LÚCIO KOWARICK E A “LÓGICA DA DESORDEM” NAS CIDADES

A mão (do Estado) que segrega e pune

Faleceu ontem o autor de A espoliação urbana (1979). Obra, atualíssima, analisa a produção de periferias em SP: resultam de um desenho perverso das cidades, feito  para segregar — e qualquer potencial revolta é massacrada pela mão do Estado

O professor Lúcio Kowarick, professor aposentado do Departamento de Ciência Política (FFLCH-USP), faleceu nesta segunda-feira (24/8). Seu trabalho influenciou gerações no estudo urbano e, para muitos, sua obra A espoliação urbana (Paz e Terra, 1979) marca a origem da sociologia urbana brasileira. Kowarick também trabalhou como pesquisador do CEBRAP, nos anos 1970, e do CEDEC nos anos 1980, em São Paulo, tendo sido professor e pesquisador visitante do IRD, do IRESCO e da EHESS, em Paris, do Institute of Development Studies da Universidade de Sussex, na Inglaterra, do Institute of Latin American Studies da Universidade de Londres, do Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, e do Japan Center for Area Studies, em Osaka.

Sempre ativo na produção, teórica e prática, publicou Viver em risco, em 2009, vencedor Prêmio Jabuti 2010 de Melhor Livro de Ciências Humanas. Em 2013 recebeu o Prêmio Florestan Fernandes, concedido pela Sociedade Brasileira de Sociologia, pelo conjunto de sua obra. Atuava lecionando, orientando e pesquisando nas áreas de movimentos sociais, urbanização, cidade, cidadania e políticas urbanas.

Como homenagem as suas contribuições ao país, republicamos uma resenha de Novos Estudos Cebrap, inicialmente intitulado de A atualidade de A espoliação urbana.

Destacarei três dimensões de A espoliação urbana (Paz e Terra, 1979) que, desdobradas nas últimas décadas nos estudos urbanos, estão no alicerce das interpretações que sociólogos, antropólogos e urbanistas contemporâneos têm feito sobre as dinâmicas recentes da cidade de São Paulo, bem como de outras cidades brasileiras. Meus pontos são básicos mas, como diz Lúcio Kowarick na conclusão de “A lógica da desordem”, um capítulo notável sob todos os pontos de vista, “as coisas simples precisam constantemente ser ditas”.

Em primeiro lugar, o livro demonstra que não há crescimento desordenado, nem caótico, em nossas cidades. Se assim fosse, as cidades brasileiras e latino-americanas não apresentariam quase que invariavelmente o mesmo padrão de expansão territorial (concêntrico e baseado no alargamento de periferias sem infraestrutura urbana) e desenvolvimento social (segregação territorial forte entre ricos e pobres, produzindo acúmulo de desvantagens nas periferias e, consequentemente, intensificação das desigualdades). A aparente desordem tem assim uma lógica: a pobreza segregada dos setores sociais periféricos e a riqueza segregada das elites não é um desvio de um pretenso modelo virtuoso de desenvolvimento urbano, e portanto explicável pela ideia da ausência (a propalada “ausência de Estado”, ou a “ausência de planejamento urbano”) – algo que poderia ser sanado em segunda etapa, quando o bolo já estivesse crescido e as tecnicalidades modernas disponíveis.

Contra a hipótese da ausência, a noção de espoliação urbana demonstra que “crescimento e pobreza”, título da célebre coletânea cebrapiana de 1975, não são opostos pelo vértice. Na realidade, crescimento e pobreza retroalimentam-se em lógica positiva, presente, produtiva: nosso modelo de crescimento econômico e urbano é o mesmo modelo da reprodução da pobreza urbana. Crescimento (nesse modelo) é sinônimo de produção de pobreza.

Lúcio Kowarick é quem primeiro demonstra o modo fundamental dessa operação, sua lógica interna coerente. Os desdobramentos dessa assertiva teórica são fundamentais para o presente dos estudos urbanos. A ideia de crescimento econômico como solução para a pobreza nunca esteve tão em voga publicamente, e não é sequer questionada nos estudos especializados. É quase consensual a aposta no dinheiro para mediar o conflito social e urbano. Conflito que, por sua vez, se intensifica conforme esse crescimento econômico se produz, agravando-se muito desde os anos 1970, mas sobretudo desde os anos de reestruturação produtiva.

Conflito que se traduz também de modo violento. Os patamares contemporâneos de violência criminal e de Estado jamais foram vistos no Brasil. Setores criminalizados se estruturam na regulação de mercados ilegais altamente rentáveis – o tráfico de drogas, os veículos roubados e os grandes assaltos – e transferem boa parte dos lucros ali gerados à economia formal, por meio de “lavagem de dinheiro” mas, sobretudo, por meio do consumo de bens e serviços pelos trabalhadores desses mercados. Da indústria cultural popular até as grandes marcas de Shopping Center, do comércio popular à indústria automobilística, todos se beneficiam dessa extração econômica ilegal. Enquanto esse dinheiro gera postos de trabalho legais, formais, informais, ilegais, ilícitos, uma parte relevante dos descendentes das famílias de trabalhadores migrantes analisadas por Lúcio Kowarick, sobretudo os negros, lotam as cadeias e povoam com seu perfil estatístico as taxas de homicídio nas mesmas periferias. A violência criminal e a revanche policial violenta muda a face de nossas cidades.

Outra parte desses grupos trabalhadores, batalhadores, realiza a ascensão social possível nas últimas décadas e passa a incomodar as classes médias não pela violência, mas pela elevação do custo do trabalho doméstico e pela concorrência por postos de trabalho mais qualificados. Daí a adesão recente dessas classes médias ao neoconservadorismo político-ideológico. Essas duas linhas do conflito urbano contemporâneo são mais nítidas quando a equação teórica de A Espoliação Urbana nos oferece um diagrama de fundo para a compreensão conjunta das relações entre economia, política e produção do espaço urbano. A centralidade teórica do conflito nessa equação, substrato do livro de Lúcio Kowarick, facilita nossa tarefa.

Em segundo lugar, A Espoliação Urbana é atual porque sua crítica particular à razão dualista, emergente nos debates do período no CEBRAP, segue provocando os analistas urbanos. Não há uma cidade formal que se expandiria teleologicamente civilizando a cidade informal, atrasada, conforme a modernidade urbana se consolidasse, com o tempo. Se há uma co-produção entre elas, como a noção de espoliação urbana evidencia, o tempo sustentaria suas fronteiras e o conflito que as caracteriza se acumularia, nos termos de Michel Misse. Dito e feito. Essa mesma operação crítica ao binarismo normativo, desdobrada contemporaneamente e atualizada na bibliografia em outros termos – como no trabalho de Daniel Hirata, por exemplo – faz notar que o crescimento da economia formal nos anos 2000, em cidades como São Paulo, não representa equivalente diminuição da economia informal, ilegal, ilícita, mas seu contrário. Quando cresce a formalização, também cresce a informalidade. Cresce a economia, crescem essas economias formais e informais interconectadas pelo dinheiro. E cresce o conflito por esse dinheiro. A internacionalização de nossos mercados, radical a partir dos anos 1990, é também período de expansão da participação de São Paulo e outras metrópoles brasileiras nos mercados ilegais transnacionais. Esses mercados e territórios se co-produzem, como Vera Telles demonstrou há tempos, até por ter lido A Espoliação Urbana.

Mas há uma terceira dimensão no trabalho de Lúcio Kowarick que inspira ainda mais a bibliografia contemporânea. Nos anos 1970, o autor assinalava a necessidade de autoritarismo político (expresso na ditadura) para manter essa máquina de crescimento econômico e produção de pobreza urbana funcionando. Só a repressão o permitiria se reproduzir, dada a potencialidade de revolta advinda da transferência dos custos de reprodução social às próprias famílias trabalhadoras (a começar pela moradia autoconstruída), mas também pelo acoplamento até mesmo da infraestrutura de mobilidade urbana à lógica de acúmulo de desvantagens entre os mais pobres. A violência estatal, em tese acionada apenas no limite da necessidade de produção de ordem urbana e social, se tornava moeda corrente no período analisado justamente porque era preciso conter assim, agressivamente, o conflito social que se tornava mais tenso conforme o tempo passava.

Nas práticas urbanas, essa violência estatal se traduzia também em violência paraestatal: lembremo-nos dos ‘pés-de-pato’, ‘justiceiros’, ‘grupos de extermínio’ e ‘esquadrões da morte’ dos anos 1960-90. Mas lembremo-nos, sobretudo, que a noção de violência para Lúcio Kowarick compunha o quadro conceitual da espoliação urbana, e portanto integrava o (e não se opunha ao) problema político-econômico para a compreensão da cidade.

A violência tem suas raízes inscritas na economia e na política, que se associam evidentemente em seu conceito-chave. Essa lição não tem sido esquecida na bibliografia especializada, ainda que nunca tenha sido aprendida pelo debate público. A literatura contemporânea mais profícua sobre o “mundo do crime” nas metrópoles brasileiras é a que inscreve a questão da violência – não apenas a policial, a violência de Estado, mas também a criminal – no cerne do conflito político e econômico que se territorializa na cidade de muros. A operação mercantil e o conflito político contemporâneos, que pede mais polícias e mais enclaves urbanos fortificados têm tudo a ver com a manifestação dessas violências.

Tratar a violência como tema específico de segurança pública, a ser sanado tecnicamente, embota a compreensão da funcionalidade política e econômica da criminalização, do encarceramento e do extermínio recente de parcelas significativas do coorte jovem, negro, morador de periferias e trabalhador mais baixo dos mercados ilegais. Aliás, a teoria urbana nacional ainda hoje não incorporou em seu bojo a dimensão étnico-racial, fundamental para compreender essa funcionalidade internacionalmente. Mas a redução da compreensão da violência ao tema da segurança embota, sobretudo, o entendimento das formas pelas quais a reação criminal expressa na emergência das facções contemporâneas se torna crescentemente politizável, contra todas as expectativas públicas. Nos muros da cidade, frases como “O governo não dá, nós rouba – $” ensejam como contrapartida o populismo penal contemporâneo, amparado em argumentos morais idênticos aos que moviam os justiceiros dos anos 1970, agora como farsa. A violência estatal e paraestatal segue portanto inteiramente vinculada aos modos de produção e reprodução da desigualdade econômica, social, política, enfim, da espoliação urbana contemporânea.

Finalmente, é preciso dizer que para além da atualidade da obra original, há um novo ensaio de Lúcio Kowarick, amparado nas memórias do debate intelectual e político do período, que revitaliza uma série de argumentos expostos no livro de 1979, dando-lhes roupagem impossível de se vislumbrar na época da primeira publicação. Nesse texto ainda inédito, debatendo com autores de gerações posteriores à sua, nosso professor reconhece os avanços metodológicos e temáticos dessas quase quatro décadas de estudos urbanos, ao mesmo tempo em que nos solicita mais esforço interpretativo e sintético entre diferentes áreas dos estudos urbanos, o que possibilitaria maior relevância política ao intelectual, uma marca de seu tempo. Nos tempos que correm, seguramente de menos esperança na superação das desigualdades do que havia na virada para os anos 1980 em São Paulo, essa cobrança é mais uma prova da atualidade do pensamento de Lúcio Kowarick.

(O presente texto se baseia em apresentação no debate “A espoliação urbana: impactos e desdobramentos”, evento realizado em 29 de setembro de 2017 como parte do ciclo “Cebrap 50 anos, obras fundamentais”)

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