Lula e o Plano Safra: avanços e impasses

Os R$ 77bi destinados à agricultura familiar não transformarão o campo – e repetem velhos problemas. É preciso construir novo modelo agrícola, garantir assessoria técnica, frear o uso de venenos e frear a formação de “agronegocinhos”

Foto: Jeso Carneiro/Uergs/Gov.Br
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O novo plano de Safra, que inaugura a ação do novo governo Lula para a agricultura familiar, foi festejado pelos movimentos sociais em cerimônia com a presença do presidente em ato apoteótico. No entanto, trata-se da reprodução, sem qualquer modificação, do modelo de crédito iniciado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996, quando foi criado o Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar, PRONAF e o próprio e recém-recriado Ministério do Desenvolvimento Agrário, MDA.

Qual a orientação deste crédito? Ao longo de todos estes 27 anos, do governo liberal de FHC, passando pelos governos ditos populares de Lula e de Dilma, pelo governo golpista de Temer e o governo protofascista de Bolsonaro, o crédito facilitado para a agricultura familiar foi orientado para promover o uso de insumos químicos (adubos e agrotóxicos), sementes melhoradas (híbridas e transgênicas) para melhor aproveitarem adubos sintéticos e uso de maquinário agrícola (tratores, colheitadeiras). Este modelo produtivo, idêntico ao adotado pelo agronegócio de grande porte, responde a um paradigma produtivo que busca a máxima artificialização e controle do meio ambiente para favorecer uma monocultura. É um modelo sabidamente insustentável em qualquer escala em que for aplicado, mas é mais arriscado para os agricultores familiares. Dependendo de combustíveis fósseis em todas as suas operações no campo e na produção dos insumos e máquinas, o modelo está à mercê dos preços e disponibilidade de petróleo e gás e de fósforo e potássio. E todos estes insumos estão em fase de esgotamento e, em consequência, com custos sempre mais elevados.

O crédito altamente subsidiado pelo governo permitiu que uma camada significativa, mas bastante minoritária, da agricultura familiar tivesse acesso a estes insumos e provocou uma enorme diferenciação entre os beneficiários. A parcela mais capitalizada ou mais bem dotada em termos de condições naturais de produção (solos de melhor qualidade, clima mais favorável, sobretudo na região sul, relevo mais plano, áreas maiores) progrediu em termos de volume de produção e melhoria de renda. A maioria, entretanto, teve dificuldades em pagar os créditos e muitos quebraram, apesar das várias anistias e renegociações de dívidas concedidas pelos governos populares.

Se olharmos para as negociações anuais entre as organizações dos agricultores familiares (CONTAG, CONTRAF e MST, MPA e MMC) e os governos populares (Abril Vermelho, Marcha das Margaridas, outros) vamos notar que o foco das reivindicações foi se dirigindo cada vez mais para tentar enfrentar o problema do endividamento, sem nunca o resolver de forma estável. Isto lembrando que estes governos criaram seguros de safra para cobrir os riscos climáticos para a produção. Estes riscos foram se tornando cada vez mais importantes ao longo destes anos, com secas mais longas e intensas na região nordeste e com a ampliação, no tempo e no rigor, do chamado veranico na região sul. A instabilidade do regime de chuvas foi se agravando sem limites e não houve seguro ou subsídio que desse conta do estrago. Muitos analistas apontam para o fato de que o agronegócio também foi afetado por todos estes fatores e, no entanto, parece ter convivido melhor com eles. É bom notar que o agronegócio recebeu apoios ainda mais importantes por parte dos governos e que os subsídios, facilitação de créditos e isenção de impostos também os favoreceram. Mas há um outro fator que deu vantagens ao agronegócio: a escolha do que produzir. O agronegócio centrou sua atividade sobretudo em commodities do mercado internacional ou produtos dirigidos para o mercado interno de alta renda.

Quando se olha para a evolução da produção da agricultura familiar no período indicado acima, verificamos que a produção de alimentos para o mercado interno, sobretudo os chamados alimentos de base como arroz, feijão, milho e mandioca, caiu de forma sistemática, enquanto a produção voltada para as commodities como soja e milho (para ração animal) de exportação só fez crescer. Quase metade de todo o crédito distribuído pelo PRONAF foi dirigido a projetos de produção de commodities no final do governo de Dilma, sobretudo na região sul, que voltou a concentrar a maior parte dos créditos do programa depois de alguns anos de diversificação regional. Os projetos dos agricultores da região sul foram ficando cada vez mais caros, inclusive levando à criação de novas categorias do PRONAF, com limites mais elevados de créditos. Qual a razão para esta opção dos AF? O risco financeiro dos créditos levou estes agricultores a escolherem produtos com preços mais altos e mais estáveis e, nas condições do mercado nacional e do internacional, as commodities são mais rentáveis.

A segunda política mais importante dos governos populares, no que toca a agricultura familiar, foi a de assistência técnica e extensão rural, ATER. Apoiando-se sobretudo nas entidades dos governos estaduais de ATER, as EMATER, a política de assistência técnica convergiu para estimular o uso do pacote técnico típico do agronegócio, em sintonia com a orientação do crédito.

Qual o efeito destas políticas para a categoria dos agricultores familiares? Já foi dito que elas favoreceram a inclusão de parte deste setor na economia de commodities, mas qual o impacto sobre a renda e a sustentabilidade dos produtores?

Se olharmos para os resultados dos censos agropecuários de 2006 e de 2017, constatamos que o número de famílias camponesas diminuiu fortemente no período. São, aproximadamente, menos 470 mil famílias, 10,7% das que existiam em todo o país. Isto aconteceu apesar de terem sido assentadas perto de 480 mil famílias no programa de Reforma Agrária. Ou seja, quase um milhão de famílias deixaram o campo em 11 anos.

Estes números cobram uma explicação e nem na campanha eleitoral ou na fase de transição entre os governos de Bolsonaro e de Lula alguém se debruçou sobre este dado importantíssimo para avaliar o efeito da ação governamental sob responsabilidade da esquerda.

Qual a origem geográfica desta pesada evasão de camponeses? O maior número veio do Nordeste, quase 350 mil famílias (16% do total de AF na região). Da região Sul saíram quase 185 mil (22%). Da região Sudeste saíram 11 mil. Nas regiões Norte e Centro Oeste o número de agricultores familiares aumentou, 68 mil e 6 mil respectivamente. Qual a causa destas evasões? Há um sabido e estudado processo de envelhecimento da população rural, com agricultores se aposentando e sem sucessores. Mas os números citados são muito altos para esta ser a explicação principal. A evasão no Nordeste é histórica e tem a ver com o impacto cada vez mais importante de secas cada vez mais longas e intensas. Mas também foi constatado um alto nível de inadimplência nos empréstimos do PRONAF na região, o que sugere que esta pode ter sido também uma causa importante. No entanto, o tipo de empréstimo que prevaleceu na região Nordeste, conhecido como PRONAF B, não se voltou para a promoção do uso de insumos químicos e sementes melhoradas, como nas regiões Sul e Sudeste. Na região Sul, a que mais recebeu créditos do PRONAF, a orientação técnica foi voltada para as monoculturas de soja e milho e para o uso de adubos químicos, agrotóxicos, sementes transgênicas e maquinário agrícola. É neste público e nesta região que se deveria avaliar o programa de crédito, sobretudo pelos valores despendidos tanto no volume total como no volume por beneficiário. E o indicativo é que uma boa parte dos agricultores que deixaram o campo o fizeram por problemas financeiros.

Durante a campanha Lula adotou a política de prometer “mais do mesmo”, idealizando as realizações do seu governo, já que o de Dilma foi mal avaliado. Deu certo eleitoralmente, mas a equipe de transição que tratou do tema da agricultura familiar adotou uma importante mudança em relação aos tempos passados: a meta do novo MDA passou a ser a promoção da agroecologia como estratégia para dar sustentabilidade à produção desta categoria.

Sem ter havido uma avaliação das políticas aplicadas no passado, esta decisão a favor da agroecologia implica em uma crítica implícita aos governos de Lula, já que neles, assim como nos de Dilma, prevaleceu amplamente a promoção das práticas do agronegócio visando a sua adoção pela agricultura familiar. As medidas de apoio à produção agroecológica foram residuais.

O que a equipe de transição não fez foi discutir como traçar políticas de crédito, de ATER, de seguro e de acesso a mercados para realizar o objetivo definido. A experiência mostra que as medidas, bem marginais, adotadas nos governos passados para favorecer a agroecologia tiveram muitos problemas. Os créditos PRONAF agroecologia, semiárido e floresta foram mal formulados e tiveram pouquíssimos acessos; as chamadas de ATER para financiamento de projetos de promoção da agroecologia também tiveram enormes problemas de formulação e execução. As compras da CONAB (PAA, Programa de Aquisição de Alimentos) favorecendo produtos agroecológicos tiveram melhores resultados, mas os valores foram diminutos e beneficiaram poucos agricultores.

O novo MDA tem dificuldades em fazer esta revisão das políticas. Em primeiro lugar, porque virou uma praxe desde os governos populares escantear qualquer crítica às ações do governo. As quedas de braço entre membros do Conselho do MDA (CONDRAF) e técnicos e dirigentes deste ministério foram constantes e resultaram em pelo menos um enfrentamento público por ocasião da primeira conferência nacional de ATER, no governo Dilma, com Pepe Vargas como ministro. Já o programa de crédito ficou blindado pelo MDA, que conseguiu impedir a formação de um Comitê de acompanhamento/avaliação da política no CONDRAF ao longo de 13 anos. Apenas no apagar das luzes do governo Dilma conseguimos criar um grupo de trabalho para avaliar esta política, apoiado pelo ministro Patrus Ananias. Este GT chegou a reunir uns 10 pesquisadores de universidades do nordeste, sudeste e sul, técnicos de ONGs, agentes financeiros e responsáveis governamentais. Durou pouco. O golpe em Dilma matou esta iniciativa no nascedouro.

Em segundo lugar, o novo MDA está composto por um grupo pequeno de técnicos, longe do número de pessoas que nele trabalhavam quando foi extinto por Temer. O pior é que não consegui identificar, entre os que hoje se encarregam deste ministério, algum dos membros das equipes que nele trabalharam nos tempos de Lula I e II e de Dilma I e I/3. Não há hoje, na equipe atual, a memória viva das experiencias, exitosas ou fracassadas, dos períodos anteriores.

De todas as políticas em prol da agricultura familiar, a de maior impacto e de maior durabilidade foi a de crédito. Ela foi concebida e dirigida por um técnico altamente competente, João Luiz Guadagnin, desde o governo FHC até a queda de Dilma. Foi o único programa a que Temer e Bolsonaro deram continuidade, promovendo técnicos que já trabalhavam no mesmo. E este programa, com todos os seus erros de concepção, está tendo continuidade neste governo, sem qualquer avaliação crítica. Me pergunto como é que o MST, importante participante do ato de lançamento do Plano de Safra no Planalto, recebeu esta “nova” proposta. Desde o governo Dilma, o MST tornou-se um defensor coerente e incisivo da agroecologia, assim como a CONTRAF e a CONTAG, embora estes dois últimos sejam menos convictos desta proposta, pelo menos como proposta universal.

A mesma crítica pode ser feita ao segundo dos programas mais importantes do antigo ou do novo MDA: o de ATER. As novas chamadas para projetos de assistência técnica repetiram praticamente todos os vícios e erros das chamadas anteriores, em 2010/2016.

A necessidade de se fazer um planejamento rigoroso, baseado numa revisão das políticas passadas e dos seus efeitos é premente ou veremos a repetição dos resultados anteriores. A meu ver, não é apenas necessário discutir cada um desses programas, mas a própria abordagem do governo para a promoção do desenvolvimento da agricultura familiar.

Com efeito, não é de hoje que eu comparo os métodos e práticas dos projetos de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar de entidades da ONU, como a FAO e o PNUD e as adotadas pelos governos populares. No Brasil as iniciativas de apoio à produção são distribuídas por várias políticas distintas (crédito, ATER, compras governamentais, acesso a mercados, beneficiamento, seguro, pesquisa). Nos programas de desenvolvimento que acompanhei na África todas estas políticas estavam integradas em cada um dos projetos, com um só orçamento sendo gerido harmonicamente.

Na prática, a diferença se traduz (aqui) na necessidade de cada entidade que trabalha com um público definido de agricultores formular projetos para acessar os recursos que necessita: um projeto para a ATER, centenas de projetos individuais para cada agricultor acessar crédito, centenas de outros para acessar o PAA, sendo que não existem recursos para projetos que envolvam pesquisas participativas ou para facilitar a integração com entidades como a Embrapa ou as equivalentes estaduais. Além dessa dispersão de recursos provocar enormes dificuldades operacionais para as equipes de apoio, existem incoerências na orientação de cada uma das políticas.

O modelo atual de políticas separadas funciona para a promoção de modelos convencionais de produção, mas são totalmente ineficazes para a promoção da produção agroecológica.

Se não for realizado um intenso esforço de avaliação das políticas e dos mecanismos de financiamento da promoção da transição agroecológica vamos assistir a repetição dos problemas já vividos pela agricultura familiar ao longo das últimas três décadas. Mais do mesmo não é uma solução.

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