Crônica: A tontura da fome

A do álcool faz cantar; a do estômago vazio leva a tremer, dói, torna tudo amarelo, como dizia Carolina Maria de Jesus. Mas, apesar da apatia e da falta de proteína, os famintos carregam em seu mundo interior a fome de interromper a raiva e futurar

Imagem: Catadoras (1978), de José Cláudio. Mostra “Primeiro a fome, depois a lua”
.

“Nas últimas décadas o interesse pelos artistas da fome diminuiu bastante.” É com essa frase que Kafka inicia o conto sobre a vida do jejuador profissional, que passa semanas no interior de uma jaula sem se alimentar. O público paga para assistir ao espetáculo do longo jejum, numa espécie de prazer sádico em ver o sofrimento alheio. O artista da fome parece triste por não comer, mas a verdade é que ele não come porque é triste. Ele não come por haver uma insatisfação que o rói por dentro. E, assim, se entrega completamente ao ofício de jejuar, sem ser devidamente compreendido pela plateia – que desconhece o seu real sofrimento.

Dizem que Miró, mestre da pintura abstrata, desenvolveu seu estilo sob o delírio da fome. Ao contrário do personagem kafkiano, não era pelo apego ao jejum, mas porque tinha que escolher entre comprar pincéis ou pastéis, entre ter tinta óleo ou comida. Comprava seus instrumentos de trabalho e pintava com fome. Por sorte, um dia notaram seu talento, e ele foi reconhecido como o pintor que era, reconhecido simbolicamente e materialmente.

Carolina Maria de Jesus disse que a fome era amarela. Escreveu que antes de comer “via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo”. Mesmo com o estômago vazio, continuava escrevendo em seus cadernos catados no lixo. E é impressionante que, em circunstâncias tão drásticas e adversas, tenha mantido a fé na literatura. Em sua prosa poética, a fome tem cor, dor e sentimento de humilhação. Quem a leu não esquece: “Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito”.

Josué de Castro escreveu Geografia da Fome num Recife que parecia um cão sem plumas. Um cão sem plumas é “mais que um cão saqueado”. É quando “a alguma coisa roem tão fundo, até o que não tem”. É quando “uma árvore sem voz”. Josué sabia da fome da sua cidade, estudava a fome da sua cidade, colocava-se contra a fome dos homens-caranguejos que moravam em sua cidade. Homens, mulheres e crianças muitas vezes fugidos da fome do Sertão e das fazendas de cana, e que encontravam calorias e nutrientes na lama do mangue. João Cabral leu Josué, era conhecedor do ciclo do caranguejos (fezes que alimentam os caranguejos – caranguejos que alimentam os homens famintos e sem posses). E João Cabral criou a imagem do Recife como um cão sem plumas.

Desde então, muitos anos se passaram. A fome, que parecia um assunto quase de outrora, voltou assolando viventes das margens do Capibaribe, das periferias de São Paulo e das grotas da minha cidade. Seu aumento é visível. Está no preço dos alimentos nas prateleiras do supermercado, no ronco do estômago, no olhar cabisbaixo e envergonhado de quem vai à porta dos restaurantes pedir restos de comida, está na sopa de ossos com pouca sustança.

Como escreveu Carolina Maria de Jesus em seu diário: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. É horrível ter só ar dentro do estômago”. E tem ainda quem veja no alastramento da carestia e, consequentemente, no tremor dos mais pobres, uma oportunidade de fazer bons negócios e aumentar dividendos – pagando míseros salários, como se fosse um favor. E há ainda quem ache que as coisas devam continuar como estão. Mas, os famintos, apesar da apatia, também carregam em seu mundo interior a fome de interromper a raiva e a fome. E hoje, se ainda ronca a cuíca junto a uma mesa carente de proteína, é pela fome de interromper e de futurar.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *