O diploma de engenharia como excludente de ilicitude

Em dois casos recentes, o retrato da elite brasileira: após mostrar os dentes, covardemente tenta se safar de punições, agarrando-se a seus privilégios. O que essas “carteiradas” revelam sobre o fenômeno do bacharelismo e nosso Código Penal?

.

Por Paulo Schwartzman | Imagem: Jack Levine, The Reluctant Ploughshare (1946)

Não é a primeira vez que, nesse ano, temos mais uma demonstração do asco da “elite brasileira”. Depois do primeiro capítulo da saga “Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você.” (ver mais detalhes aqui e aqui), temos agora o mais novo episódio das trapalhadas da classe AB de Pindorama.

Estou referindo-me ao episódio ocorrido em Pirenópolis (GO) que pode ser melhor compreendido lendo-se a seguinte notícia. Para aqueles que estão sem tempo, aí vai um resumo: um casal, formado por uma médica e um engenheiro, foi detido após ameaçarem e danificarem o carro da Secretaria Municipal de Saúde. O motivo? Um mero início de abordagem, transmitido por uma simples buzinada para estacionar o veículo, após as servidoras que estavam trafegando no carro oficial perceberem que o casal estaria alterado. O resultado? Ameaças às servidoras, destruição de patrimônio público e desacato quando do apoio recebido por policiais militares, isso, é claro, sem se esquecer da clássica direção sobre a influência de álcool. Nesse último tocante, para uma matéria acerca das mudanças no Código de Trânsito, ver o artigo em que explico a situação de punitivismo tosco a que chegamos.

Não obstante o acima narrado, o caso tem claras notas da certeza que a elite tem de que seria impune. As justificativas para não serem abordados foram basicamente, por parte da médica, o fato de que seu pai seria delegado e que este iria cuidar da servidora de “modo obscuro”; e por parte do engenheiro o clássico “com quem você pensa que está falando?” seguido de frases como “eu sou engenheiro.”

Bom, que o Brasil padece do bacharelismo já foi muito melhor explorado por mestres como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, cada um com as suas nuances características próprias, mas o que é assustador é a atualidade do tema. Ora, que tal fenômeno é parte importante do processo de formação da sociedade brasileira atual é fato, mas que tal ainda seja tão presente em nossa sociedade é fita.

Vê-se, em ambos os casos narrados, seja no primeiro episódio, do “cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você.”, seja no segundo, do “com quem você pensa que está falando? Eu sou engenheiro.” O indivíduo tem a certeza de que, em decorrência de seu diploma de engenharia, este não estaria sujeito à legislação como todos os outros brasileiros.

Sabe-se que, no fundo, a real questão envolvida nesses casos é o conceito de estamento social e de que o fato de ser portador de um diploma de curso superior acaba por colocar o detentor em um classe de privilegiados. Ou seja, o ponto não é o diploma de engenharia ou de medicina, mas sim o fato de ter um curso de nível superior, ou um pai delegado, o que elevaria o cidadão – pelo menos em sua cabeça – a uma condição de superioridade tal que este não precisa se sujeitar às leis.

Informa-se que, no Código Penal, existem apenas as excludentes de ilicitude clássicas da legítima defesa (art. 23, II, do CP), do estado de necessidade (art. 23, I, do CP), do exercício regular de um direito (art. 23, III in fine, do CP) e do estrito cumprimento de dever legal (art. 23, III, do CP). A doutrina acaba também por admitir a excludente do consentimento, mas isso é assunto para outro texto, na medida em que tal causa de exclusão acaba por incidir mais precipuamente em práticas sexuais sadomasoquistas ou em modificações corporais extremas. O ponto é que, em nenhum momento há o direito suposto pelos indivíduos de poder desrespeitar o ordenamento apenas em função de sua classe social. Nesse sentido, sempre bom lembrar o art. 5º, caput, da Constituição da República, e sua dicção no sentido de igualar a todos perante o ordenamento, confira-se:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

Após o caput (cabeça) do artigo, tem-se uma extensa enumeração não exaustiva (comportando ampliações) dos direitos e deveres que todos os cidadãos têm. A questão em si é, em nenhum momento ter o diploma de curso superior coloca a pessoa como isenta de cumprir com seus deveres perante o Estado e a sociedade.

Apenas a título de curiosidade, uma das únicas diferenças estabelecidas na legislação processual penal (mais especificamente no art. 295, VII, do Código de Processo Penal), e diga-se de passagem, de constitucionalidade duvidosa, é a previsão de prisão especial (que acaba sendo efetivada apenas com uma cela especial, devido à situação do sistema carcerário pátrio), estabelecida para os diplomados em curso superior enquanto não condenados definitivamente (prisão-pena). Bom sempre lembrar, também, que tal dispositivo foi inserido no ordenamento durante a ditadura de Getúlio Vargas, e acaba permanecendo hígido até hoje apenas em razão desse sentimento de proteção à casta superior, servindo até mesmo como reforço argumentativo e exemplo de resquício legal desse odioso bacharelismo.

Como possível hipótese para o afloramento de casos como os narrados, temos o fato de que, na cadeira da presidência, por ora, senta-se ainda uma pessoa que diariamente desrespeita as instituições democráticas e as leis de nosso país, sendo certo que o resultado todos já conhecemos: notas de repúdio. Sem querer desmerecer as notas de repúdio, e seu consectário “power of embarrassment” – como forma de literalmente envergonhar o violador das normas – sabe-se que estas não têm surtido o efeito desejado, talvez pelo fato de não existir mais vergonha na cara de muitos dos políticos brasileiros, não tendo, pois, o que se envergonhar.

Nesse diapasão, o que fica é a sensação de “terra de ninguém”, ou para os amantes do Direito “res nullius” (literalmente, e em tradução livre, coisa de ninguém). Ou seja, não há o necessário sentimento de pertencimento, bem como a consciência ínsita que este traz de obrigatoriedade de cumprimento das normas, o que acaba por gerar uma situação de “cada um por si”.

Por fim, após essa breve análise, resta-nos, como já dizia Gramsci, trabalhar com ambas as consciências que possuímos. Uma de cunho mais pragmático, e que nos leva a tomar as melhores decisões para sobreviver mesmo dentro do sistema em que vivemos – e nesse caso vale compreender que a elite de fato está mostrando seus dentes e fazendo questão de agarrar-se aos seus privilégios. Outra que nos leva a, independentemente de nossa situação, buscar informar e melhorar nosso entorno mediante a formação de um entendimento que leve em consideração as desigualdades que nos tentam ser impostas pelos poderosos, e que permita a libertação da classe oprimida. É dentro dessa última consciência que vos convoco a pensar: que tipo de país é esse em que diploma de engenharia é causa de exclusão de crime?

Leia Também:

3 comentários para "O diploma de engenharia como excludente de ilicitude"

  1. Nicholas Davies disse:

    Na matéria sobre o diploma de engenharia, há um erro de português. O certo é “direção sob influência do álcool”, não “sobre”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *