe impôs? Os Estados Unidos, através das injunções e exigências de seu braço armado multinacional, a Otan.

O ideal e a ideia da União Europeia nasceram dos escombros da Segunda Guerra, através da Comunidade Econômica Europeia e da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, criadas em 1957. Consolidou-se oficialmente em 1993, depois do Tratado de Maastricht, assinado em 1992. Foi reformulada com o Tratado de Lisboa, assinado em 2007 e em vigor desde 2009. 20 dos 27países membros da UE adotam o euro como moeda comum, criada como valor de transferência em 1999 e sob a forma de notas e moedas a partir de 2002. A primeira grande crise da UE. ocorreu com a saída do Reino Unido, em 2020, depois de um plebiscito votado em 2016. E hoje ela tem a vizinha Rússia como sua principal adversária.

Isto significa que o ideal da União Europeia foi desenhado enquanto a parte Ocidental do continente vivia, genericamente, sob a hegemonia ideológica da social-democracia, como alternativa e resposta ao comunismo que vigia na sua parte Oriental, sob a liderança da finada União Soviética. Entretanto ela foi criada quando o sonho social-democrata e sua generosidade social cedia o passo ou se rendia ao pesadelo neoliberal e seus planos de austeridade fiscal, monetária e social. Esta é a raiz interna da crise hoje vivida pela União e pelo continente como um todo.

Se a União Europeia nasceu também com ideal de paz num continente continuamente marcado por grandes conflitos armados, ela nasceu igualmente sob a sombra das guerras iugoslavas e do Kosovo (1991-1999), marcadas por genocídios e pelas intervenções dos Estados Unidos e da Otan, sob a forma de mediação imposta e bombardeios seletivos. A presença do belicismo se agravou com a guerra na Ucrânia, entre este país, apoiado pelos Estados Unidos, a Otan e a União Europeia, e a Rússia, a partir de fevereiro de 2020, quando esta invadiu aquela alegando sentir-se ameaçada por uma possível adesão de Kiev à Otan. Os governos da UE, uns a gosto e outros a contragosto, se viram empurrados para dentro do conflito, liderado do lado Ocidental pelos EUA e pelo Reino Unido. Os EUA viram na conjuntura uma oportunidade para pressionar pela diminuição da dependência energética da Europa em relação à Rússia, caso, sobretudo, do carro-chefe da economia europeia, a Alemanha. Em consequência da guerra e da adesão europeia ao auxílio militar prestado à Ucrânia e das sanções adotadas contra Moscou, a situação das economias europeias foram profundamente afetadas. Os cortes no fornecimento do gás russo, dos fertilizantes e dos grãos ucranianos provocaram uma espiral inflacionária em todos os países, sobretudo na Alemanha, nos preços da energia, dos transportes, dos insumos agrícolas e de fármacos. Paradoxalmente, as sanções econômicas adotadas contra Moscou parecem prejudicar mais a Europa do que a Rússia.

Deste modo a Europa se aproxima mais e mais de tornar-se – ou voltar a ser – um protetorado militar da Otan atravessado pelas necessidades políticas dos Estados Unidos em sua campanha contra a Rússia e a China.

O continente vê-se marcado por agitações sociais ainda de médio porte, mas cada vez mais amplas e difundidas. Os protestos dos agricultores contra o que vêm como um falta de apoio dos governos e da União no que se refere a insumos, particularmente no preço do diesel, se espalharam da Polônia à Península Ibérica. Protestam também pelo que consideram uma política restritiva de agrotóxicos e de proteção do meio ambiente. Greves em aeroportos, portos, ferrovias e transportes urbanos pipocam em toda parte. No Reino Unido o setor da saúde é dos mais afetados, tanto em falta de investimentos como de pessoal, devido em parte à insegurança provocada pelo Brexit, a saída da União. A Alemanha vive um processo crescente de desindustrialização, com o fechamento de grandes unidades produtoras.

Tal clima de insegurança vem favorecendo em toda parte a ascensão da extrema direita. Partidos como o Vox, que na Espanha reivindica a herança falangista, o Rassemblement National na França, o Alternative für Deutschland na Alemanha, o Frateli d’Italia na Italia vem crescendo continuamente. Quando não ganham eleições, como foi o caso do Frateli na Itália, ditam a pauta política, o que envolve um traço de ceticismo em relação à União Europeia, pelo menos do modo como está constituída. Ultimamente estes partidos têm amenizado sua retórica anti-União Europeia, falando mais em reformular seus princípios em nome da preservação das soberanias nacionais. E puxam todo o espectro político mais para a direita, em torno de políticas reacionárias quanto a costumes e valores culturais, da xenofobia, da islamofobia, esta última agravada pelo desejo de aproximação com Israel e sua política de apartheid em relação ao povo palestino e massacre da população civil na Faixa de Gaza.

Tal crescimento se alimenta da falência dos planos de austeridade em produzir bem-estar social, o que não surpreende ninguém de bom senso. E também se alimenta da retração divisionista das esquerdas ou da rendição de vários setores aos ditames da real politik europeia impulsionada pelas consequências geopolíticas da guerra na Ucrânia.

E em toda parte renasce o velho militarismo como alternativa geopolítica alimentada pela russofobia, e econômica, diante das agruras e amarguras de uma possível recessão de longo alcance. E desta vez o Velho Mundo não está assente apenas sobre a novidade dos drones, os blindados e outros armamentos convencionais, mas diante do risco sem retorno de um confronto nuclear.

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