“Peso Real”: um falido casamento ultraliberal

Moeda única proposta por Bolsonaro visa desviar a atenção dos fracassos políticos de governos argentino e brasileiro. Reeleição de Macri seria fundamental para sustentar projeto neoliberal na América Latina — mesmo a custa de um factóide

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No Rede Brasil Atual | Imagem: Ueslei Marcelino

Um factóide. É assim que o economista Guilherme Mello define a intenção de uma moeda única entre Brasil e Argentina comentada por Jair Bolsonaro (PSL) e o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante visita a Argentina onde o presidente brasileiro foi, inclusive, recebido com protestos. Na análise do professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a viagem da comitiva brasileira teve mais um componente “político-eleitoral” do que econômico, em função da candidatura à reeleição do presidente argentino, Mauricio Macri, estar em xeque.

“Creio que o Bolsonaro, preocupado com isso, resolveu criar um fato político e alguns factóides, para desviar a atenção de um tema central na Argentina, que é a enorme crise que a economia atravessa, e que foi herdada das políticas do próprio governo Macri”, explica Guilherme Mello, em entrevista ao jornalista Rafael Garcia, na Rádio Brasil Atual.

Chamada por Bolsonaro e Paulo Guedes como “peso real”, o professor da Unicamp brinca que a possível moeda já está sendo apelidada ironicamente de “sur-real”, tamanha a falta de base sólida para sua implementação. 

Tendo a União Europeia como principal exemplo, Mello explica que a adoção de uma moeda única na Europa começou com os países saindo dos acordos comerciais aduaneiros e criando uma zona de livre comércio, algo que o Mercosul ainda não é. Depois, foi preciso alinhar parâmetros macroeconômicos, como nível de inflação, questões fiscais e taxas de juros.

Câmbio

“Pode ser muito ruim para uma economia e muito bom para outra, uma união monetária onde uma moeda estaria muito desvalorizada e outra muito valorizada. No caso de Brasil e Argentina, não se tem o mínimo alinhamento dessas questões”, explica, destacando as diferenças das taxas de câmbio, da situação fiscal e a inflação. 

“Nem o Banco Central dos dois países levam a sério essa proposta. É uma proposta que foi tirada da cartola”, afirma. Para o professor da Unicamp, o tema apenas serve para ter repercussão, enquanto desvia o foco de problemas verdadeiros na economia do Brasil e da Argentina. “Isso é uma estratégia política muito usada. E o Bolsonaro tem usado recorrentemente, desviar a atenção para temas que não existem, fictícios, para tirar o foco dos problemas reais que o país está enfrentando.”

Mello recorda que movimentos e economistas liberais apostavam muito no sucesso do governo Macri. Todavia, o presidente argentino chega ao final de seu mandato em situação delicada e enfrentando grandes resistências. “O Macri não só não resolveu os problemas, como a política econômica que ele adotou piorou a situação externa da Argentina, que agora vive uma profunda crise, de balança de pagamentos, escassez de dólares”, explica

Para Guilherme Mello, a reeleição de Macri significaria o sucesso eleitoral da estratégia neoliberal que Bolsonaro também quer aplicar no Brasil. “Mesmo que seja um fracasso na vida real, mas eleitoralmente significaria que essa estratégia é sustentável. Então para ele (Bolsonaro), é muito importante que Macri continue à frente na Argentina.”

Acordo Brasil-Argentina com União Europeia

Na viagem, Bolsonaro também “anunciou” que Brasil e Argentina estariam perto de um acordo de livre comércio com a União Europeia. Porém, Mello lembra que os países europeus têm demonstrado preocupação com o alto índice de uso de agrotóxicos no Brasil. Há poucos dias, uma rede de supermercado na Suécia anunciou boicote aos produtos brasileiros.

Na análise do economista, essa situação poderia levar a União Europeia a fazer exigências desfavoráveis ao Brasil, em troca de fechar algum tipo de acordo comercial. “Isso (uso de agrotóxicos) pode minar a capacidade de exportação do Brasil para a Europa. A Europa tem um nível de debate acerca das questões ambientais bastante avançado”, diz. “Se o Brasil quiser acelerar esse acordo, ele terá que abrir mão de muitas coisas, e isso vai afetar todo nosso setor industrial, manufatureiro e produtivo. A temática ambiental na Europa ganha força, enquanto a temática ambiental no Brasil passa a ser tratada como obstáculo ao desenvolvimento.”

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