Doutrina Monroe: o cerco permanente

Política externa dos EUA, que agiu para tornar a América Latina o quintal de Washington, não é algo só dos livros de história. Tarifaço de Trump mostra isso. Assim, Brasil adquire “algo de Venezuela”: espantalho ideológico para ataques à soberania nacional com a democracia delivery

Arte: Gilbert Mercier/Flickr
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No ano de 2017, durante o primeiro mandato de Donald Trump como presidente dos EUA, o então secretário de Estado Rex Tillerson foi questionado pela imprensa sobre a relação dos EUA com a América Latina, uma vez que Tillerson se preparava para uma série de viagens na região. A reposta foi clara: a “Doutrina Monroe”, que em sua visão continuava “tão relevante hoje quanto no dia em que foi formulada1” e demonstrava a preocupação dos EUA com o avanço de interesses chineses na América Latina.

Em 2022, ano eleitoral em diversos países latino-americanos, inclusive o Brasil, o presidente dos EUA Joe Biden foi questionado sobre o interesse estadunidense nos pleitos, em particular no brasileiro. Em sua resposta, o então presidente dos EUA afirmou que a “América Latina não é o quintal dos Estados Unidos. Tudo ao sul da fronteira mexicana é o jardim da frente dos Estados Unidos2” e que, portanto, acompanhava com atenção as questões políticas do continente.

A Doutrina Monroe foi a primeira política externa dos EUA para a América Latina e foi formulada no início do século XIX, quando os EUA buscavam construir sua hegemonia no continente, apoiando os processos de independência dos países latino-americanos e se colocando na disputa imperialista. Em outras palavras, os EUA estavam mandando um recado para os países europeus para que buscassem mercado consumidor e matéria-prima na África e na Ásia, pois a “América é para os americanos”.

O que as falas do então secretário de Estado republicano e do ex-presidente democrata demonstram é que, diferentemente do que muitos pensaram, os EUA nunca abriram mão de impor seus interesses na América Latina, continente entendido como uma área de influência natural estadunidense. Em outras palavras, com o fim da Guerra Fria e o desmoronamento da experiência soviética, boa parte da produção acadêmica brasileira acabou se alinhando à leitura de “fim da História”, de que a melhor forma de gestão das sociedades capitalistas era a democracia liberal e a economia de mercado, abrindo espaço para o avanço de políticas neoliberais.

O que esses ideólogos que se travestiam de baluartes da neutralidade acadêmica, se jactando de que o liberalismo e a democracia eram valores universais, se esqueceram é que suas posições teóricas e ideológicas não encaixavam na realidade. Em outras palavras, ideias como democracia, gestão, institucionalidade, Estado de direito eram letra-morta em sociedades que convivem com a pobreza, a desigualdade, o desemprego. Importante fazer uma advertência, não que a democracia e as liberdades individuais e políticas não sejam importantes, elas são. No entanto, se mostraram insuficientes para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, ou seja, verdadeiramente democrática.

Com o “fim da ameaça comunista” os interesses dos capitais dos EUA passaram a atuar de forma cada vez mais hegemônica na América Latina e em outras partes do mundo, sendo descolocados e justificados por meio de novas bases ideológicas. Seja através da guerra às drogas, ou da guerra ao terrorismo, os EUA mantiveram sua postura de xerifes do mundo. Na retórica, a ingerência busca levar a civilização, a democracia, a ajuda humanitária. Na prática, uma forma direta de expansão de seus interesses ao redor do globo.

Pois bem, nesse contexto, a panaceia neoliberal que se radicalizou durante os anos 1990 não conseguiu resolver as graves questões sociais e políticas que afligem a América Latina. Isso levou a uma série de movimentos contestatórios no início dos anos 2000, fenômeno marcado pela eleição de forças sociais e progressistas em diversos países. Obviamente que cada país latino-americano possui especificidades e que tais forças sociais apresentaram avanços e retrocessos de acordo com suas possibilidades; no entanto, ao proporem alguma forma de regulação ou uma alternativa a gestão neoliberal da sociedade estes foram identificados pelos EUA como comunistas, inimigos da liberdade, ditadores, populistas e qualquer outra categoria transformada em adjetivo pelos grandes meios de comunicação.

Em meu livro Democracy Delivers: a intervenção dos EUA na Venezuela chavista, publicado pela editora Telha em 2021, discuti a relação dos EUA com a Venezuela durante o governo Chávez. Para esse texto, além do caso venezuelano, comparo com a experiência brasileira para demonstrar o caráter antipopular e antidemocrático que os interesses dos EUA e de setores importantes das classes dominantes nacionais possuem.

Vamos começar pelo caso venezuelano: Hugo Chávez chegou ao poder político após vencer as eleições presidenciais de 1998 e se propôs a “refundar a república”, conferindo um caráter “protagônico e direto”, rompendo com o sistema político que vigorava desde o final dos anos 1950 conhecido como punto fijo.

Para tal, Chávez buscou reorientar o papel do Estado venezuelano em relação ao principal ativo econômico do país, o petróleo. O então presidente adotou uma série de medidas que visava aumentar as rendas provenientes da extração do petróleo e utilizá-la para colocar em prática uma série de políticas sociais conhecidas como missões. Essa política foi o suficiente para que as classes dominantes venezuelanas, com apoio direto dos EUA, tentassem um golpe militar contra Chávez, em 2002. Fracassado o golpe, a estratégia passou a ser a desestabilização do governo democraticamente eleito por meio de sanções econômicas, treinamento e financiamento da oposição e, além é claro, de amplas peças de propaganda contra o regime chavista.

No Brasil, Lula chegou ao poder após vencer as eleições de 2002 e adotou uma série de políticas sociais, a mais importante delas foi o Bolsa Família, além de aumentar o acesso ao crédito, fomentar políticas industriais e buscar um maior protagonismo no cenário mundial. Tudo isso sem alterar as bases macroeconômicas baseadas em altas taxas de juros e na atratividade do mercado brasileiro para o capital especulativo, o que possibilitou ao país taxas de crescimento e redução dos índices de pobreza, pavimentando a reeleição de Lula e de Dilma. Nada disso foi o suficiente para que as elites nacionais, apoiadas pelos EUA, tentassem de várias formas interromper o mandado dos presidentes do Partido dos Trabalhadores, seja através do lawfare ou de intentonas militares, como o 8 de janeiro não nos deixa esquecer.

As diferenças entre os casos brasileiros e venezuelanos são muitas, mas o que ambos possuem em comum é que em nenhuma das experiências se propunha um rompimento com as bases da sociedade capitalista, ou seja, o que se buscava era um afastamento relativo das formas de gestão neoliberal da sociedade. Tal prerrogativa, que em última instância possui caráter nacionalista, foi o suficiente para tais experiências sofrerem profunda oposição dos EUA, não importando se o governo de turno é democrata ou republicano.

Para o Brasil, que agora se vê enroscado com a guerra tarifária de Donald Trump, o exemplo venezuelano é importante, pois a Venezuela foi utilizada como espantalho ideológico que compôs o discurso político que elegeu Jair Bolsonaro e mantém a extrema direita de caráter fascista como uma força política importante no país. Da mesma forma que os EUA não estão preocupados com a democracia ou com a crise humanitária venezuelana, e sim com seus interesses econômicos no país, Trump não está preocupado com Bolsonaro ou com possíveis abusos do poder Judiciário. Também não vê em Bolsonaro um espelho, temendo que a possível prisão do ex-presidente por tentativa de golpe respingue em futuros processos nos EUA.

A questão é a mesma do início do século XIX, quando a Doutrina Monroe foi elaborada: o que importa são os interesses dos capitais dos EUA em seu quintal, ou seja, a América Latina. Qualquer tentativa de caráter soberano ou nacionalista será entendida como uma ameaça à segurança interna estadunidense articulada ao acirramento das disputas intercapitalistas e, logo, passível de ingerência. Essa lógica vale para o Brasil, Venezuela, Argentina, afinal, somos todos latino-americanos.

Para os EUA, a questão sempre esteve clara, o que infelizmente não é verdade para boa parte da intelectualidade brasileira que, por conveniência ou ideologia, se recusa a compreender a realidade quando esta se apresenta de forma distinta aos seus anseios. O que estamos vivenciando é a imposição dos interesses de uma potência imperialista e o acirramento da luta de classes em âmbito global. Reconhecer e entender tais fatos é fundamental para podermos pensar em alternativas verdadeiramente políticas para a encruzilhada em que nos encontramos.


Notas:

1 https://aterraeredonda.com.br/o-corolario-roosevelt/

2 https://www.brasildefato.com.br/2022/05/27/opiniao-democracia-e-liberdade-nao-e-so-doutrina-monroe/

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