Esplendor e cobiça na Tríplice Fronteira

Magnífica por sua natureza, sede de Itaipu e chave para o aquífero Guarani, região Argentina-Brasil-Paraguai é apontada como base de redes criminosas e de terror. EUA ampliam olhar sobre ela. Novo livro abre caminhos para conhecê-la a fundo

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Por Rafael Duarte Villa

MAIS
Este livro é o prefácio de
Além dos limites: A Tríplice Fronteira nas relações internacionais contemporâneas
De Micael Alvino da Silva e Isabelle Christine Somma de Castro (organizadores)
Publicado pela Alameda parceira editorial de Outras Palavras
Lançamento:

Além dos Limites pode ser encontrado no site 
da Editora Alameda

Há várias maneiras e formas de olhar para a principal tríplice fronteira da América Latina, entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai. Primeiro, contrastando-a com outras tríplices fronteiras daquelas várias que existem na América Sul, observa-se uma característica que diferencia esta região da Tríplice Fronteira das demais. É uma zona, para usar uma expressão da Geopolítica, de fronteiras vivas, em que existem três cidades contíguas de intenso intercâmbio cultural e comercial: Puerto Iguazú (Argentina), Foz do Iguaçu (Brasil) e Ciudad del Este (Paraguai). É uma região com um volume comercial importante e com um fator cultural relevante, sendo que há várias nacionalidades convivendo no mesmo espaço, e é inegável que a região tem recebido uma população árabe de origem libanesa muito significativa, o que gerou uma forte securitização regional e globalmente.

Esse olhar securitizado da Tríplice Fronteira é outro imaginário, no caso um imaginário discursivo, que foi construído nos âmbitos regional e global. Do ponto de vista regional, porque há mais de vinte e cinco anos a Tríplice Fronteira foi incorporada na agenda de segurança dos Estados Unidos devido às percepções e suspeitas de que a região seria um espaço para atividades terroristas. Como resultado do impacto dos atentados terroristas em Buenos Aires contra a Embaixada de Israel, em 1992, e contra a Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, firmaram-se suspeitas nas representações dos governos argentinos e estadunidenses de que grupos islâmicos, com base na Tríplice Fronteira, haviam perpetrado os atentados. Desde então as pressões argentinas e norte-americanas se fizeram sentir para que os governos da Tríplice Fronteira criassem instâncias institucionais e de inteligência que oferecessem um tratamento repressivo similar ao tráfico de drogas no subsistema de segurança andino.

Mas, em âmbito global, a região também se incorporou na agenda global de segurança estadunidense devido à securitização dos vínculos que as atividades ilícitas de atores transnacionais teriam com o terrorismo, principalmente como fonte de financiamento ao “terrorismo islâmico”. A partir de 1997, os relatórios do Departamento de Estado (Patterns of Global Terrorism) destacam várias iniciativas regionais de articulação entre governos sul-americanos para a prevenção do terrorismo, assim como de maneira indireta cita grupos com uma certa atividade na região. Não seria exagerado dizer que a lógica de “guerra global ao terror”, que imperou desde o primeiro governo de George W. Bush até o início da primeira administração de Barack Obama, representou a Tríplice Fronteira como um lugar ao qual deveria ser atribuído um cuidado especial. Com isso, a Tríplice Fronteira, que não era uma região tradicionalmente relevante em aspectos de segurança, passou a ser uma das mais novas regiões, daquelas que emergiram após a Guerra Fria, assim como um lugar para se pensar em uma agenda de segurança por via das “novas ameaças”, sobretudo de origem não-estatal.

O próprio termo Tríplice Fronteira já aparece com uma conotação bastante securitizada, como têm destacado alguns trabalhos antropológicos. Tem-se chamado, por exemplo, a atenção para a mudança do nome oficial da “região das três fronteiras”, até meados da década de 1990, para o de “Tríplice Fronteira” na primeira década do século XXI (ou Tri-Border Area, como se prefere nos Estados Unidos). “A transformação para o substantivo próprio ‘Tríplice Fronteira’ aparece a partir da suspeita da presença de terroristas islâmicos na região depois dos atentados de 1992 e 1994. Em 1996, essa denominação será incorporada oficialmente pelos governos dos respectivos países (…)” (RABOSSI, 2004, p. 24). No entanto, outros trabalhos colocam a securitização do termo “Tríplice Fronteira” como decorrência direta dos acontecimentos do 11 de setembro. “Após os atentados terroristas às torres gêmeas em 11 de setembro a preocupação dos americanos com esse tema [terrorismo] fez com que a Tríplice Fronteira se tornasse um foco de atenção pela possibilidade de haver algumas células terroristas ou de apoio instaladas na região” (RODER, 2006, p. 65-6).

Em consequência, mais que um espaço geográfico, a Tríplice Fronteira é um espaço de construções sociais sobre o qual se tem construído diversas representações, a maior parte delas fortemente negativas. O símbolo dessa imagem da região é Ciudad del Este. Uma localidade estratégica, “no limiar da lei – ou talvez um pouco além dela” (NAÍM, 2006, p. 135), “um lugar maldito” (BARTOLOMÉ, 2002), ou “um lar afastado de casa para os cartéis de drogas da América do Sul, as Tríades Chinesas, a Yakusa, gângsteres russos e nigerianos e terroristas do Hezbollah” (ROBINSON, 2001, p. 11). A região seria um dos maiores centros de atividades de grupos que se dedicam a comercializar ilícitos transnacionais, ou, nas palavras de Naím, uma dessas regiões “além da lei”, especialmente Ciudad del Este, a cidade do Paraguai com mais de 300 mil habitantes na Tríplice Fronteira com o Brasil e a Argentina.

Mais recentemente, a forte atividade de atores não-estatais violentos, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), reafirmou uma certa visão de que a região é um local onde o narcotráfico e suas formas de governança ilegais, mas socialmente efetivas, se enraizaram fortemente. Tendo uma posição geográfica e social privilegiada, a região teria se transformado num grande ponto de encontro para contrabandistas, grupos de narcotraficantes e máfias de todos os tipos, numa encruzilhada para todo tipo de comércio ilícito. Não se pense que essa percepção foi construída só por decision-makers argentinos e estadunidenses. A própria academia tem dado sua contribuição, como se observa na sustentação de Moisés Naím quando se refere a Ciudad del Este: “O que verdadeiramente torna o lugar um centro importante é o dinheiro das drogas: as receitas da cocaína, vindas dos países andinos, das quais todos os outros comércios – assistidos pelos 56 bancos existentes na cidade – lançam mão para reciclar” (NAÍM, 2006, p. 135-36). O livro de Naím é anterior à presença do PCC em Ciudad de Leste e Foz de Iguaçu. Seu imaginário se teria “enriquecido” ainda mais com a atuação ativista do grupo criminal.

Mas a região também se incorpora na agenda de segurança estadunidense devido à securitização dos vínculos que as atividades ilícitas de atores transnacionais teriam com o terrorismo, principalmente como fonte de financiamento ao “terrorismo islâmico”. Por isso, uma forma de atuação direta dos Estados Unidos na região da Tríplice Fronteira é dada pelas iniciativas de algumas de suas agências em matéria de combate à lavagem de dinheiro ou de transferência de recursos de origem duvidosa.

O relatório da Comissão que investigou os acontecimentos do 11 de setembro de 2001 revela que alguns funcionários dos Estados Unidos, agitados com os acontecimentos, recomendaram ataques fora do Oriente Médio, por exemplo no Sudeste Asiático ou na América do Sul, com a finalidade de tomar de surpresa os grupos terroristas (ESTADOS UNIDOS, 2004, p. 559-60).

No entanto, a estratégia dos Estados Unidos, até talvez pela falta de provas mais fortes sobre a presença de células de grupos considerados terroristas, se tem orientado mais para o corte da logística financeira desses grupos. O poder executivo norte-americano alimentou, desde a administração do presidente Bill Clinton (1993-2001), a ideia de que era preciso cortar as fontes de financiamento do narcotráfico para a guerrilha. De modo semelhante, no caso da Tríplice Fronteira, foi acolhida a ideia de que, embora não haja provas contundentes da existência de células terroristas, a região está sendo usada para fins de financiamento das operações globais do “terrorismo islâmico”. E, nesse sentido, a militarização não se apresenta como uma opção viável de atuação na região, mas aposta-se na estratégia de promoção de acordos com os países da região que levem à desestruturação das fontes de financiamento (que vem da lavagem de dinheiro, narcotráfico, contrabando, descaminho, entre outros).

Contudo, a Tríplice Fronteira é uma região de um dinamismo econômico forte, de encontro vigoroso de culturas, de recursos naturais e turísticos maravilhosos e de instituições universitárias e de tecnologia que interagem com suas sociedades fronteiriças. A desconstrução das imagens socialmente construídas na forma de securitização, de região de atores fora da lei ou de um lugar de violência, é a mais importante contribuição do livro Além dos limites: a Tríplice Fronteira nas relações internacionais contemporâneas, organizado por Micael A. da Silva e Isabelle C. Somma de Castro. Todas as temáticas referenciadas neste pre fácio, que combinam fronteira, percepções sobre terrorismo, construção de instituições na fronteira e percepções negativizadas (securitização), são tratadas de forma crítica e consistente na presente obra, que se transformará numa das principais referências da literatura que trata da Tríplice Fronteira.

Referências

BARTOLOMÉ, M. C. “Amenzas a la seguridad de los Estados: La Triple Frontera como ‘área gris’ en el Cono Sur Americano”. Military Review, Fort Leavenworth, Kansas, 82, n. 4, 2002, p. 61-74.

ESTADOS UNIDOS. 9-11 Commission Report. The National Commission on Terrorist Attacks Upon the United States. Washington, 2004, p. 585.

NAÍM, M. Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

RABOSSI, F. Nas ruas de Ciudad del Este: vidas e vendas num mercado de fronteira. Tese de Doutorado. Programa de Pós–Graduação em Antropologia Social. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

ROBINSON, J. A Globalização do crime. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

RODER, A. A agenda externa brasileira em face aos ilícitos transnacionais: o contrabando na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. São Paulo: USP, 2006.

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