ERRANDO EM SÃO PAULO: DUAS MÃES
Um rolê de 30 minutos na metrópole
Publicado 14/11/2025 às 18:33 - Atualizado 14/11/2025 às 18:41

Numa praça, a estátua da maternidade branca vigia domésticas que cuidam dos filhos da classe alta. Trinta minutos a pé a separam de outra: uma negra que amamenta seu rebento, em meio às contradições do Centro. E nos faz ver que a cidade nem sempre é uma boa mãe…
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São Paulo é uma mãe? Se sim, é das mais megeras. A pé, 30 minutos separam a escultura “Mãe”, no ponto mais alto do Parque Buenos Aires, em Higienópolis, do “Monumento à Mãe Preta”, no Largo do Paissandú; 30 minutos e as contradições de uma cidade marcada pela exploração.
Enquanto a mãe preta de Júlio Guerra tem o peso do trabalho e do corpo — ou melhor, o peso do trabalho no corpo — ao retratar uma mulher preta amamentando uma criança branca, a mãe de Caetano Fraccaroli, provavelmente branca ou abstrata, é austera e está envolta, junto da criança, num véu (de privilégios?). A primeira é uma pessoa, ou uma classe; a segunda, um ideal, talvez uma santa. Mas a cidade não mente: uma ida ao Buenos Aires revela que, ao redor do ideal de maternidade, veem-se apenas babás, vestidas de branco, e às vezes uma avó. A realidade, oculta pelo véu ideológico, revela-se no cotidiano: o trabalho de cuidado, em todos os bairros, segue sendo feito pelas mesmas pessoas.
O caminho até o Largo do Paissandú é tortuoso (e psiquicamente longo). Saindo de Higienópolis, passa-se pelo Minhocão, cicatriz urbana deixada pela ditadura. Nos dias úteis, mercadorias passam por cima dele — supostamente mais rápido, nessa utopia de concreto de circulação absoluta, sobre qualquer obstáculo humano —, além de pessoas na condição de mercadoria, quer dizer, trabalhadores vendendo sua força de trabalho. Nos dias inúteis, esporte, lazer e cultura, também acima. Abaixo, todos os dias, os perdedores: desabrigados e famintos, mais ou menos desesperançados. Uma lembrança disciplinadora aos que ainda não perderam tudo.
Depois, a Praça da República, reduto antigo de prostituição; recentemente, de policiais militares. Já é possível ver, no horizonte e em alguns prédios, a gentrificação. Por ora, a violência e o medo mantém o preço dos aluguéis relativamente baixos. Ah, e a luta das ocupações. Há muito comércio popular, de brasileiros e imigrantes, e as ruas e galerias, feitas para os pedestres, convidam o caminhante a errar.
A avenida São João, Paulista de outros tempos, resiste como pode; quer dizer, as pessoas que moram e trabalham ali. E, no Paissandú, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, construída (de graça) por trabalhadores negros no início do século XX, mas cujas origens remontam ao sincretismo religioso do XVIII.
São Paulo, num raio de 3 quilômetros. Moradias de luxo, restaurantes caros, lojas bregas; prédios abandonados e barracos; carros, ônibus e caminhões; furtos, assaltos; cerveja boa, cerveja ruim; ruas cheias, ruas vazias; a mesma rua, cheia e vazia. Aqueles que passam, os que moram e alguns que passeiam. Como mãe, essa cidade deixa a desejar. Felizmente, o círculo edípico pode (e deve) ser superado. Nada está dado, tampouco é definitivo. A São Paulo da exploração não será, necessariamente, a São Paulo do futuro.
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