Dentro e fora dos portões de Davos
Fórum que reúne super-ricos deu destaque a debates sobre o uso Inteligência Artificial. Trump e seu discurso protecionista, podem ser entraves a seu projeto globalizante. Protestos pediram taxação dos bilionários. “Discutem as crises as crises que eles mesmo causaram”
Publicado 24/01/2025 às 18:46
Por Sergio Ferrari | Tradução: Rose Lima
O Fórum Econômico de Davos foi aberto na segunda-feira, 20 de janeiro, quase paralelamente à posse, em Washington, de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Os 6.700 quilômetros que separam a capital dos Estados Unidos dessa cidade suíça também marcaram distâncias conceituais fundamentais entre o projeto protecionista do novo presidente dos Estados Unidos –exposto em seu discurso inaugural na Casa Branca– e o compromisso ainda atual do Fórum de Davos com o livre mercado e a globalização.
Apesar da distância quilométrica e das nuances que diferenciam as duas visões –nuances de um modelo hegemônico que compartilham– Trump foi uma das referências dessa edição do Fórum. Na quinta-feira, 23, ele se tornou a grande estrela do conclave com um discurso digital no qual reiterou as linhas gerais de seu pensamento hegemônico de “América primeiro” já antecipado em sua campanha eleitoral e na cerimônia de posse.
Davos 2025
Essa 55ª edição do Fórum Econômico (conhecido como WEF, por sua sigla em inglês), realizado entre os dias 20 e 24 de janeiro, reuniu mais de 2.500 representantes dos setores econômico, político, científico e cultural de 130 países, além de cerca de sessenta chefes de Estado e de Governo.
A presença política da América Latina foi relativamente escassa. Em diversos debates ou com discursos públicos em nível presidencial estavam presentes o argentino Javier Milei; sua colega Dina Boluarte, do Peru, e José Raúl Mulino, do Panamá. Também Ilan Goldfajn, chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento, além de ministros de outros países, entre outros: Maisa Rojas Corradi e Alberto van Klaveren, do Chile; Alicia Bárcena e Marcelo Ebrard, do México, e Víctor Bisonó Haza, da República Dominicana.
Da Europa, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia; o chanceler alemão Olaf Scholz e seu homólogo espanhol, Pedro Sánchez; Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu e os primeiros-ministros da Bélgica, da Irlanda, dos Países Baixos e da Suécia, juntamente com os presidentes da Polônia, da Sérvia e da Ucrânia.
Inteligência artificial
“Colaboração para a era inteligente” foi o tema central de Davos. De acordo com Klaus Schwab, diretor do evento, “as tecnologias convergentes estão transformando rapidamente o mundo, empurrando-nos para um ponto de inflexão” e marcando “uma era que vai muito além da tecnologia…. é uma revolução social, que tem o poder de elevar a humanidade, ou mesmo fraturá-la”.
Daí as grandes questões que surgiram nesse evento: como garantir a colaboração em uma era de tecnologias convergentes e hiperinteligência? Como evitar a fragmentação e construir um futuro mais inteligente? Como a inovação pode lidar com certas crises, como as mudanças climáticas e o uso indevido da tecnologia? A ação coletiva e a liderança responsável promoverão a igualdade, a sustentabilidade e a colaboração, ou aprofundarão as divisões existentes?
Nesse contexto, as conferências, painéis e debates se concentraram em cinco áreas temáticas: Reimaginar o crescimento com a perspectiva de construir economias mais fortes e resilientes; As indústrias na era inteligente, ou seja, como os líderes empresariais capitalistas podem encontrar um equilíbrio entre metas de curto prazo e os imperativos de longo prazo na transformação de suas indústrias; Investir nas pessoas, o que significa levar em consideração as mudanças geoeconômicas, a transição ecológica e os avanços tecnológicos. Fatores que afetam tudo, desde o emprego até a distribuição da riqueza, incluindo saúde, educação e serviços públicos. E isso levanta uma questão adicional: como os setores público e privado podem investir no desenvolvimento do capital humano e em empregos de qualidade que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade moderna e resiliente? Os outros dois blocos temáticos foram: Salvaguardar o Planeta e Reconstruir a Confiança. Tudo isso, segundo Davos, “em um mundo cada vez mais complexo e em mudança, [onde] as divisões sociais se aprofundaram, a geopolítica é multipolar e as políticas estão se voltando para o protecionismo, o que dificulta tanto o comércio quanto o investimento”.
Protestos, apesar da militarização
Como acontece todos os anos nessa data, a cidade alpina de Davos, a 1.560 metros acima do nível do mar e, portanto, a mais alta da Europa, foi transformada em uma verdadeira fortaleza murada. Seus organizadores alocaram cerca de US$ 10 milhões para segurança, uma quantia que não inclui o custo adicional da grande mobilização de mais de 4.000 soldados do exército para reforçar o esquema defensivo, incluindo o controle especial do espaço aéreo ao longo da semana. Despesas formidáveis pagas diretamente do orçamento militar anual da Confederação, como nos anos anteriores (cerca de US$ 26 milhões em 2023 e quase US$ 30 milhões em 2024), com cifras semelhantes para o Fórum de 2025.
Esse esquema de segurança ostensivo, no entanto, não conseguiu impedir protestos de cidadãos em várias partes da Suíça desde o fim de semana anterior ao início do Fórum. No sábado, 18 de janeiro, uma manifestação de várias centenas, a maioria jovens, marchou pelas ruas da capital, Berna, para protestar contra a reunião de Davos. Usando o conceito esportivo Smash WEF (Leilão Contra o Fórum) como slogan, eles defenderam que se deve “Acabar com o jogo dos poderosos e alcançar uma vida digna para todos”. Os manifestantes argumentaram que esse conclave “é um símbolo do capitalismo e da crise climática, das guerras, das crises econômicas, da discriminação e da opressão” e que, paradoxalmente, em Davos “os participantes [do Fórum] discutem as crises que eles mesmos causaram”.
Um dia depois, cerca de 300 manifestantes chegaram aos portões desse famoso destino turístico nos Alpes para exigir o fim do Fórum Econômico Mundial. As consignas dos cartazes contra os protagonistas do evento eram contundentes: “Cale a boca e pague impostos!”, “Ataquem, ataquem, o Fórum é uma m….!” e “Taxem os ricos!”, entre muitos outros da mesma natureza.
No contexto do protesto “anti-Davos”, na quarta-feira, dia 22, foi anunciada a constituição de uma nova Aliança de Organizações da Sociedade Civil sob o nome de #TaxTheSuperRich for people and planet (Taxem os superricos para ajudar as pessoas e o planeta). Em uma declaração conjunta, as ONGs Greenpeace, Oxfam, Confederação Sindical Mundial e outras organizações igualmente ativas na proteção ambiental e nos direitos humanos exigiram que tanto os indivíduos quanto as empresas mais ricas do planeta paguem impostos para impor limites à riqueza extrema e fortalecer a cooperação internacional em vista de uma tributação mais justa.
Momentos antes de anunciar essa nova aliança cidadã, ativistas ambientais do Greenpeace confiscaram simbolicamente vários jatos particulares no aeroporto de Engadine, em Samedan, a menos de 70 quilômetros de Davos, onde muitos dos magnatas e personalidades que participaram do Fórum chegaram. Dias antes, ativistas ocuparam o heliporto de Davos para exigir “um imposto justo sobre os mais ricos, a fim de financiar a proteção ambiental e investir em um futuro justo e sustentável para a humanidade”. E na segunda-feira de abertura do Fórum, outros ativistas pintaram de verde o pavilhão da Amazon na rua principal da cidade-sede.
Todos esses protestos tinham argumentos estatísticos, como foi evidenciado por uma reportagem divulgada no mesmo dia da abertura do Fórum. Somente em 2024, a riqueza dos bilionários aumentou US$ 2 trilhões, o equivalente a cerca de US$ 5,7 bilhões por dia, e a uma taxa três vezes mais rápida do que no ano anterior. Dito de outra forma, uma média de quase quatro novos bilionários surgia a cada semana. Enquanto isso, o número de pessoas que vivem na pobreza quase não mudou desde 1990. De acordo com Takers, Not Makers (Fruto do saqueio, não do esforço), o relatório recém-publicado pela Oxfam International na terceira semana de janeiro, o número de bilionários no mundo passou de 2.565, em 2023, para 2.769, em 2024. Sua riqueza aumentou no mesmo período de US$ 13 trilhões para US$ 15 trilhões. De acordo com a Oxfam, “o segundo maior aumento anual na riqueza bilionária desde o início dos registros”. Enquanto isso, a riqueza dos dez indivíduos mais ricos do mundo cresceu em média quase 100 milhões de dólares por dia.
O paradoxo reina, a surpresa é ilimitada: mesmo que esses bilionários perdessem 99% de sua riqueza da noite para o dia, eles ainda seriam bilionários. Quando o ilógico se torna sistêmico, até mesmo os Alpes pacíficos chamam ao protesto.