A MOÇA DO LARGO DAS ROSAS
Entre pó e pétalas
Publicado 28/11/2025 às 23:15 - Atualizado 29/11/2025 às 15:53

| Próxima ao histórico mercado de flores no centro de SP, com mais de 70 anos, uma trans tenta ganhar a vida — em pé, ao relento e com um amor engaiolado. Nas negociatas noturnas da cidade, há produtos com grande demanda — e “aceitamos pix” |
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Vende cocaína, a moça cor de caramelo. Ela nem deve ter 25 anos. Nada de visual provocante como as outras travestis dali. Veste moletom. Está de tênis. Com olheiras.
— Meu negócio é padê, amor, não programa — diz aos desavisados.
Vender cu ou droga, diz com suavidade cortante, é o que sobra para mulheres como eu. Ou os dois, ri ela. Ela, no entanto, escolheu: tem padê, key e um pouco de maconha. A demanda na noite paulistana é alta! Tudo coisa boa, de biqueira decente, nada das tranqueiras dessa molecada aí da esquina, garante. E aceita pix!
Passa, não trafica drogas, ela pontua, pois vai ela mesma na favela para buscar e, depois, revender o produto. É uma empreendedora: paga dez, vende por vinte, ou trinta, ao sabor do humor, cara e nível de embriaguez do cliente. O ponto é bom: região central, fartura de transporte público, próximo a uma rede de bares, baladas, puteiros, vértice roots de um triângulo boêmio formado com uma Santa Cecília aplayboyzado e a Praça Roosevelt underground.
Estamos no Largo do Arouche. Endereço da elite paulista no começo do século 20. Pointing das dissidências sexuais desde os anos 50. Alvo de batidas na ditadura, em busca dos “veados comunistas” — e, na década de 1980, onde o pau cantou contra as travestis, na “luta contra a AIDS” do Estado. Veio a decadência, e sai de baixo: os endinheirados hoje querem retomar seu Le Arouch! E triste: se a empreitada vinga, ninguém falará dos feirantes de tóxicos, como a moça cor de caramelo, também vítimas da gentrificação…
Do Largo com o urbanístico-sotaque francês de outrora, resiste um reduto romântico pra comprovar que existe, sim, amor em SP: o Mercado das Flores, mais de 70 anos de tradição, onde é possível, a qualquer hora, em qualquer dia, comprar um buquê de rosas para amores ou coroas florais para defuntos. Mas a moça cor de caramelo não quer saber de flores — o trabalho pode até ter certas diversões, mas nunca lirismo. E, tal como o Mercado, é igualmente noite e dia, dia e noite…
O marido dela está preso, mas graças a deus e a um bom advogado, logo ele vai sair dessa, ora. Cuida sozinha das contas da casa. E devota carinho e grana ao amor aprisionado em Guarulhos. Para isso, chega ao Arouche antes das sete da noite: horário estratégico: fluxo dos de saída do expediente; caudal dos armados pro rolê. E por ela passam trabalhadores. Bêbados. Loucos. Ralés. Playboys. Mais bêbados enxotados de bares. E mais loucos, transtornados, nóias.
— Sou careta, meu bem — jura. — Quem é profissional não cheira no trabalho. Só bebe chevette. E fuma unzinho, pra aliviar a dor na perna, de ficar a noite inteira de pé.
Ela sempre amanhece por lá. Doze horas de trampo! Quando chega em casa, dorme até às três da tarde. Talvez sonhe com seu passarinho engaiolado pelo artigo 33… Come uma pratada de arroz, feijão e alguma mistura, salada também, miojo se estiver sem saco e a despensa vazia, cuida às pressas de afazeres de casa. Se consegue acordar mais cedo, vai para a academia. E, antes de dar-se conta, já deu cinco horas. O sol logo irá se pôr. Precisa tomar banho e sair para trabalhar. É uma autônoma. Eu não aguentaria um chefe azucrinando no meu ouvido, diz, sou de personalidade forte; talvez quisesse dizer: sou insolente, não vou abaixar a cabeça pra gente escrota pra ganhar uma merreca todo dia 5. Mas isso é da minha cabeça.

Dá-se apenas as segundas-feiras de folga. Escala 6×1, ao menos.
— Preciso, senão eu surto!
— E o que você faz?
— Ah… Sei lá… Minhas coisas.
A moça cor de caramelo, pele hidratada e dentes bem-cuidados, olhos mais envelhecidos do que a idade que consta no RG, que vende droga mas não o cu, dá uma tragada no baseado que vai fundo ao pulmão. Fumaça desvanecendo entre nós: cheirinho defumado e áspero: cinzas batidas na calçada: ela encontrou mais palavras.
— Bem, assisto às minhas séries… Faço feira, supermercado, arrumo a casa. Descanso, porque fico quebrada da semana, sem vontade de fazer nada, até desligo o celular. Às vezes, saio pra arejar… Nada de mais. Coisas assim.
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