Big Techs e Big Foods, um casamento lucrativo

Assim como redes sociais, corporações alimentícias manipulam mecanismos cerebrais de recompensa. Criam estratégias para preencher o vazio e a ansiedade na Era Digital com ultraprocessados. Algoritmos, influenciadores e publicidade pesada são chaves para isto

Foto: Imagen Poblana
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Sabemos que, nos dias em que vivemos, a capacidade humana em manter a atenção em um texto longo e complexo (ao menos por parte de quem acessa frequentemente a internet), vem se desintegrando. E a palavra desintegração diz muito em um mundo transpassado pelas experiências virtuais, que nos deslocam do espaço físico real para um não-lugar palpável, em que tudo parece fluido e interconectado… mas que, na verdade, tudo é extremamente fragmentado, segmentado e controlado, sempre segundo interesses político-econômicos, para enredar as pessoas numa navegação sem fim, em que elas são, ao mesmo tempo, as consumidoras dos produtos e os produtos consumidos.

Embora eu não goste de rankings e coisas do gênero, não consegui deixar de acompanhar o debate gerado pela eleição do termo Brain rot como a palavra do ano de 2024. Significando algo como cérebro apodrecido, a expressão faz referência ao estado psico-emocional que tem dominado uma parte crescente da população, ao ficar presa no tal fluir infinito do universo virtual, modalidade em que nosso país é vice-campeão, segundo o  Relatório Digital 2024: 5 billion social media users. A publicação mostra que passamos mais de 9 horas diárias online, ficando atrás somente da África do Sul, em um mundo em que 70% da população já faz uso de algum dispositivo móvel.

Clicando de lá pra cá, arrastando e rolando o cursor sem o menor questionamento em relação ao conteúdo específico que surge em seu celular ou notebook (que é diferente do conteúdo que surge para outrem, como vamos explicar mais à frente), o ser humano contemporâneo estimula seus circuitos cerebrais rapidamente, de modo a obter recompensas químicas de maneira extremamente fácil.

Trata-se de um saco sem fundo. Assim como a sensação de prazer chega rápido e sem esforço, ela vai embora em instantes, alimentando uma vontade de conseguir mais e mais recompensas e gerando estados de ansiedade e depressão, caso isso não seja feito. Ao longo do tempo, a tendência é que a capacidade cognitiva se degenere e tarefas mentais mais complexas se tornem mais difíceis, criando barreiras para a reflexão e o planejamento  necessários na tomada de decisões mais conscientes. 

Pronto, as portas para a dependência deste circuito comportamental baseado na virtualidade imediatista foram escancaradas e as Big Techs conseguiram mais uma fonte contínua na multiplicação de rendimentos e de poder. Não é por acaso que várias das empresas consideradas mais valiosas pelo mercado são do setor. Elas atuam no plano global, ainda não foram devidamente reguladas e vêm driblando leis e normas nacionais de vários países, ameaçando até suas instâncias judiciárias, como o recente pronunciamento da Meta explicitou, ao liberar de vez a postagem de falsidades e discursos de ódio. Se já são capazes de definir eleições, imagine o tamanho da influência que têm na esfera individual. Sim, elas estão devorando nossos cérebros. 

É hora do lanche

Se cozinhar em casa virou um verbo caduco para muita gente, como revela a proliferação dos tais apartamentos do tipo estúdio, em que nem cozinhas existem, outras ações relacionadas ao ato de se alimentar também correm esse risco. É que, para alguém servir seu próprio prato à mesa, temperar sua salada, comer com garfo e faca – cortando o que não vem cortado -, raspar os resíduos que sobraram para jogar no lixo e lavar a louça usada, há a necessidade de deixar o celular ou o computador um tanto de lado. 

Essa necessidade pode ser muito reduzida se ela ou ele fizer um pedido, através de alguns toques em sua tela, a uma rede de comida pronta. Quando o pedido chegar, é só abrir a caixinha, comer o que já costuma vir picado e temperado, usar os talheres descartáveis e o guardanapo que costumam acompanhar o prato e jogar tudo (embalagens e resíduos orgânicos) no lixo. Quem cozinhou e transportou a comida ou em que lugar irá parar o que sobrou dela – e do que foi usado para acondicioná-la – são questões que não cabem no fluir das timelines. 

Se desconectar do mundo virtual pode ser ainda menos necessário, caso essa pessoa abra um pacote de salgadinho ou de biscoito e uma garrafa ou lata de refrigerante. É possível comer até dentro do quarto – o que parte dos adolescentes já se acostumou a fazer, enquanto joga, assiste microvídeos ou apenas percorre os feeds de suas redes internéticas. Para muita gente, a hora do almoço ou do jantar já virou a hora do lanche – e aquele momento do lanche da tarde, em que se sentava à mesa para passar patê ou geleia no pão, parece que pode ficar na pré-história. 

Crescem os casos de jovens que só comem se suas mães, avós ou empregadas levarem o prato com tudo picadinho (mesmo se for um pedaço de pizza) até seus quartos – já que, com isso, podem seguir jogando ou vendo sabe-se lá o que aparece em suas telas. A consciência em relação ao que está sendo ingerido, ao caminho que aquele alimento percorreu para chegar até ali ou aos efeitos que ele gerará em seu próprio corpo, bem como no corpo social e no corpo planetário, fica soterrada pelas imagens e sons emitidos pela traquitana tecnológica que estiver sendo usada no momento da refeição. 

De acordo com profissionais da nutrição e da saúde, este é um comportamento altamente danoso e contraria orientações básicas relacionadas ao modo como devemos comer. O Guia Alimentar para a População Brasileira, que em 2024 completou 10 anos de existência, menciona que uma alimentação adequada e saudável tem profunda relação não apenas com o que se come, mas também com o modo como o alimento é cultivado, preparado, partilhado e ingerido. 

A publicação, referência internacional por seu pioneirismo em iluminar aspectos menos abordados da Segurança e da Soberania Alimentar e Nutricional, deixa nítido que a comida que faz bem deve ser produzida com justiça social, lastro cultural e harmonia ambiental, preparada de forma caseira sem ingredientes artificiais, e consumida junto à família em momentos definidos, nos quais todas as pessoas que dela fazem parte estejam inteiramente presentes, o que diz respeito às dimensões física, mental e emocional. 

Parece um sonho ou um conto de fadas para você? Pois é… Realmente, é algo oposto ao que costuma ocorrer nas sociedades em que os sistemas alimentares são baseados em monoculturas envenenadas, industrialização em massa dos produtos alimentícios, trabalho exaustivo (sobretudo no caso das mulheres) e desconexão cognitiva em relação ao mundo real. 

O ovo, a galinha… e o ouro

Por falar em contos de fadas, acho que quem nasceu no século XX ainda se lembra de um conto chamado “A galinha dos ovos de ouro”. Ele fala de uma ave poedeira singular, cujos ovos são feitos do metal precioso – o que acabou gerando a expressão que usamos até hoje para fazer referência a uma fonte contínua de riquezas que é livre da necessidade de esforço por parte dos seres humanos (já para a tal galinha, a estória é bem diferente). 

No caso da aliança entre as redes digitais e as redes alimentícias, principalmente as de produtos ultraprocessados, é como se essa galinha tão exclusiva tivesse produzido ovos de ouro dos quais nasceram novas galinhas poedeiras de mais ovos de ouro, já que o estado de ansiedade e neblina mental em que as pessoas têm vivido atualmente, sobretudo as mais jovens, é um produto extremamente lucrativo para os dois setores corporativos – e ambos potencializam essa rentabilidade de forma recíproca e retroalimentadora. 

Se um ser humano está preso a um ambiente virtual, e sente que não pode se desconectar dele nem na hora das refeições, é bem provável que vá procurar algo fácil para comer, ao invés de dedicar seu tempo ao preparo ou mesmo ao simples manuseio de um alimento que necessite de maior atenção. Ou seja, o vício no mundo online estimula o consumo de UPPs, produtos alimentícios ultraprocessados.

Na outra ponta, um conjunto robusto de estudos demonstra que, quanto mais alguém come produtos ricos em açúcar, sal, gordura e aditivos, mais vai sentir ansiedade e necessidade de consumir quantidades maiores deles. A indústria alimentícia sabe muito bem disso e cada novo produto é desenvolvido cuidadosamente para oferecer o máximo de prazer imediato para quem o ingere, algo chamado de bliss point. Usando alta tecnologia em seus laboratórios privados, para combinar ingredientes e monitorar seus efeitos na mente, as Big Foods manipulam o mecanismo cerebral de recompensa que está vinculado ao que se come ou se bebe, conforme seus próprios interesses. 

Ao ingerir alimentos de baixa qualidade nutricional, carregados de substâncias artificiais, uma pessoa tende a desequilibrar seu organismo, o que afeta não apenas os processos físicos, mas também os processos que regulam suas emoções e sua capacidade cognitiva. Há muito material acadêmico que comprova que a ingestão massiva de produtos comestíveis industrializados, como salgadinhos e bebidas adoçadas, estimula quadros de sofrimento psicológico elevado (envolvendo ansiedade, déficit de atenção, hiperatividade, depressão, insônia, etc). 

Alguém que sofre com esses sintomas dificilmente vai conseguir ler um livro mais elaborado ou mesmo assistir a um filme que demande concentração e raciocínio. E é aí que navegar nas redes é uma bela válvula de escape para tentar lidar com essas dificuldades. Portanto, o vício em ultraprocessados estimula o consumo de conteúdos virtuais de baixa qualidade, bem como as relações mediadas por plataformas digitais e APPs, os aplicativos online. 

Imagine que você está no meio de um jogo no computador, sente ansiedade por uma fonte de sabor ou sente fome real, mas não consegue interromper sua atividade. Então, come alguns biscoitos recheados e registra o prazer e o alívio imediatos em seu cérebro, que passa a exigir novamente essa experiência. O circuito está formado: pessoas desequilibradas emocional e mentalmente são um prato cheio tanto para as corporações alimentícias, como para corporações de tecnologia virtual, que, simbioticamente, causam e exploram esses desequilíbrios, estabelecendo o império de UPPs e APPs.

E é aqui que, dos ovos postos pela galinha poedeira de ovos de ouro, saem novas galinhas poedeiras de ovos de ouro, inflando os lucros de uma elite viciada em dinheiro e poder, a partir da alimentação dos vícios interligados e inter-potencializados das pessoas que consomem seus produtos, tanto os tangíveis como os intangíveis. 

Publicidade embutida

Em um artigo com o título Quem rotula quem no mundo da alimentação-mercadoria?, publicado aqui no Outras Palavras, já descrevi como, através do uso da tecnologia, as grandes redes alimentícias monitoram e rotulam as pessoas, classificando clientes conforme perfis. Isso permite que façam anúncios direcionados, oferecendo produtos que têm mais apelo junto a cada público. Por sua vez, as plataformas digitais de conteúdos produzidos e compartilhados pelos seus usuários, como Instagram e YouTube, vendem esses espaços publicitários, inserindo-os em meio ao que não é publicitário; e é assim que conseguem lucros exorbitantes, mesmo sem produzir conteúdo próprio. 

O sistema baseado em curtidas e compartilhamentos de posts, vídeos e memes revela quais são os interesses de cada internauta e reforça a presença dos temas preferidos em sua navegação. Assim, se você clica no anúncio de um lanche uma vez, a marca desse lanche vai aparecer de novo posteriormente. Isso reforça ainda mais os vícios alimentares e tende a gerar uma acomodação cerebral quanto ao que uma pessoa vai escolher para comer. 

Produtos comestíveis viciantes aparecendo constantemente na tela de alguém que está viciado no mundo virtual – e que, portanto, não quer perder tempo com decisões referentes à vida prática real – geram comportamentos aprisionados ao sistema doentio que destrói nossos cérebros material e imaterialmente. Se pensarmos que o volume de dinheiro investido em publicidade pelas Big Foods é, inquestionavelmente, maior do que o investido por empresas que oferecem alimentos não processados, dá pra imaginar o efeito avassalador de seus anúncios.

E aqui vale destacar que muitos desses anúncios são baseados na própria linguagem usada nas redes e nos temas quentes do momento, tendo potencial para viralizar e chegar a mais e mais pessoas. Ao mesmo tempo, pessoas que usam essas redes incorporam, frequentemente, imagens de produtos anunciados pela publicidade nos materiais visuais e audiovisuais que elas próprias criam e compartilham. Não é raro ver um meme que tem garrafas de cerveja de uma determinada marca como protagonistas… e elas também estão fortemente presentes nas tais figurinhas que circulam no Whatsapp, inclusive no campo progressista (tem até da deputada Luíza Erundina brindando com uma Br4hm4!). Sem se darem conta, as pessoas fazem publicidade gratuitamente e reforçam ainda mais o poder persuasivo desses produtos. 

Juntemos a isso a existência dos tais (mal)influencers – perfis com milhões de seguidores, que recomendam determinadas marcas e estilos -, e já dá pra imaginar o tamanho da encrenca em que nossa sociedade internética está metida. Eles atuam em diversos aspectos referentes ao estímulo de padrões alimentares. De suplementos para quem quer bombar nos treinos, até fórmulas infantis para substituição do leite materno, essas celebridades virtuais têm feito graves estragos à saúde física e psicoemocional de quem passa muito tempo online, principalmente da juventude, fase em que o córtex pré-frontal, responsável pela mensuração de riscos no sistema de recompensas do cérebro, ainda não está maduro.  

Mas a destruição não se dá apenas na esfera individual, e o fenômeno do apodrecimento cerebral traz consequências coletivas dramáticas. Em relação ao campo da comida, ele está diretamente relacionado à perda dos já enfraquecidos laços com a nossa cultura alimentar. Ingredientes, pratos e rituais tradicionais dos diversos povos que formam nossa população vão sendo substituídos, mais e mais, pelos produtos comestíveis massificados e sem relação com o ambiente e com a história do lugar em que se vive. 

Limites on e offline 

Hoje, tudo parece conspirar para que eu e você utilizemos constantemente instrumentos de interação online. O trabalho, os estudos, os pagamentos, as compras, a comunicação com amigos/as e parentes, o agendamento de uma consulta médica, a necessidade de obter informações sobre um determinado assunto, a curiosidade sobre um acontecimento ou a vida de alguém… A transferência do que antes se dava fora das telas para dentro delas vem ocorrendo em uma velocidade supersônica. 

Tudo também parece conspirar para que tenhamos uma alimentação que não é saudável: a falta de tempo e de dinheiro, a dificuldade em encontrar alimentos in natura em meio aos desertos e pântanos alimentares, a pressão publicitária feita pela indústria alimentícia, a perda dos vínculos sociais e culturais ligados à comida… e a própria praticidade em usar aplicativos para pedir um lanche pela internet, o que também nos leva a entrar no ambiente online.

E constatamos novamente que, uma vez dentro da rede virtual, não é tão fácil sair dela. Mesmo que você não tenha um motivo concreto para acessar seu celular, sensações como ansiedade, frustração ou tédio podem estimular uma navegação. São sensações como essas que também levam as pessoas a buscar um chocolate, um refrigerante ou um pacote de biscoito. Elas refletem uma necessidade de preencher um vazio, fugir de uma angústia e obter uma dose fácil de prazer… seja com um produto abarrotado de açúcar que só precisa ser abocanhado, seja com um pouco de entretenimento inútil que é fácil de digerir… ou, o que é cada vez mais comum, com as duas coisas juntas!

Só que o que menos a nossa sociedade precisa hoje em dia é que comamos ultraprocessados ou passemos tempo bestando na internet. Os problemas sociais e ambientais agudos estão aí, expressos pela epidemia de DCNTs (doenças crônicas não transmissíveis), como hipertensão e diabetes; pelo aprofundamento das desigualdades devido à atual concentração inaceitável de riquezas; e pela destruição dos ecossistemas em associação com a emergência climática – dramas que atingem todo o globo terrestre. Esse quadro indigesto tem até um nome: Sindemia Global.

E o tal mundo virtual gera, sim, impactos muito reais no planeta. A começar pelo uso monumental de energia para manter todo o sistema funcionando, o que pode ser catapultado com a entrada da inteligência artificial generativa em campo, já que a demanda energética que ela apresenta para dar respostas ao que usuários e usuárias solicitam é pra lá de significativa. Além de usar energia de fontes não vivas, como de combustíveis fósseis, hidrelétricas e até usinas nucleares, há o uso de energia humana, já que a massa de trabalhadores por trás dessa enorme trama também é algo muito consistente. Países do sul global abrigam milhares de pessoas na manutenção desse fluxo de interações digitais, treinando os programas de IA para que eliminem conteúdos considerados impróprios. O trabalho massante se dá, muitas vezes, em situações extremamente precárias. 

E vale mencionar que já se espalham velozmente os agentes de IA, sistemas autônomos que geram e oferecem conteúdos antes mesmo das pessoas pedirem algo a eles, antecipando demandas e induzindo comportamentos – o que retira de nós a decisão de usar ou não a energia despendida nesse processo, ampliando os gastos com a navegação independentemente da nossa percepção ou vontade. Em um mundo em que a crise energética tem papel central, a falta de controle e de limites em seu uso tende a acentuar ainda mais o desequilíbrio ambiental. 

No entanto, tais impactos materiais de nossa existência online costumam ficar invisíveis aos nossos olhos, o que freia possíveis reações contestatórias em relação aos rumos que estamos seguindo enquanto civilização. A impressão que temos é a de que, ao trabalhar, estudar, socializar, administrar as finanças e até ter relações sexuais de modo virtual, preservamos nossa materialidade individual e coletiva de interferências concretas. Nada mais ilusório. Os casos crescentes de miopia e perda de coordenação motora em crianças estão aí para mostrar que não é só o cérebro que tem apodrecido nessa abdução digital. 

Porém, quando falamos de alimentação, é possível delinear um outro limite da vida online. Por mais que você consiga descobrir opções, escolher o que comer e pedir refeições através de apps, não vai conseguir se alimentar dentro das telas. Mesmo que você viva à base de formulados alimentícios e suplementos nutricionais, não escapará de sua dimensão material e terá que realmente engolir esses produtos e absorver suas moléculas em seu organismo. 

E, aqui, podemos abrir espaço para um despertar do estado zumbi de rolar ininterruptamente o cursor no celular ou no computador.

Dos olhos nas telas às mãos na terra

Comida ainda é matéria. Água ainda é matéria. Por enquanto, não há perspectiva alguma de deixarem de ser. Mesmo que você imprima o que vai comer em uma impressora 3D ou tome um preparado desenvolvido em um laboratório que usa inteligência artificial para sintetizar nutrientes, ainda terá algo sólido ou líquido para ingerir. Mas os atos de comer e beber também vão muito além da dimensão nutricional e podemos aproveitar que são atos não virtualizáveis para fomentar uma ação de resistência ao apodrecimento das nossas mentes e corpos, mobilizando os aspectos ancestrais que nos ligam ao alimento, como o prazer e a cultura. 

Com a proliferação de produtos embalados, acabamos nos esquecendo de que nos alimentamos de vegetais e animais, ou seja, do que é vivo. Essa relação visceral com a natureza, através da teia alimentar que nos sustenta, pode ser reavivada. Um dos caminhos para isso é o cultivo caseiro ou comunitário de plantas comestíveis, que vem crescendo em espaços urbanizados, através da ação de coletivos e movimentos, como o MUDA – Movimento Urbano de Agroecologia

Plantar uma semente ou uma muda, cuidar dela, acompanhar seu crescimento e ter a possibilidade de colher algo que alimenta nosso corpo e nos oferece sabores únicos (diferentemente dos sabores padronizados de produtos ultraprocessados), é uma experiência que traz imenso bem-estar – e tem sido utilizada como instrumento terapêutico para restaurar o equilíbrio de pessoas com transtornos emocionais e promover a socialização entre pessoas de diferentes faixas etárias – rompendo o isolamento físico em que uma tela de TV ou de celular, por exemplo, as coloca. 

Os efeitos benéficos do contato com a natureza, apontados por várias pesquisas científicas, podem ser explicados pela Teoria da Restauração da Atenção, segundo a qual ele alivia o esgotamento mental e aumenta a capacidade de concentração, fortalecendo a consolidação da memória. Portanto, ele promove um contraponto à rotina ansiogênica e estafante da vida online. Mais ainda, o próprio ato de pisar na terra promove uma interação elétrica que nos acalma e revitaliza, um fenômeno terapêutico que a ciência define como aterramento ou grounding

Do mesmo modo como precisamos preservar e até restaurar nossa cognição e nossa harmonia física e emocional, resistindo ao canto das sereias das Big Techs e das Big Foods, nossa sociedade precisa preservar e restaurar a biodiversidade dos territórios em que vivemos. São tarefas urgentes em um momento em que os recordes de temperatura foram novamente batidos no ano de 2024 – e todas as pessoas podem contribuir com esse processo. Seja nos campos, nas florestas ou mesmo na maior cidade da América do Sul, como São Paulo, sempre é possível cultivar ou interagir com espécies vegetais comestíveis, e escapar, ao menos por alguns períodos, das fibras pegajosas em que nos enlaçam as redes digitais e as redes de fast food

Desconectar do mundo virtual e reconectar com o mundo real, mergulhando no fluxo da natureza, é um ato de resistência contra o apodrecimento cerebral individual, a degradação cultural coletiva e a destruição ambiental da nossa Casa Comum. Nutrir-se com alimentos in natura, cultivados de modo agroecológico, é cuidar do corpo, da mente, das emoções, da sociedade e da nossa Pachamama. Romper os ciclos viciantes em que as corporações tecnológicas e alimentícias nos aprisionam é ampliar as chances de vivermos em um mundo que não seja assolado por transtornos e tragédias. 

Basta de hiperconexão com o que não é essencial e de hipoconexão com o que garante nossas próprias vidas! É hora de virar a mesa tomada pelos notebooks e pacotes de salgadinhos e abrir espaço para que ela volte a ser ocupada pela comida de verdade, aquela que realmente é capaz de  alimentar nossos cérebros, para que possamos decidir com consciência qual o futuro que queremos construir.

Em tempo, ninguém come ouro, mesmo que seja com o formato de um ovo. A voracidade sem medida das Big Techs e das Big Foods por rendimentos a qualquer custo ameaça matar a galinha milagrosa – que tem materializado tantas riquezas -, ao minar as próprias bases materiais e imateriais que permitem a existência da civilização humana. 

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