Cartografia Queer: retratos da violência em São Paulo

Por que a região central da cidade apresenta maior parte das denúncias, mas é percebida como espaço “mais seguro” por LGBTIs? Como a violência policial influi na subnotificação na periferia? Trans recém-eleitxs poderão mudar esse mapa?

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Por Vinícius Almeida, na coluna Outras Cartografias

Em 2018, coletamos dados dos boletins de ocorrência no município de São Paulo, com o objetivo de encontrar as denúncias sobre violência baseada na identidade de gênero e na orientação sexual. Em seguida, analisamos esses dados e elaboramos alguns mapas, o que nos confirmou uma suspeita e suscitou uma dúvida: por que a região central agrupa a maior parte das denúncias e as periferias apresentam números muito baixos?

Propusemos outra metodologia cartográfica: um grupo de pessoas LGBTQIA+ (gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e outras identidades não normativas) produziram mapas mentais sobre suas percepções da violência que vivenciam.

O primeiro mapa, da esquerda, mostra os dados da polícia no período de 2008 a 2017, sobre violência física e verbal baseada na identidade de gênero ou na orientação sexual. O mapa da direita é uma das representações da percepção dessa violência. Seu autor se chama Júlio (nome fictício), um homem gay. As representações feitas por gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans foram significativamente diferentes umas das outras, mostrando diferentes apreensões do espaço.

Isso se deve porque gênero, sexualidade, raça, classe e outras marcas de diferença agem de formas diversas na relação afetiva que estabelecemos com os lugares (topofiliai), bem como no sentimento de aversão (topofobiaii) e, juntas, constroem a nossa identidade espacialiii: a forma como nos relacionamos com o espaço e suas representações.

São muitos os significados que atribuímos aos lugares, para além de dicotomias. Nos mapas elaborados, alguns homens gays imediatamente identificaram estabelecimentos comerciais e boates como lugares seguros, enquanto que mulheres lésbicas e bissexuais relativizaram a segurança ao quanto os funcionários estão preparados para lidar com a diversidade, principalmente se eles forem homens.

As experiências em espaços públicos são também distintas: uma aglomeração na rua ou estar no metrô pode ser um refúgio para algumas pessoas, mas para outras, tratam-se de situações onde o assédio sexual é potencial. O receio de passar por atitudes racistas e sexistas na hora da pedir ajuda também é um motivo para não denunciar.

Então, como pensar políticas públicas para garantir a segurança?

Não é possível consultar cada habitante de São Paulo e perguntar quais são as suas percepções sobre a violência, mas é possível e é preciso ouvir os discursos que são trazidos por diferentes grupos. Uma abordagem interseccional evidencia as diferentes formas como os significados corporais se inscrevem no espaço, e como o próprio espaço se inscreve nos corpos, através das marcas que as vivências deixam ao longo da vida.

Retornando a Júlio e sua cartografia, é preciso dizer que além de homem e gay, ele é negro, cisgênero, baiano morando na zona norte de São Paulo, sempre frequentou instituições públicas de ensino, tem 27 anos, iniciou duas faculdades, trabalha como atendente em uma farmácia e é músico. Essas são algumas das características que o definem enquanto pessoa. As relações que ele produz no/com o espaço o definem enquanto um corpo-território.

O que eu digo sobre ser gay, sobre ser negro, você tem que se reafirmar. Se você faz algo, você tem que fazer muito melhor. Se você vai arrumado, você tem que se arrumar muito, muito melhor. Se você é gay, você tem que mostrar muito mais caráter, porque as pessoas vão te julgar por você ser gay, vão te julgar por você ser negro. E eu tenho muito essa coisa, eu vou ao supermercado, eu faço questão pra que todo mundo veja minhas mãos, quero que todo mundo veja que eu entrei ali, não peguei nada, pra não passar nenhum tipo de constrangimento, nem que ousem pensar isso.”

Carlos, seu companheiro, continua: “Se você entra com um chinelo de dedo num shopping, um cara branco tá só descolado, o cara negro ‘vai pedir dinheiro’”.

Quando mostrei a Júlio o mapa das denúncias, ele logo observou que seu mapa dizia exatamente o oposto: para ele, os lugares mais seguros são aqueles onde houve mais registros policiais. Sua hipótese é que as pessoas se escondem mais nas periferias, e que o medo de denunciar e ter sua sexualidade ou gênero exposto ao tornar pública uma situação de agressão impõe uma normatização da violência.

Para Maria Antônia, mulher cis, bissexual, indígena, universitária, essa normatização surge também de outras violências, por vezes mais extremas, a que as pessoas estão submetidas em áreas afastadas dos centros, como a violência policial. Ela exemplifica: “ver várias pessoas morrendo, da sua família ou conhecidas, na mão da própria polícia pra quem você deveria fazer a denúncia”.

Parece insuficiente dizer que há um espaço da necropolítica de LGBTQIA+ em São Paulo, porque, como essas e outras cartografias mostram, o município todo é um espaço de medo, violência e, inclusive, morte baseado no gênero ou na sexualidade. Fica evidente que a imposição de uma única forma de ser e de estar no mundo (a heteronormatividade) é um constituinte do espaço geográfico.

No último dia 10, Patrícia Borges, poeta, ativista e mulher trans negra foi agredida com mordidas e um “pau de selfie” de ferro enquanto fazia campanha em frente ao Shopping Center 3, na avenida Paulista, para a então candidata a vereadora em São Paulo Erika Hilton (PSOL). Esse não foi o único caso de transfobia e racismo noticiado nessas eleições, e é importante observarmos que isso ocorreu em meio a uma eleição com o maior número de candidaturas trans na história do país. Também de aumento de candidaturas de pessoas negras. No último domingo, foram eleitas 27 pessoas trans para vereança em diversas cidades do Brasil. Erika Hilton foi a sexta mais votada e, dentre as candidaturas femininas, foi a que recebeu o maior número de votos.

O problema não se resume à falta de equipamentos de segurança pública na periferia, mas a falta de acesso à informação e apoio jurídico, como a lei estadual 10.948/01, que penaliza a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, e também, desde o ano passado, a equiparação da homotransfobia ao crime de racismo pela lei 7.716/89.

Apesar de a denúncia e o julgamento serem medidas importantes no caso de violência, elas não extinguem o preconceito e a discriminação. Muitos interlocutores da pesquisa reconheceram a educação sexual e de gênero nas escolas como um passo importante de transformação social. E no caso da violência concretizada, afirmaram ser o acolhimento pós-agressão o momento mais importante. Nesse sentido, diversos movimentos sociais nas periferias têm mobilizado ações de conscientização, acolhimento e encaminhamento. E a representação política tem o importante papel de garantir igualdade de direitos aos corpos marginalizados. No caso de Patrícia, policiais militares intervieram na agressão, mas não efetuaram a prisão em flagrante dos agressores, e o Shopping Center 3 não liberou as imagens da câmera de segurança.

Os dados sobre a violência baseada em identidade de gênero e orientação sexual são escassos e de difícil acesso. A divulgação e utilização deles pelo poder público são praticamente inexistentes. Quando os colocamos em mapas, damos um primeiro passo analítico muito importante, mas não podemos nos ater somente a eles. Outras cartografias se fazem necessárias para entender as interseções que constituem a dimensão espacial dessa violência.

(Agradecemos às pessoas que construíram essa pesquisa conosco na forma de interlocutoras, compartilhando cartografias e experiências)


i Yi-Fu Tuan. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.

ii Paul B. Preciado. Cartografias “queer”: o “flaneur” perverso, a lésbica topográfica e a puta multicartográfica, ou como fazer uma cartografia “zorra” com Annie Sprinkle. eRevista Performatus, n. 17, 2017. Disponível em: https://performatus.net/traducoes/cartografias-queer/.

iii Michel Lussault. Identité spatial. Dictionnaire de la géographie et de l’espace des sociétes. 2003.


Estes e outros mapas sobre o tema estão na dissertação de mestrado Proposta de cartografia queer a partir do mapeamento da violência aos corpos dissidentes das normas sexuais e de gênero em São Paulo, disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-04032020-154531/pt-br.php

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Um comentario para "Cartografia Queer: retratos da violência em São Paulo"

  1. Marcos disse:

    Caro Vinícius, ótima reflexão sobre espaço e corporeidade. Recentemente, foi lançado o app Sufoco pelo qual todos podem registrar situação de extrema lotação no transporte público gerando uma cartografia colaborativa onde a população por meio de seus celulares alimenta a banco de informação com agilidade. Seria muito interessante um aplicativo semelhante para identificar cotidianamente as situações de risco vividas pelos LGBTQIA+ e os lugares de suas ocorrência. Provavelmente muitos baixariam o aplicativo e colaborariam.

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