Lula e a “distância entre intenção e gesto” 

Governo foi contundente na defesa da soberania nacional diante do tarifaço de Trump. Mas faltam ações: endurecer relações com as big techs, rever contratos com petrolíferas estadunidenses, acirrar regulamentação das terras raras… O xadrez diplomático deve ir além da retórica

Foto: Ricardo Stuckert / PR
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Ao longo das últimas semanas, o presidente Lula tem elevado o tom de suas declarações quando o assunto são as relações internacionais, seja dos conflitos militares de forma geral no globo, seja nas questões que dizem respeito mais diretamente ao Brasil. No entanto, um aspecto que chama bastante a atenção dos analistas é a enorme “distância entre intenção e gesto”, como escreveu Chico Buarque em sua canção Fado Tropical. Quando o tema é a escalada de agressão militar em Gaza e contra a população palestina de maneira generalizada, Lula não tem poupado adjetivos e substantivos contra Benjamin Netanyahu e o Estado de Israel. Além disso, quando se trata de comentar as ações mais recentes do presidente estadunidense, Lula também tem mantido um tom de crítica bastante severa.

Genocídio em Gaza: muita fala e pouca ação

No caso de Gaza, o presidente brasileiro tem se revelado muito certeiro em sua análise e no diagnóstico das ações bélicas efetuadas por Israel. Em setembro, ele assim se manifestou:

(…) “Não é guerra contra Hamas, é genocídio palestino” (…) [GN]

Levando-se em conta a cautela com que a maioria dos líderes políticos do chamado mundo ocidental trata do tema, o uso da expressão “genocídio” para qualificar a ação bélica israelense representa um importante posicionamento no xadrez da diplomacia global nos tempos atuais. Alguns meses antes, em junho, Lula já havia declarado o seguinte:

(…) “O que nós estamos vendo não é uma guerra entre dois exércitos preparados, em campo de batalha com as mesmas armas. É um exército altamente profissionalizado matando mulheres e crianças indefesas na Faixa de Gaza. Isso não é uma guerra. É um genocídio contra e em desrespeito a todas as decisões da ONU, que já pediu o fim dessa guerra” (…) [GN]

No entanto, apesar de estas intervenções públicas do presidente, o seu governo não tem adotado as medidas que seriam esperadas em relação a Israel. Para além de adotar uma postura mais incisiva nas relações diplomáticas com o Estado sionista, seria essencial que o Brasil decidisse reduzir as possibilidades de intercâmbio comercial entre os dois países. Um dos aspectos mais relevantes, por exemplo, refere-se à continuidade de exportação de petróleo do território brasileiro para lá, quando se sabe que isso significa contribuir de maneira significativa para a manutenção do genocídio e da máquina de guerra. Além disso, o Brasil exporta também alimentos para lá, em especial com destaque para carnes e soja. Apesar de a Petrobrás assegurar que não tem exportado mais óleo bruto direto para Israel, o fato é que podem ser criados mecanismos de terceirização e/ou intermediação lateral das operações comerciais, de forma a mascarar o fato de que há petróleo brasileiro chegando para sustentar o genocídio perpetrado por Netanyahu.

Trump: faltam medidas contra as sanções

Em outra ponta das tensões nas relações internacionais, ganha cada vez mais destaque a postura agressiva e violenta de Trump contra o Brasil. Em meio à adoção de um tarifaço que atingiu praticamente todos os países do mundo em suas fases iniciais, pouco a pouco o chefe da Casa Branca resolveu concentrar suas baterias contra o nosso país. A estratégia de Trump envolvia focar na defesa de Jair Bolsonaro como argumento para justificar as medidas de natureza comercial. Ocorre que as estatísticas de comércio exterior entre os dois países evidenciam que os Estados Unidos são superavitários em suas trocas com o Brasil.

Assim, não cabe argumento nenhum no campo da economia para justificar as tarifas adotadas. À medida que o tempo foi passando, ficou evidente que o intuito era de natureza político-ideológica, ao buscar beneficiar um aliado de primeira hora do atual governo estadunidense. O encerramento do julgamento de Bolsonaro e demais integrantes da tentativa golpista pelo Supremo Tribunal Federal (STF) não diminuiu o tom pesado da parte de Washington. Pelo contrário, as ameaças são de um aprofundamento ainda mais grave das sanções personalizadas contra os membros do STF que votaram pela condenação do ex-presidente.

Por outro lado, fica evidente que as preocupações de Trump também se localizam no fortalecimento dos Brics e na tendência de perda de poder do dólar como moeda internacional. Ao mirar o Brasil, que atualmente exerce a presidência temporária do bloco, ele pretende atingir os demais países do mesmo, em especial a China e a Rússia.

Nesta disputa com os Estados Unidos, Lula também adota um tom bem assertivo. Afinal, trata-se de defender o processo democrático em nosso país, assim como de afirmar nossa soberania nacional. Aliás, é interessante observar como a movimentação de Trump terminou por permitir ao governo brasileiro retomar a iniciativa na política interna, identificando o inimigo externo e buscando reforçar a narrativa de união nacional contra os ataques injustificados que estamos sofrendo.

A iniciativa mais recente de Lula foi uma carta aberta dirigida a Trump, publicada inicialmente no jornal The New York Times e depois compartilhada por diversos outros órgãos da imprensa internacional. O tom já surge logo na opção do título do artigo:

(…) “A democracia e a soberania do Brasil não são negociáveis” (…) [GN]

Em seguida, algumas frases são bem fortes na denúncia dos atos do governo de Trump e na defesa da nossa institucionalidade.

(…) “A falta de racionalidade econômica por trás dessas medidas deixa claro que a motivação da Casa Branca é política” (…) [GN]

(…) “Não há diferenças ideológicas que deveriam impedir dois governos de trabalharem juntos em áreas onde têm objetivos comuns” (…) [GN]

No entanto, a exemplo do que ocorre com a questão do genocídio israelense, também na relação com os Estados Unidos o governo brasileiro não adotou nenhuma medida mais dura para fazer frente àquelas implementadas por Trump. Lula fala forte, mas sua equipe ministerial não anuncia nenhuma decisão que pudesse fazer sentir o peso econômico por parte dos norte-americanos. Para compor o cardápio de medidas possíveis de serem anunciadas, não faltaram sugestões desde que o chefe da Casa Branca colocou em marcha seu tarifaço nossas exportações e as demais sanções de natureza não comercial.

O governo brasileiro poderia recorrer à lei de patentes e deixar de remeter às empresas estadunidenses tais ganhos financeiros. O governo brasileiro poderia rever os processos de licitação de exploração de petróleo, onde as empresas daquele país são presença constante nos poços concedidos. O governo brasileiro poderia recorrer a um endurecimento nas relações com as chamadas “big techs”, a grande maioria também de origem norte-americana. O governo brasileiro poderia adotar um comportamento igualmente acirrado na regulamentação das terras raras, domínio em que temos grande potencial de exploração e que interessa enormemente às empresas norte-americanas.

Enfim, o fato concreto é que Lula fala muito e mais forte do que as medidas anunciadas por sua equipe. Tendo em vista a profunda gravidade dos dois dossiês aqui tratados, o que se percebe é que há uma evidente falta de sintonia entre intenção e gesto. E isso tem levado analistas a considerar que talvez não haja assim tanta intenção da parte de Lula. Ou seja, permite a inferência de que talvez se trate mais de um jogo de cena do que propriamente de algum xadrez diplomático mais elaborado.

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