O que fazer com o militar

Em novo livro, historiador defende bloquear os meios de intervenção das Forças Armadas na política. Leia capítulo em que ele analisa as disputas entre as três forças e propõe desmilitarizar as decisões da Defesa e centralizar o comando das casernas

Foto retirada do site Estratégia Militar
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Este texto é um trecho do livro O que fazer com o militar, de Manuel Domingos Neto

Comandantes não podem conduzir a Defesa Nacional porque suas corporações vivem disputando entre si. Alimentam velhas rusgas e agarram-se a cada milímetro de espaço no aparelho de Estado. Forças de terra, ar e mar não se entendem facilmente quanto aos seus papeis na Defesa. Cada uma se julga mais decisiva e meritória que a outra. Assim são as corporações, diga-se de passagem, civis e militares.

Sujeita à determinação exclusiva dos comandantes, a política de Defesa será insatisfatória. Ainda hoje se discute a possibilidade de o Japão ter perdido a Guerra do Pacífico por conta da querela entre suas forças terrestre e naval. A Defesa não pode resultar de arranjos entre corporações embevecidas por suas especialidades e dimensões. Confrontos de pontos de vista entre comandantes são corriqueiros, embora nem sempre evidenciados. Precisam ser arbitrados pelo poder político para evitar acirramentos deletérios.

Guerras são preparadas e se desenvolvem em sequências imprevisíveis; desdobram-se em processos sociais de larga significação, condicionando o advir. A capacidade militar decide menos que a percepção certeira de tendências sociopolíticas.

A potência que mais guerreou no último século, os Estados Unidos, desde 1945 coleciona derrotas. A responsabilidade pelo fracasso é, sobretudo, do político. No Vietnã, o ianque perdeu devido à comoção mundial insuflada por sua agressividade e à habilidade do vietnamita, que recebeu apoio do mundo inteiro. No terreno, quem dobrou o Império foi Nguyen Giap, que ganhou patente de general, mas em essência, era um professor de história.

Quando Hitler desencadeou seus primeiros ataques, a defesa europeia estava nas mãos de Gamelin, chefe do Estado-Maior do exército francês, a maior força terrestre do continente. Gamelin conquistou os políticos e o vexame veio à galope. Quando os tanques nazistas se movimentaram, houve o que os franceses chamam de “guerra da mentira”. Gamelin terminou preso pelo invasor. Não traiu, mas seu nome ficou associado à humilhação dos franceses. Em Paris, não há uma avenida com seu nome. Só os especialistas sabem de seu triste papel.

Hoje, com a Europa assombrada por outra conflagração, encontro a verve de Gamelin no Livro Branco da Defesa e da Segurança Nacional da França, publicado em 2013, quando já estava em curso o cerco da Rússia pela Otan:

(A Europa) não é mais o epicentro da confrontação estratégica mundial. (…) Durante meio milênio, a Europa esteve no coração dos conflitos da história mundial. (…) Hoje, a Europa contribui para a segurança coletiva intervindo na gestão de crises regionais. Ela o faz promovendo valores de porte universal.

Como esquecer que, em 2013, a Europa já se enroscara no projeto do Pentágono de reduzir a Rússia? Hoje, o continente se afunda nos efeitos da guerra. A maioria das vítimas está no espaço que, segundo o documento, teria deixado de ser o “coração dos conflitos da história mundial”. Os africanos que tentam a travessia do Mediterrâneo escancaram a demagogia de seus “valores de porte universal”.

Comandantes são limitados para formular a Defesa Nacional porque se trata de política pública de amplo espectro. Abrange o conjunto do aparelho de Estado e a sociedade, como tenho insistido. Transcende os assuntos militares. Registrei também que quem controla a Defesa, controla o Estado e tenta impor sua vontade à sociedade. Se o militar der as cartas na Defesa, exercerá poder discricionário. Encarnará figuras de reis e imperadores que comandavam tropas montados a cavalo.

Dedicando-se à tarefa eminentemente política, o militar comprometerá suas habilidades profissionais, tal como o neurocirurgião que, ocupado em planejar política de saúde pública, perderá seu desempenho em mesa de cirurgia. Exceções confirmam a regra.

No caso brasileiro, o militar posterga o inevitável: o reconhecimento do chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA) como autoridade militar maior. A criação desta instância fundamental ao entrosamento corporativo foi protelada por muito anos até ser criada em 2010, por Nelson Jobim. Não obstante, as corporações garantiram que sua função se resumisse a uma assessoria do Ministério da Defesa e que seu comandante detivesse autoridade equivalente a dos comandantes das forças singulares.

Na prática, foram criados mais postos desnecessários para oficiais superiores em Brasília. Na reforma militar que imagino, cada corporação deve ser comandada pelo chefe do Estado-Maior. O chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas deve ser a maior autoridade militar do país, secundando apenas o ministro da Defesa, cuja autoridade é fundada em determinação do presidente da República.

O planejamento da Defesa brasileira é prejudicado pela larga supremacia do Exército. Desde a Revolta da Armada, no início do regime republicano, a Força Terrestre é a mais forte, apesar de ser a menos apta para reagir ao agressor estrangeiro. Sua importância advém do fato de ser a mais capaz de se impor internamente.

Hoje, o Exército brasileiro considera que deve “atuar nos Domínios terrestre, marítimo, aéreo, cibernético, eletromagnético e espacial”, como prescreveu seu Estado-Maior no Manual de Fundamentos. A Força Terrestre resiste em admitir a primazia da Aeronáutica e da Armada na Defesa Nacional.

A fidelidade principal do militar é com sua corporação. A camaradagem é cultivada desde o início da carreira e escora a ascensão hierárquica. Neste sentido, nenhuma outra cultura corporativa se iguala à militar, que defende suas instituições com unhas e dentes, bem como suas especialidades técnicas.

Comandantes disputam recursos orçamentários e posições no sistema de Defesa. Assim, comprometem decisões necessárias à eficácia do sistema. O desentrosamento é oneroso devido à sobreposição de estruturas, em particular nos âmbitos do ensino, pesquisa, assistência médica e produção de armas e equipamentos.

O militar é um ególatra de berço. O infante aprende que a infantaria é eterna majestade das linhas combatentes. O artilheiro acha que o mais alto valor de uma nação ruge n´alma do canhão. O engenheiro quer a Engenharia fulgurando sobranceira na paz ou na guerra. O cavaleiro diz ser a estrela guia em sombrios horizontes. O aviador se reclama bandeirante audaz, cavaleiro do século do aço. O marinheiro acha que sua linda galera protege os mares da pátria em que tanto pensa. O militar não é o mais indicado a tomar decisões que afetem diretamente suas corporações e especialidades.

A egolatria castrense encafifa o civil, mas é compreensível: o espírito de corpo é imperativo para candidatos ao gesto supremo de abater o semelhante ou morrer. Disso decorre o estímulo permanente à competição no seio das fileiras, onde cada um busca superar-se e ser o melhor.

A egolatria é compreensível, mas, na concepção de Defesa, precisa ser contida pelo representante da soberania popular, que deve saber ouvir e construir arranjos entre as corporações mirando a eficácia do conjunto.

Certa feita, o comandante de uma unidade da Marinha convidou-me para proferir uma conferência. No almoço que se seguiu, estranhei o fato de não ser convidado para sentar-me ao seu lado. Puseram-me defronte à sua cadeira porque o comandante precisava separar fisicamente dois desafetos, velhos almirantes que não se falavam em decorrência de disputa de orientações relativas à Força. Fui usado para evitar que os dois sentassem lado a lado. Rivalidades internas impedem o militar de conduzir coerentemente a Defesa.

Corporações militares não podem pontificar na formulação desta política pública nem gerenciá-la. Isso representaria a militarização, aberta ou sub-reptícia, do aparelho estatal e da sociedade, ou seja, a conspurcação da democracia. As corporações devem subordinar-se às diretrizes da Defesa.

O militar é sacrificado com a guerra, mas é também beneficiado: mostrando serviço, é promovido e glorificado. A necessidade de reconhecimento do militar é exibida no peito enfeitado por insígnias.

Sendo beneficiário da ação guerreira, o militar não é o servidor indicado para decidir sobre o emprego da força. Deve ser ouvido na formulação da política de Defesa, assim como os policiais no estabelecimento da Segurança Pública e os profissionais da saúde na política sanitária.

Entregue aos profissionais das armas, a Defesa Nacional refletirá interesses restritos e futricas corporativas. Seus fundamentos serão limitados e enganadoras as suas diretrizes. Se a Defesa brasileira persistir ditada por comandantes, como sempre ocorreu, será perdulária, tacanha e vexatória. A democracia ficará sob risco permanente e a soberania persistirá uma quimera.

O guerreiro tem papel importante na defesa de uma sociedade, mas será sempre papel complementar. O soldado deve aprender que seu valor não encerra “toda a esperança que um povo alcança”, como diz a canção do Exército Brasileiro.

O derramamento de sangue é inerente à experiência humana, mas pode ser evitado. Potenciais agressores ofendem apenas quando percebem possibilidade de dobrar a vítima. A arte de contornar a guerra sem abdicar da vontade própria não é especialidade do guerreiro, mas do político. Corporações militares são ferramentas da política externa, não tem competência para dirigir os negócios da defesa.

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2 comentários para "O que fazer com o militar"

  1. MIRIAN MORALES NOGUEIRA GONCALVES disse:

    Excelentes artigos, parabéns . Visão crítica, fundamentada. Utilizo em sala de aula.⁸

  2. MIRIAN MORALES NOGUEIRA GONCALVES disse:

    Excelentes artigos, parabéns

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