América do Sul, partida e tutelada
Um olhar sobre as causas que tornaram o continente ainda mais periférico e irrelevante, na década de 2020. Elas estão numa geografia difícil mas, em especial, em sociedades fraturadas; e em elites incapazes de forjar projetos nacionais
Publicado 17/01/2025 às 15:43
Por José Luís Fiori
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O texto a seguir integra o número 9 (janeiro de 2025) do boletim do Observatório do Século XXI, parceiro editorial de Outras Palavras. A edição examina a história e as perspectivas geopolíticas e econômicas da América do Sul. Pode ser baixada e lida aqui.
A história sul-americana foi sempre condicionada por uma geografia extremamente difícil, por uma economia fragmentada e voltada para fora, e por uma submissão quase permanente à tutela militar da Inglaterra, no século XIX, e dos Estados Unidos, no século XX. E é possível afirmar, de alguma forma, que até hoje o continente se debate com esses constrangimentos originários e estruturais.
i. uma geografia partida
O continente sul-americano está situada entre o Mar do Caribe, ao norte; o Oceano Atlântico, ao leste, nordeste e sudeste; e o Oceano Pacífico, a oeste. Sua superfície, de 17.819.100 km2, ocupa 12% da Terra e possui 6% da população mundial. Está separado da América Central pelo Istmo do Panamá; e da Antártida, pelo Estreito de Drake, e tem uma extensão de 7.500 km desde o Mar do Caribe até o Cabo Horn, no extremo sul. Cerca de quatro quintos do continente ficam abaixo da Linha do Equador, que corta Peru, Colômbia, Brasil e o país que leva o nome de Equador. A América do Sul possui três grandes bacias hidrográficas: do Rio Orinoco, do Rio Amazonas e do Rio da Prata, e seus rios interiores possuem enorme potencial para navegação e aproveitamento de energia hidráulica. Os três sistemas drenam em conjunto uma área de 9.583.000 km2.
No entanto, o mais importante, do ponto de vista geopolítico, é que se trata de um espaço geográfico inteiramente segmentado por grandes barreiras naturais que dificultam enormemente sua integração física, como é o caso da Amazônia e da Cordilheira dos Andes, que tem 8 mil Km de extensão e atinge 6.700m de altitude, oferecendo apenas alguns pontos de passagem naturais. Na região da Floresta Amazônica, predominam as terras úmidas; na região central do continente, áreas alagadas, como o Pantanal brasileiro e o Chaco boliviano; mais ao sul, há planícies e cerrados; e na costa leste, a floresta original cedeu lugar a agricultura, urbanização e indústria. O litoral atlântico é baixo e possui uma larga plataforma marítima, ao contrário do litoral do Pacífico, que possui grandes profundidades e onde não existem plataformas continentais. Nos Pampas de Argentina, Uruguai, Paraguai e sul do Brasil, encontram-se as terras mais férteis do continente e algumas das melhores do mundo. Existem, ainda, algumas pequenas áreas com bons solos nos vales andinos e na zona central do Chile, na planície equatoriana de Guayas e no vale colombiano de Cauca, além das terras roxas, no lado brasileiro da bacia do Paraná.
Por outro lado, as terras da bacia Amazônica e a maior parte das planícies tropicais são muito pobres e de baixa fertilidade, o que explica o fato de que a população das terras tropicais da Venezuela, Guiana e Suriname viva quase toda a poucos quilômetros da costa. A combinação de montanhas e florestas tropicais também limita enormemente as possibilidades de integração econômica dentro do arco de países que se estende da Guiana Francesa até a Bolívia. No caso do Peru, por exemplo, existe uma clara divisão econômica e social em seu território, entre as zonas costeiras, onde se concentra a atividade extrativa e de exportação, e um interior extremamente isolado e atrasado economicamente. O Chile, por sua vez, possui um clima temperado e terras produtivas, mas é um dos países mais isolados do mundo, o que dificulta sua integração econômica com os demais países do “cone sul” – Argentina, Uruguai e Brasil – e o transforma obrigatoriamente numa economia aberta a exportadores, voltada quase exclusivamente para os EUA e os países asiáticos do Pacífico.
O mesmo se pode dizer dos demais países sul-americanos. Sua inserção na divisão internacional do trabalho, na condição de exportadores de commodities, reforçou sua ocupação econômica e demográfica inicial, dispersa e voltada para o litoral, sempre em busca dos mercados centrais, e com escasso interesse nos mercados regionais. Até o final do século XX, o Atlântico foi mais importante do que o Pacífico para o comércio de largo curso da América do Sul, e a presença de importantes bacias hidrográficas articuladas ao litoral atlântico, além da maior proximidade da Europa e dos EUA, desfavoreceu o lado pacífico do continente nos dois primeiros séculos de sua história independente.
Este panorama econômico vem mudando no século XXI, com o aumento da importância da bacia do Pacífico, graças ao deslocamento do centro mais dinâmico da economia mundial para o Leste e Sudeste Asiático, e à transformação da China no novo dínamo da economia sul-americana. A “virada” ao Pacífico, entretanto, representa ao mesmo tempo um desafio e uma ameaça. Desafio pela dimensão financeira do projeto de integração bioceânica, e ameaça porque o desenvolvimento deste projeto só se viabilizará com a participação da China, que está sendo definida pelos Estados Unidos, neste momento geopolítico do mundo, como seu grande competidor estratégico que deve ser cercado e bloqueado em todos os pontos do sistema econômico mundial.
ii. uma história tutelada
Do ponto de vista geopolítico, entretanto, a América do Sul viveu quase toda a sua história independente sob a tutela anglo-saxônica: primeiro da Grã-Bretanha, até o fim do século XIX, e depois dos Estados Unidos, até o início do século XXI. Além disso, durante o século XIX, foi uma zona de experimentação do “imperialismo de livre comércio” da Grã-Bretanha, e no século XX em particular, depois da 2ª Guerra Mundial, transformou-se num aliado incondicional da política externa norte-americana, que promoveu ativamente a redemocratização e o desenvolvimento do continente na década de 1950. Nos anos 1960, entretanto, depois da vitória da Revolução Cubana, os Estados Unidos apoiaram os golpes de Estado e a formação de governos militares em quase todo o continente sul-americano. E após o golpe que derrubou o presidente Salvador Allende no Chile, em 1973, incentivaram a mudança da política econômica dos governos sul-americanos, que abandonaram – em sua maioria – seu “desenvolvimentismo” do pós-guerra.
No início dos anos 1980, a política do “dólar forte” do governo americano provocou um forte desequilíbrio dos balanços de pagamento na América Latina e deu origem à “crise da dívida externa” que atingiu toda a região, liquidando definitivamente o modelo desenvolvimentista brasileiro que havia sido o mais bem-sucedido da região.
A crise se prolongou por toda a década, mas ao mesmo tempo conviveu com o fim das ditaduras militares e com o início dos movimentos de redemocratização de quase todos os países do continente. Mais uma vez, entretanto, os novos governos democráticos sul-americanos aderiram em conjunto ao projeto da “globalização liberal” liderado pelos Estados Unidos, e às políticas neoliberais do chamado “Consenso de Washington”, que produziram sucessivas crises cambiais – no México, em 1994; na Argentina, em 1999; e no Brasil, em 2001 –, antes de serem abandonados e substituídos por governos que tentaram levar à frente, durante uma década, uma agenda experimental antineoliberal, sem deixar de alinhar-se à estratégia geopolítica global de combate ao terrorismo comandada pelos norte-americanos.
Relembrando a história: depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Washington e New York, a política externa norte-americana mudou de rumo, relegando ao segundo plano as questões econômicas e priorizando o combate global ao terrorismo. Nesse novo contexto, o governo republicano de George W. Bush manteve seu apoio ao projeto da ALCA de integração econômica da América do Sul, proposto na década de 90 pela administração Clinton, mas já sem o entusiasmo das administrações democratas. Até porque a resistência sul-americana e, em particular, a oposição do Brasil e da Argentina após 2002, esvaziaram e logo engavetaram a proposta norte-americana em 2005.
Os EUA mudaram, então, seu projeto inicial e passaram a negociar tratados comerciais bilaterais com alguns países do continente. Assim, depois do fracasso das políticas neoliberais do Consenso de Washington, do abandono do projeto da ALCA e da desastrosa intervenção norte-americana a favor do golpe militar da Venezuela, em 2003, os Estados Unidos mudaram sua posição no que se referia aos assuntos continentais, atraídos cada vez mais pelos novos desafios que vinham da Ásia e do Oriente Médio, e do avanço da OTAN na direção da Europa do Leste. Essa tendência se fortaleceu na segunda década do século XXI, quando o esfacelamento da “ordem mundial” estabelecida depois da Guerra Fria e a mudança do foco geopolítico mundial reduziram a quase nada a atenção americana em relação à América do Sul, o que não impediu que eles apoiassem os golpes de Estado de Honduras, Paraguai e Brasil durante o governo democrata de Barack Obama.
Na terceira década do século, entretanto, depois da catástrofe da pandemia de Covid-19 e frente ao desafio das guerras da Ucrânia e de Gaza, e mais ainda, face ao deslocamento do eixo dinâmico da economia mundial na direção da Ásia e da China, em particular, a América do Sul reduziu ainda mais sua importância geopolítica e geoeconômica no sistema internacional, dividindo-se de cima abaixo frente ao conflito entre Estados Unidos e Venezuela, e desintegrando-se como um ator geopolítico global.