China: “No limiar de uma nova ordem global”

Outras Palavras passa a publicar artigos da revista chinesa Wenhua Zongheng, traduzidos pelo Instituto Tricontinental. Textos examinam a transição para um mundo não mais hegemonizado pelos EUA. Na estreia, o diálogo entre civilizações

Imagem: AP Photo/Mark Schiefelbein
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Wenhua Zongheng (文化纵横) é uma revista proeminente de pensamento político e cultural contemporâneo na China. Criada em 2008, a revista publica edições bimestrais com artigos de um espectro amplo de intelectuais de todo o país, construindo uma plataforma para discussão de diferentes perspectivas ideológicas e valores na comunidade intelectual da China. A publicação é uma referência importante para os debates e desenvolvimento do pensamento chinês, em temas que vão desde a história antiga e a cultura tradicional da China até as atuais inovações e práticas socialistas, das importantes tendências culturais na vida social contemporânea às visões e análises chinesas sobre o mundo atual. O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng fizeram uma parceria com a Wenhua Zongheng para publicar uma edição internacional da revista, que Outras Palavras republicará em coluna semanal

Está cada vez mais difícil ter discussões razoáveis sobre a situação do mundo em meio às crescentes tensões internacionais. O atual cenário de conflito e instabilidade global emergiu ao longo dos últimos quinze anos, impulsionado, por um lado, pela crescente debilidade dos principais Estados do Atlântico Norte, liderados pelos Estados Unidos – aos quais chamamos de Ocidente – e, por outro, pela assertividade cada vez maior dos grandes países em desenvolvimento, exemplificada pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Este grupo de Estados, junto com vários outros, construíram as condições materiais para suas próprias agendas de desenvolvimento, incluindo a próxima geração de tecnologia, setor previamente monopolizado pelas empresas e Estados ocidentais por meio do regime de propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio. Ao lado dos BRICS, o surgimento de uma nova ordem econômica internacional é anunciada pela construção de projetos regionais de comércio e desenvolvimento na África, Ásia e América Latina que estão fora do controle ocidental, como são a Organização de Cooperação de Xangai (2001), a Iniciativa Cinturão e Rota (2013), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (2011) e a Parceria Econômica Abrangente Regional (2022).

Desde a crise financeira internacional de 2007-2008, os Estados Unidos e seus aliados do Atlântico Norte se tornaram plenamente conscientes da deterioração de seu status hegemônico no mundo. Esse declínio se deu porque tais países passaram dos limites de três formas decisivas: a primeira, militar, por meio das enormes despesas com as forças armadas e com guerras; a segunda, financeira, provocada pelo galopante desperdício de riqueza social no setor financeiro improdutivo, a imposição generalizada de sanções, a hegemonia do dólar e o controle de mecanismos financeiros internacionais (como o SWIFT); e a terceira, econômica, devido à greve fiscal e de investimento de uma parcela minúscula da população mundial, a quem só interessa encher ainda mais os seus imensos cofres privados. Essa extrapolação levou à debilidade dos Estados ocidentais, que perderam capacidade de exercer sua autoridade mundo afora. Como reação a seu próprio enfraquecimento e aos novos desdobramentos no Sul Global, os Estados Unidos conduziram seus aliados a iniciar uma campanha abrangente de pressão contra quem consideram ser seus “rivais mais próximos”, a saber, China e Rússia. Essa política externa hostil, que inclui guerra comercial, sanções unilaterais, diplomacia agressiva e operações militares, é comumente conhecida como Nova Guerra Fria.

A guerra informacional se soma a essas medidas tangíveis como um elemento chave na Nova Guerra Fria. Atualmente, nas sociedades ocidentais, qualquer esforço para promover um diálogo equilibrado e razoável sobre China e Rússia, ou mesmo sobre os países protagonistas no mundo em desenvolvimento, é duramente atacado por Estados, corporações e instituições midiáticas como desinformação, propaganda ou ingerência externa. Fatos estabelecidos e, sobretudo, perspectivas alternativas, viram tema de disputa. Como consequência, tornou-se virtualmente impossível se envolver em discussões construtivas sobre a ordem mundial em transformação sem ser alvo de cancelamento, seja nas discussões sobre os novos regimes de comércio e desenvolvimento, ou sobre as questões urgentes que requerem cooperação internacional, como mudança climática, pobreza e desigualdade. Nesse contexto, o diálogo entre intelectuais em países como a China e seus pares no Ocidente se rompeu. De forma semelhante, o diálogo entre intelectuais em países do Sul Global com a China também foi dificultado pela Nova Guerra Fria, que tem prejudicado os já frágeis canais de comunicação do mundo em desenvolvimento. Como resultado, o panorama conceitual, os paradigmas e os debates centrais que acontecem na China são quase inteiramente desconhecidos fora do país, o que dificulta muito a realização de discussões ponderadas entre os países.

A Nova Guerra Fria levou a um pico de sinofobia e racismo anti-asiático nos Estados ocidentais, frequentemente incentivado por líderes políticos. O racismo ascendente nos Estados ocidentais aprofundou a ausência de engajamento genuíno de intelectuais ocidentais com as perspectivas, debates e discussões contemporâneas na China. E, devido ao imenso poder dos fluxos ocidentais de informação pelo mundo, tais posturas depreciativas também cresceram em muitos países em desenvolvimento. Embora haja um número crescente de estudantes estrangeiros na China, estes tendem a estudar disciplinas técnicas e, em geral, não se dedicam ou participam nas discussões políticas mais amplas na e sobre a China.

No atual clima global de divisão e conflito, é essencial desenvolver linhas de comunicação que incentivem o intercâmbio entre a China, o Ocidente e o mundo em desenvolvimento. O espectro de narrativas e de pensamento político dentro da China é imenso, e se estende de uma variedade de abordagens marxistas à defesa fervorosa do neoliberalismo, de profundas análises históricas da civilização chinesa às profundezas do pensamento patriótico que cresceram no período recente. Longe de serem estáticas, essas tendências intelectuais evoluíram no tempo e interagiram umas com as outras. Uma rica variedade de pensamento marxista emergiu na China, e abrange do maoísmo ao marxismo criativo. Embora todas essas vertentes se concentrem em experiências, história e teorias socialistas, cada uma desenvolveu uma escola de pensamento singular com seu próprio discurso interno, assim como debates com outras tradições. Já o panorama de pensamento patriótico é muito mais eclético, com algumas tendências se sobrepondo às vertentes marxistas, o que é compreensível, dadas as conexões entre marxismo e libertação nacional, ao passo que outras estão mais próximas às explicações culturais para os avanços do desenvolvimento da China. Essa diversidade de pensamento não se reflete em representações e na compreensão dos estrangeiros sobre a China – nem mesmo na literatura acadêmica – que, ao contrário, reproduz em demasia as posturas da Nova Guerra Fria.

Para contribuir com o desenvolvimento de uma melhor compreensão e engajamento com o pensamento e as discussões que acontecem atualmente na China, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng fizeram uma parceria com Wenhua Zongheng (文化纵横), um prestigiado periódico de pensamento cultural e político chinês contemporâneo. Criada em 2008, a Revista é uma referência importante sobre o desenvolvimento intelectual e os debates que acontecem atualmente na China, e publica edições bimestrais com artigos de intelectuais de um amplo leque de profissões em todo o país. Nessa parceria, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng irão publicar uma edição internacional da Wenhua Zongheng, lançando quatro edições por ano em inglês, português e espanhol, com curadoria realizada por nossa equipe editorial conjunta. A edição internacional irá incluir traduções de uma seleção de artigos das edições originais chinesas de particular importância para o Sul Global. Além disso, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social irá publicar uma coluna na edição chinesa de Wenhua Zongheng, colocando vozes da África, Ásia e América Latina em diálogo com a China (algumas das quais também serão publicadas na edição internacional). Ao contrário da divisão global perseguida pela Nova Guerra Fria, nossa missão é aprender uns com os outros rumo a um mundo de colaboração, e não de confrontação.

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4 comentários para "China: “No limiar de uma nova ordem global”"

  1. Orlando Cesar Buzinaro disse:

    Novas visões para o futuro da humanidade são necessárias, a paz tem que estar sempre na mente e coração de todos os dirigentes e pensadores contemporâneos

  2. Lucia disse:

    A ascensão da china me parece, claro, com suas devidas discrepancias derivadas da epoca, do contexto politico e economico, similar ao roteiro de ascensao dos ianques a posição de hegemonico na ordem global. Em um primeiro momento, quando nao possuiam tal autoridade, faziam contraponto ao imperio britanico em queda e aos regimes fascistas ao oferecer relações em termos de soma zero, ambos ganham, até investissem em força militar e institucional nos diversos organismos emergentes para imporem suas posições perante as outras nações em termos sempre favoraveis a si. O sistema , em sua essencia, com o enfraquecimento ianque demonstra sinais de alteração significativa? Um mundo multipolar? Os chineses sempre tiveram expressoes culturais a denotarem uma tendencia ao imperialismo e ao autoritarismo. O imperio ianque, da violencia, da corrupcao, do terror e do cinismo, deve colapsar, pois o fluxo da historia humana é inexoravel desde que haja uma consolidação de ideias acerca do valor absolutamente negativo de algo,como há em relacao aos abusos ianques . Mas a china moldar uma nova ordem, haveria de ser uma construcao de todas as nacoes, para se construir uma ordem que impeça os paises hegemonicos de usarem suas posicoes de poder para moldar o sistema em seu beneficio. Mas quem sera capaz de construir conceitualmente um novo modelo relacoes entre nacoes e seus poderes. Eu nao acho que as mudanças derivadas da necesidade de se contrapor ao imperio ianque seja substancial e solida, apenas instintos de auto preservação. O que vimos na historia foram apenas mudanças em relacao ao eixo de poder, com expressões diversas dos inperialistas de momento que sejam compatíveis com as tecnologias de momento e com a necessidade de expressar o imperialismo sem copiar o imperialismo passado. A possibilodade de expressao imperialista se esgotara apos a queda do imperio ianque, guiando a humanidade a formulacao de um sistema que impeça o crescimento imperialista de qualquer nacao? Os homens continuam os mesmos, apenas os contextos se alteram A china lidera uma mudança, mas se esquecera do que a motivou no futuro?

  3. Lucia disse:

    Parece me que se esta apenas a substituir os corruptos ianques pelos corruptos chineses. Nao se deveria substituir o dolar pelo yuan, e sim se criar uma moeda internacional exclusiva para relacoes comerciais entre nações e afins . Um peso monetario terreno, claro , isso é apenas uma ideia vaga e generica, ou seja, um mero comentario

  4. Lucia disse:

    O eixo de poder do mundo transitara para a china e isso é inevitavel e muitos já estão cansados de saber. Mas o fato é que quando estiver consolidada, certamente se comportara como todo imperio, e impora com sua hegemonia suas posicoes Nos precisamos de fato como humanos reinventarmos nossas relacoes com o poder. Eu simplesmente nao imagino como algurm possa fazer isso

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