Direito à privacidade e o cinismo de Moro

Informações reveladas por Glenn Greenwald são de interesse público — e não de foro íntimo, como argumenta ministro. Ao atuar de forma ilegal e político-partidário, ex-juiz da Lava Jato não pode acobertar-se como mera “vítima de hackers”

.

Com a revelação no jornal online Intercept Brasil das conversas e acordos entre o magistrado responsável por julgar os casos da Laja-Jato, Sérgio Moro, e membros do Ministério Público Federal e investigadores ligados à operação, principalmente o Procurador Federal Deltan Dallagnol, uma pergunta ganha relevo e precisa ser respondida, juridicamente e politicamente: agentes públicos, nas informações vinculadas às suas respectivas funções, têm a garantia do direito à privacidade?

De imediato, é evidente que um magistrado não deveria tratar dos assuntos de seu ofício em aplicativos pessoais de comunicação. Mesmo na hipótese de uma mera conversa opinativa. O artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979) proíbe um juiz de “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.

Formulou-se até mesmo um jargão nos meios jurídicos de que um juiz só se manifesta nos autos: tais impeditivos apresentam-se como garantias processuais importantes, não apenas para salvaguardar a necessária imparcialidade do julgador, mas sobretudo porque a atividade judicante é pública, submetida ao princípio constitucional da transparência dos atos jurisdicionais. A regra é a publicidade: o sigilo em processos, garantia processual distinta do direito personalíssimo à privacidade, só ocorre para preservar direitos fundamentais das partes, mas não tem como titular a pessoa ocupante do cargo de juiz.

Mas o caso em questão possui agravantes. Além de manter conversas e tratar de assuntos ligados aos seus processos em esfera não permitida pela lei, Sérgio Moro descumpriu disposição explícita do artigo 8º do Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado na 68ª Sessão Ordinária do Conselho Nacional de Justiça, do dia 06 de agosto de 2008: “O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.”

O artigo 7º do mesmo código já previa, para assegurar a independência da atividade jurisdicional, que “ao magistrado é vedado participar de atividade político-partidária.”

É um alicerce elementar do estado de direito moderno a separação entre as figuras do juiz, do acusador e do investigador. Em sua atividade pública de magistrado, existem indícios suficientes de que Sérgio Moro violou tal postulado. Cometeu crimes que não são acobertados pelo direito à privacidade, pois como os juristas romanos já sabiam muito bem, nemo auditur propriam turpitudinem allegans (ninguém pode se beneficiar da própria torpeza). Se Moro usou de plataformas privadas para tratar de questões ligadas exclusivamente à sua atuação jurisdicional, não pode torpemente alegar a defesa de sua privacidade, pois o uso de meios particulares para contatar partes por si já configura uma ilegalidade. É inadmissível, em um estado democrático de direito, que um magistrado converse com uma das partes de um processo por meio de Telegram ou Whatsapp, muito menos para prejudicar um dos litigantes.

A atividade judicial deve ser regida pelos princípios da transparência, impessoalidade, publicidade, imparcialidade. Os documentos revelados pela equipe liderada pelo jornalista Glenn Greenwald têm caráter público,
pois tratam da atividade de um magistrado intervindo em questões processuais, um funcionário público federal mantido pelo erário brasileiro, atuando em uma lide de evidente interesse coletivo. Em termos jurídicos básicos: as informações coletadas e divulgadas dizem respeito à atividade judicial de Moro, seus delitos e desvios, e não à pessoa física de Moro, que acabou sendo posteriormente beneficiado pela condenação de Lula, inclusive se reunindo com o candidato eleito Bolsonaro em 1º de novembro de 2018 para tratar da futura nomeação como Ministro da Justiça. Moro só foi exonerado do cargo no dia 19 de novembro de 2018.

Leia Também:

Um comentario para "Direito à privacidade e o cinismo de Moro"

  1. josé mário ferraz disse:

    O brasileiro é o povo mais desgraçado do mundo. Sua única esperança em um futuro melhor para os filhos pintou quando surgiu um homem capaz de lhe dar alguma crença na moralização da política, o doutor Moro, de repente transformado em bandido também. Quem pode garantir não ser tudo fruto de trabalho das quadrilhas que tomaram conta da política? A ser verdade que o doutor Moro é também insincero como os políticos, em que mais poderá a juventude se apegar? Nas igrejas? No Axé e no futebola? Isto é o que faz desde sempre e o resultado é a generalização de uma infelicidade crescente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *