Por que a direita precisa temer este homem

Ele propôs o ensino como ato de conhecimento crítico do mundo. Através do diálogo e cooperação, semeou a consciência política, a autonomia nas escolas e a esperança como prática concreta. Por isso, suas ideias perturbam alguns, até hoje

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Título original: O centenário de Paulo Freire em tempos de ódio e desinformação. Publicado originalmente no Blog da Boitempo

Mudar não é só preciso, é possível”

(Paulo Freire)

Dezenove de setembro é a data que marca o centenário de Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997), o Patrono da Educação Brasileira. Sua obra é fundamental para o Brasil, não somente para a compreensão dos processos educacionais contemporâneos, mas para o entendimento do mundo e suas contradições. Dialogicidade, práxis, autonomia, ação, reflexão, crítica, utopia, liberdade, esperança, sonho, tolerância, democracia, ideologia são algumas das expressões que estão presentes em toda a obra freiriana e não são termos aleatórios, abstratos, compõem um todo e repercutem na realidade histórica.

Segundo o educador, é a ação e a reflexão dos homens e mulheres sobre o mundo que permite com que ele seja transformado. É a dialética ação/reflexão, própria do método pedagógico libertador, que favorece uma mudança na consciência humana em relação à estrutura social dos sujeitos e uma aproximação destes com a crítica sobre a realidade em que estão inseridos.

Paulo Freire lançou seu olhar para os educandos de forma a lhes dar condições para que despertassem e se livrassem das amarras sociais e de um contexto de opressão, que é a razão de ser do sistema capitalista ou como ele escreveu: “é preciso desocultar a verdade”i. Este processo só pode ser realizado dentro de uma teoria dialógica, ou seja, aquela baseada no diálogo, na horizontalidade, na alteridade, na co-laboração, na união, no respeito e no amor entre professores e educandos. Estes seriam os caminhos para uma autêntica prática educativa voltada para a liberdade e a emancipação, daí seu caráter eminentemente político.

A pedagogia freiriana requer a rebeldia, no sentido da resistência em se manter vivo para lutar contra injustiças e ter forças para denunciar situações de opressão: desemprego, fome, violência e corrupção são questões que não podem ser naturalizadas, por isso a resignação e o conformismo das massas só interessa aos grupos dominantes, que trabalham, através da ideologia, para lhes inculcar que a responsabilidade de sua situação é culpa de suas escolhas.

No atual contexto brasileiro, Paulo Freire tem sido sistematicamente desqualificado e desrespeitado pelos que estão no poder, mas isto não acontece por acaso, faz parte de uma estratégia discursiva da política dominante, que dissemina o ódio contra o outro, que prolifera o medo e a desinformação, que tenta aniquilar o pensamento crítico, formando aquilo que o saudoso pensador Umberto Eco chamou de Ur-Fascismoii, prenhe de contradições, mas adaptado ao pleno funcionamento do capitalismo financeiro, que explora, aprisiona, manipula, aterroriza e assassina grupos sociais subalternizados.

Este tipo de fascismo, além de possuir profundo desprezo pelos excluídos, nas palavras de Roland Barthes também “se propõe sempre e por toda parte como primeiro objetivo liquidar a classe intelectual”iii que, se expressando a partir de uma linguagem muito própria, amparada por um conjunto sistemático de algoritmos e autômatos, possuem como meta destruir quaisquer tipos de construção de uma consciência política autônoma. Tal linguagem resulta na constante tentativa de manutenção da servidão voluntária das massas, agora capturadas pelas artimanhas da extrema direita ou de “ditaduras da ignorância”iv como na expressão do filósofo Franco Berardi. Por isso que, no Brasil de hoje, é preciso reproduzir, em larga escala, uma linguagem depreciativa e caluniosa contra todos aqueles que se colocam a serviço da desmistificação imaginária da realidade concreta, incluindo nomes, só para citar alguns poucos, como Marilena Chauí, Miguel Nicolelis, Luís Felipe Miguel, Paulo Arantes, Vladimir Safatle e, claro, Paulo Freire, todos tachados de “comunistas”, “doutrinadores”, “esquerdopatas”, “petistas”, etc.

Pessoas ligadas às artes também são insultadas, a exemplo de Chico Buarque, Caetano Veloso, Chico Cesar, Paulo Betti, Leandra Leal, Camila Pitanga, Wagner Moura, dentre outros, mas um dos principais alvos é sempre Paulo Freire, chamado de “doutrinador esquerdista nas escolas”, “energúmeno”, “subversivo” e “agitador”, tanto que em 2018, o presidente Jair Bolsonaro, no alto de sua robusta estupidez, afirmou que “expurgaria a ideologia freiriana das escolas brasileiras”v, como se estas utilizassem seu método no cotidiano. Ademais, há uma característica comum entre os que reproduzem os discursos falaciosos de ódio dirigidos aos intelectuais, qual seja o completo desconhecimento sobre as obras dos vituperados, objetos das mais absurdas qualificações, o que os torna estigmatizados para certos grupos sociais, como os autodenominados conservadores, patriotas e cidadãos de bem.

O legado de Freire – exposto em sua vasta e mundialmente reconhecida obra – é exatamente o oposto do que pregam os que estão no poder político do país hoje, já que faz apologia a uma escola popular da inclusão, do diálogo, da alteridade, da cooperação e da união dos comuns, não como abstração, mas da forma que ele nos ensinou, “mediada por uma esperança que não é pura espera, mas uma esperança prática, que rompe, que decide e se torna concreta historicamente”vi; que é capaz de subverter a prática educativa no Brasil, transformando-a em ato de conhecimento e desvelamento do mundo, através do exercício permanente da crítica.

A repulsa a Paulo Freire se manifesta através do silenciamento do governo federal em relação ao seu centenáriovii, o ódio a sua pessoa é a abominação e a negação da justiça e da concretização de um projeto emancipatório para a maioria do povo brasileiro, usurpado por uma súcia governamental estúpida, cruel e nociva, que se regozija com as desigualdades sociais e o sofrimento dos oprimidos. Assim, é necessário relembrar as palavras do próprio educador, proferidas em uma entrevista para o Museu da Pessoa em outubro 1992 e que continuam atuais: “meu sonho fundamental é o sonho pela liberdade que me estimula a brigar pela justiça, pelo respeito do outro, pelo respeito à diferença, pelo respeito ao direito que o outro tem e a outra tem de ser ele ou ela mesma. Quer dizer, o meu sonho é que nós inventemos uma sociedade menos feia do que a nossa de hoje. Menos injusta, que tenha mais vergonha. Esse é meu sonho. O meu sonho é um sonho da bondade e da beleza”viii. Viva Paulo Freire!

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i FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 125.

ii ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018. p. 50.

iii BARTHES, Roland. O grão da voz. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 279.

iv BERARDI, Franco. Asfixia. São Paulo: Ubu Editora, 2020. p. 17.

v AMIM, Júlia. Ideologia do educador Paulo Freire volta ao centro de debate. O Globo. 26 out. 2018. Disponível em:<Ideologia do educador Paulo Freire volta ao centro de debate – Jornal O Globo>. Acesso em 6 set. 2021.

vi FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 28. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2021. p. 15.

vii AMADO, Guilherme. Ministério da Educação silencia sobre centenário de Paulo Freire. Metrópoles. 2 set. 2021. Disponível em:<Ministério da Educação silencia sobre centenário de Paulo Freire (metropoles.com)>. Acesso em 6 de set. 2021.

viii FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. 7. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. p. 354.

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