Um caminho para Boulos

Ele não tem por que partir para o tudo-ou-nada de Tabata; nem ganharia em se tornar “mais agressivo”, como querem alguns. Mas a ausência de uma mensagem clara sobre a cidade, suas misérias e alternativas o está transformando num candidato insípido

Imagem: Renato Pizzutto/Band/Debate
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Guilherme Boulos, o candidato a prefeito de São Paulo cuja vitória pode transformar o cenário político do Brasil, fez um novo movimento nesta terça-feira (27/8). Convocou para o próximo sábado, na emblemática Praça Roosevelt, um encontro com seus apoiadores. Anunciou que estará presente e que levará, entre outros, o compositor Crioulo. É um giro. Sua campanha estava marcada, até agora, pela ausência de grandes atos de rua e pela despreocupação em mobilizar a militância. Ao mudar de atitude, Boulos agiu pressionado, certamente, pelo avanço de Pablo Marçal (da ultradireita) nas pesquisas; e, desde segunda-feira, pela reação corajosa de Tabata Amaral (do PSB) a este ascenso. Mas a nova iniciativa será suficiente?

Boulos fez até agora uma campanha defensiva. É compreensível. Líder de ocupações urbanas, ele está muito à esquerda do pensamento médio atual do eleitorado. As chances estavam na repulsa da maioria ao abandono da cidade e na tibieza de Ricardo Nunes, um prefeito ausente; ao mesmo tempo, no entusiasmo que sua candidatura desperta entre a esquerda e no apoio de Lula, majoritário entre os paulistanos em 2022. Estes elementos, pensava a campanha do líder do MTST, permitiriam derrotar Nunes no segundo turno. Foi então que o fator Marçal sacudiu o tabuleiro e exigiu recalcular a rota.

As análises que mais repercutiram sobre a força do ex-coach destacam seu poder nas redes sociais. É apenas parte da equação, e talvez a menos importante. Marçal é forte por combinar esta influência com uma narrativa política que, nas condições atuais, tornou-se atraente para uma parcela do eleitorado presente em todas as classes. Ele não é o antissistema, mas o anti-Estado. Dialoga, sim, com os homens brancos ressentidos pelo desafio a sua antiga dominância sobre as mulheres, em qualquer extrato social. Mas fala também aos setores médios que não encontram, na economia regredida do Brasil, espaço para exercer sua qualificação profissional. E, em especial, aos precarizados pobres (como os motoristas e entregadores de empresas-plataforma), para quem o Estado nada oferece de concreto (nem férias, nem aposentadoria, nem auxílio-acidente, nem auxílio-doença); apenas proibições, multas e punições.

Como dialogar com este vasto contingente, que está se tornando cada vez mais numeroso? Tabata ataca Marçal pessoalmente, e com isso cumpre um grande papel na disputa. É o espaço dela, que Boulos não pode imitar. O candidato do PSOL está articulando de forma explícita, na convocação do ato de 31/8, o discurso do anti-bolsonarismo. É provável que isso não baste.

Ser o anti-Bolsonaro pode alimentar as energias contidas de algumas centenas ou milhares de militantes – o que é válido. Mas o que diz às milhões de pessoas da periferia, que lutam simplesmente por uma vida melhor, menos sujeita à morte, à insegurança e ao desamparo? Ser contra Bolsonaro – e a favor da democracia formal – tornará a vida menos árida? Oferecerá esperança de um futuro melhor, em meio ao trabalho que se assemelha a castigo e aos cortes constantes de recursos para os serviços públicos?

É provável que falte a Boulos – talvez por sua aproximação muito íntima com o lulismo – uma perspectiva antissistêmica. Um propostitivismo não-conformista, que dialogue com as necessidades concretas da população e ofereça soluções que já não cabem na pequenez política contemporânea – limitada pela ideia de que não há alternativas.

Um exemplo: o ensino público em tempo integral, a ser implementado progressivamente, nas 1.068 escolas do município de São Paulo, de forma a romper as barreiras artificiais entre Educação e Cultura. No turno, alunas e alunos têm acesso a saberes civilizatórios necessários para o exercício da cidadania, e não apenas ao mercado de trabalho. Filosofia, Sociologia, História, Geografia, assim como Língua, Matemáticas e Ciências Naturais. No contraturno, estabelecem contato teórico e prático com saberes culturais, artísticos e esportivos hoje em boa parte desprezados. O futebol (de ambos gêneros) e a ginástica de solo; mas também os ritmos musicais de criação popular (do samba ao funk e ao rap); a capoeira e a meditação; o cultivo de hortas comunitárias; a criação de sites e a editoração de jornais impressos e livros; a gestão de pequenas cooperativas.

Há inúmeras outras propostas possíveis, em sintonia com a mesma lógica de desmercantilização, des-segregação, cidade sem cercas e para todos. São viáveis; por isso dialogam com o senso comum — podendo incidir mesmo num ambiente como a disputa eleitoral, pouco propício a debates de fundo. Pense, por exemplo, na universalização das Equipes de Saúde da Família, que hoje atendem a menos de 50% da população. No direito a teto (em abrigos humanizados), trabalho e assistência psicológica para 100% da população de rua, que deixaria de habitar as sarjetas. Na despoluição dos rios urbanos, a partir do momento em que a prefeitura decida desvincular-se da Sabesp privatizada e assuma seu próprio serviço de Saneamento (como fizeram Paris, Berlim e centenas de outras cidades em todo o mundo). Nas dezenas de milhares de postos de trabalho dignos que estas decisões gerariam – inclusive para a classe média.

Todas estas propostas têm dois pontos em comum. Elas dialogam com necessidades muito concretas e imediatas da população – o que é necessário, em tempos de descrença ou cansaço com as velhas utopias. Mas, ao mesmo tempo, elas não se esgotam em si mesmas, pois abrem portas para outras lógicas sociais. Se o ensino de excelência for o da escola pública, por que a Saúde não pode ser, também? Não é possível imaginar um futuro sem a medicina de negócios? E se for possível despoluir os rios urbanos, por que não será viável reconstruir a rede brasileira de ferrovias?

Tudo isso remete ao tema do horizonte político. A esquerda brasileira não reconstruiu o seu desde a queda do socialismo primitivo e o colapso, no país, do movimento operário e sindical – por décadas, a coluna vertebral das lutas sociais.

Guilherme Boulos expressou, nos últimos dez anos, parte importante das esperanças de reconstrução. Nos próximos 30 dias, ele estará diante do desafio de manter acesa esta chama, e de corresponder ao papel e à responsabilidade que assumiu.

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