Controle social: governo dá um passo atrás

Em encontro com movimentos e organizações, assessor do general Santos Cruz propõe diálogo. Mas uma deputada do PSL insiste em ferir Constituição e monitorar os que lutam por direitos

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Por Mauri Cruz

O Secretário Nacional de Articulação Social, Iury Ribeiro participou na última quinta-feira de reunião com organizações da sociedade civil em São Paulo, representando o ministro da Secretaria de Governo, general Santos Cruz. Nesta reunião, o Secretário Nacional externou que há um equívoco de interpretação em relação à MP870/2019 porque o governo não pretende controlar a sociedade civil mas tão somente ter controle sobre os recursos públicos. Essa afirmação, já dada pelo próprio ministro [em outras ocasiões, poderia representar um alívio para quem defende a autonomia da sociedade civil em relação ao Estado como uma das bases da democracia.

No entanto, ao mesmo tempo em que ela é dada em tom oficial, o próprio secretário informa que o governo apoia a emenda proposta pela deputada Bia Kicis (PSL/DF) que altera a redação do artigo 5o da MP870/2019. Na proposta de alteração, a parlamentar do PSL propõe substituir os termos “supervisão, coordenação e monitoramento das ONGs nacionais e internacionais” vigentes por força da referida MP, por trecho que diz ser competência do governo federal “acompanhar as ações, os resultados e verificar o cumprimento da legislação aplicável às organizações internacionais e às organizações da sociedade civil que atuem no território nacional”.

Ora, a inconstitucionalidade mantém-se com a redação proposta pela deputada, porque segue havendo interferência indevida de um governo sobre as organizações da sociedade civil. Interferência essa vedada pela Constituição Brasileira. E já que estamos falando sobre termos jurídicos, o termo decidido pelos constituintes é esse mesmo, veda qualquer interferência do estado em relação a atuação das organizações da sociedade civil (OSCs) no Brasil.

Gostaríamos de alertar o Ministro Santos Cruz e sua assessoria de que, para controlar os recursos públicos objeto de parcerias com a sociedade civil, já há instrumentos apropriados.  Após exaustiva discussão com o Tribunal de Contas da União e os Tribunais de Contas Estaduais, o Ministério Público Federal, a Corregedoria-Geral da República, os ministérios do Planejamento, da Saúde, da Educação, do Desenvolvimento Social e outros órgãos públicos, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República, a Lei 13.019/2014. Este lei possui mecanismos transparentes de acesso, execução, controle, prestação de contas e, caso haja irregularidades, de penalizações para os gestores públicos e as OSCs. Ou seja, há legislação apropriada para tratar a necessária transparência e o controle público sobre os recursos repassados pelo governo federal, governos estaduais e municípios às organizações não governamentais. Por isso, é preciso que o governo se dê conta que a MP870/2019, com seu artigo 5o, somente trouxe confusão e insegurança jurídica onde recentemente o tema foi pacificado.

O que fica no ar é que, havendo instrumentos legais para o controle dos recursos públicos, qual seria o sentido do novo governo pretender estabelecer regras de controle sobre a atuação das organizações da sociedade civil? Qual o sentido de estabelecer estas regras através de uma medida provisória que trata sobre a organização da estrutura de gestão da administração publica federal?

Aqui me parece que há sinais trocados de quem deve controlar quem. Nas democracias, por serem eleitos para representar os interesses da sociedade civil, e principalmente por serem gestores públicos responsáveis pela boa aplicação dos recursos de toda sociedade, são os governantes que devem ser controlados pela sociedade e não o contrário. Justamente por isso, a Constituição Brasileira, nos incisos XVII, XVIII e XIX do artigo 5o garante a plena liberdade de associação e veda, reitero aqui, veda a interferência estatal em seu funcionamento. Justamente por isso, a Constituição Brasileira estabelece que qualquer gestor público só pode fazer aquilo que a lei autoriza.

Neste sentido, a proposta de emenda proposta não resolve a questão. Fico me perguntando como seria o acompanhamento dos resultados proposto pela deputada do PSL, Bia Kacis. O governo irá solicitar relatórios para todas as organizações da sociedade civil? E caso as mesmas não enviem os relatórios, ou se enviarem relatórios que demonstrem o não cumprimento de seus próprios planos de trabalhos, haverá alguma penalidade? Óbvio que, para acompanhar, supervisionar, coordenar ou monitorar haverá interferência do governo no funcionamento das organizações da sociedade e isso é expressamente vedado pela Constituição Brasileira.

O que nos preocupa é justamente esta desconexão entre o discurso do comprimento das leis e as práticas nestes primeiros dias de governo. A  MP870/2019 que teria a função de apenas estruturar a administração pública federal, acabou revelando o objetivo de criminalizar segmentos como os povos indígenas, os povos negros e quilombolas, a agricultura familiar, as organizações que defendem a segurança alimentar soberana e sustentável, as/os defensores dos direitos humanos, as organizações ambientalistas e todas as OSC que atuam na defesa de direitos.

Neste sentido, nos parece interessante o apelo do secretario nacional de Articulação Social, de que os ânimos devam ser arrefecidos e que haja espaços de diálogos entre os órgãos de governo e as redes, plataformas e entidades nacionais que representam a sociedade civil organizada. No entanto, a base para este diálogo é o respeito às regras — neste caso a própria Constituição Brasileira.

Não há qualquer espaço para uma redação do artigo 5o da MP870 que venha a  respeitar a autonomia das organizações da sociedade civil. Neste sentido, nossa posição é simples. Que o artigo 5o seja revogado — assim como propõe, por exemplo, a emenda supressiva do Deputado Eduardo Barbosa (PSDB/MG) — e que a partir daí possamos dialogar sobre a implementação dos mecanismos da Lei 13.019/2014. Esses sim são instrumentos que verdadeiramente buscam a aplicação dos recursos públicos de forma transparente e com foco nos resultados.

Da mesma forma, nos parece fundamental que mecanismos institucionais de diálogo com a sociedade civil como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Consea, o Conanda, as competências da Funai em definir a demarcação das terras indígenas e todos os demais espaços de diálogo entre sociedade e Estado, sejam preservados e respeitados. Caso contrário, seguiremos com os sinais trocados: quem deveria estar sendo controlado tentando controlar.


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