Uma “esquerda brâmane” não serve ao Brasil
Eleições aproximam-se, mas PT e seus aliados ainda não enxergam a cilada à sua frente. Ao defenderem as instituições sem propor rupturas, aparecem como gestores de sistema que espalha desigualdade, desesperança e revolta. Bernie Sanders já mostrou que há alternativa
Publicado 15/05/2025 às 16:50 - Atualizado 15/05/2025 às 18:32

Título original
Democracia ou luta de classes?
Em entrevista ao Estadão (14 abr. 2025), o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), afirmou que a atual gestão é uma frente ampla criada para salvar a democracia em 2022 e que, por isso, as próximas eleições não girarão em torno de direita versus esquerda, mas sim de democracia versus autoritarismo.
Contudo, os indícios sugerem que o pleito de 2026 será, sim, marcado pelo conflito tradicional entre classes.
Revisitando 2022: a coalizão democrática
Naquele ano, formou-se uma aliança particularmente heterogênea em torno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), reunindo desde a esquerda e movimentos sociais até setores cosmopolitas do capital e da mídia corporativa. Isso ocorreu porque parcela significativa da burguesia nacional – incluindo a cúpula do Judiciário – concluiu que somente Lula poderia derrotar Jair Bolsonaro (PL), responsável por mais de 700 mil mortes na pandemia.
Do outro lado, o bolsonarismo congregou o agronegócio, o policialismo, o evangelicalismo e setores do capital nacional, conforme análise do cientista político André Singer. O subproletariado (renda de até dois salários-mínimos) apoiou Lula, enquanto os remediados (dois a cinco salários) optaram majoritariamente por Bolsonaro.
O tabuleiro em transformação
Felizmente, a ameaça bolsonarista direta hoje perde força. Com a inelegibilidade de Bolsonaro e uma muito provável condenação judicial, o capital cosmopolita – que antes o via como risco – tenderá a migrar para candidatos mais palatáveis do que ele, mas que também não tenham raízes na esquerda. O nome em ascensão é o de Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), expoente de um bolsonarismo “light”. Embora a ausência de Bolsonaro fragmente a direita em 2026, a tendência é que as diversas correntes conservadoras se unifiquem em torno do atual governador de São Paulo em um eventual segundo turno.
O conflito capital-trabalho
Enquanto o Judiciário assegura a estabilidade institucional, o debate que definirá os próximos anos no Brasil continua sendo a questão distributiva — ou seja, como as riquezas do país serão repartidas. Esse tema, central na coalizão que elegeu Lula, ganha contornos práticos em propostas divergentes.
Um exemplo recente: em 12 de abril, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e apoiador de Lula em 2022, defendeu o congelamento do salário mínimo por seis anos. Já o governo enviou ao Congresso a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) com previsão de um piso nacional de aproximadamente R$ 1.630,00 em 2025 — um reajuste real de 2,5%. Apesar de modesto, o aumento contrasta com a proposta de Fraga, e essa divergência, amplificada nas redes sociais, reflete a tensão no cerne da coalizão governista.
O presidente deixou claro em discursos recentes que sabe que esse é o cerne da questão: “Governar para menos gente não gera déficit fiscal”; “Não tenho que prestar contas a banqueiros, mas ao povo pobre”; “Os bancos não precisam do Estado, mas exigem superávit primário e bilhões à disposição”.
O discurso transformar-se em realidade, porém, é algo mais difícil considerando a conjuntura política, econômica e social em que Lula assumiu.
As políticas de inclusão, hoje restabelecidas a duras penas, já não carregam o caráter inovador da primeira década dos anos 2000. A renda familiar média efetivamente cresceu, a pobreza diminuiu e a segurança alimentar avançou – indicadores que melhoraram em relação ao governo anterior (2019-2022), mas ainda não recuperaram os patamares de 2014, antes da recessão e da pandemia. Além disso, esse avanço convive com contradições: o custo do aluguel atingiu níveis recordes (especialmente nas grandes cidades), a inadimplência atingiu níveis recordes – impulsionada pela alta dos juros e pelo endividamento como substituto da política de salário-mínimo, no Brasil e no mundo. O desemprego, embora em 7,8% (IBGE, março de 2024), esconde uma informalidade de 39,3% da população ocupada e uma precarização imensa. Esses fatores pesam na avaliação do governo, como mostram as pesquisas.
O paralelo global
A pandemia revelou que a austeridade é uma escolha política, não uma fatalidade. Porém, passado o pico da Covid-19, a ortodoxia econômica se restabeleceu e a consequente crise social alimenta a extrema direita. Enquanto o neoliberalismo amplia desigualdades, crescem forças antissistêmicas como Giorgia Meloni (Itália) e Javier Milei (Argentina) – aliadas do grande capital, mas que surfam no caos por ele gerado.
O Brasil tem vivido um déjà-vu geopolítico em relação aos Estados Unidos, com dois anos de atraso: enquanto os norte-americanos elegeram Donald Trump em 2016, nós tivemos Jair Bolsonaro em 2018; a vitória de Joe Biden em 2020 antecedeu a de Lula em 2022; e o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 ecoou nos eventos de 8 de janeiro de 2023. Em 2024 os Estados Unidos elegeram novamente Trump – mas, quando chegarmos a 2026, Bolsonaro estará inelegível. O risco atual é diferente: assim como o Partido Democrata norte-americano, o PT pode cair na armadilha de seu próprio sucesso ao normalizar as instituições, criando um cenário propício para o retorno da direita renovada.
A armadilha da esquerda brâmane e o perigo da direita “rebelde”
Em Capital e ideologia, Thomas Piketty caracteriza o Partido Socialista francês como representante da “esquerda brâmane” – ou seja, mais vinculado às elites urbanas escolarizadas e cultas do que comprometidos com uma redistribuição efetiva da propriedade ou com uma identificação genuína com a classe trabalhadora. Essa análise ressoa no argumento de Matthew Karp, publicado na New Left Review, sobre o Partido Democrata norte-americano: mesmo com as políticas trabalhistas de Biden e sua oposição à austeridade, o partido não rompeu com sua desconexão histórica com os trabalhadores, consolidada desde a era Barack Obama.
Em contraste, o Partido Republicano encarna, na tipologia de Piketty, a “direita mercantil” – uma aliança entre a defesa intransigente do capital e pautas conservadoras (nacionalismo, valores tradicionais), estrategicamente direcionada a setores populares descontentes. Beneficia ricos, mas usa retórica anti-elite. Esse modelo, eficaz nos Estados Unidos, no Brasil e em outras economias capitalistas, explora o sentimento de abandono entre as massas que se veem excluídas dos frutos do crescimento econômico, da política e das oportunidades – e para as quais o conceito de democracia faz pouco sentido.
No entanto, os democratas pareciam tão satisfeitos com o status quo que a campanha de Kamala Harris adotou a “alegria” como mote central – uma abordagem semelhante à de Hillary Clinton em 2016. Ao rotular Trump como um “rebelde”, a estratégia democrata, em vez de minar seu adversário, acabou por reforçar sua imagem de outsider, alinhando-se ao descontentamento popular. Esse cenário explica, em parte, o crescimento de Trump entre eleitores tradicionalmente alinhados aos democratas, como a população negra, mulheres em idade reprodutiva e latinos.
Bernie Sanders, nos Estados Unidos, tem sido enfático em demonstrar que a desigualdade econômica, pela qual pequena elite controla vastos recursos e influência política, ameaça os princípios democráticos ao criar um sistema oligárquico que marginaliza a maioria da população – a qual, por sua vez, vai se sentir seduzida por discursos extremistas e simplistas, mas que sugerem algo aparentemente novo. Em outras palavras, a perpetuação de desigualdades estruturais é que alimenta narrativas de extrema direita. E Sanders tem tido sucesso em espalhar sua mensagem. Seus comícios, com Alexandria Ocasio-Cortez, reuniram dezenas de milhares de pessoas.
O desafio do PT
Lula opera no mesmo campo minado: sua coalizão ampla exige moderação, mas o povo pobre e trabalhador espera respostas concretas. Para evitar o dilema democrata, o PT precisa equilibrar a necessária defesa das instituições com mudanças estruturais – sob risco de parecer “gestor do sistema” para quem enfrenta quatro horas de ônibus diários e mal fecha as contas no fim do mês e, com razão, quer uma ruptura.
A proposta de reforma do Imposto de Renda sinaliza essa direção, mas não basta. Enquanto a extrema direita se apropria da narrativa de futuro (paradoxalmente, aprofundando desigualdades), a esquerda precisa mostrar que governar para os pobres exige confrontar o sistema. Se a direita global aprendeu a vestir a máscara da rebeldia (servindo ao capital), a esquerda não pode permitir que a defesa da democracia se confunda com a manutenção de regras que a asfixiam.
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