As mães que choram seus Johnathas…  

O tiro foi nas costas do jovem. Mesmo condenado, o PM-assassino saiu livre do tribunal, neste mês. A mãe chora e luta junto a outras. Exigem justiça para todos Johnatha. Um policial sentou no banco dos réus – é uma pequena vitória, dizem, mas esse não é o fim

Ato reuniu Ana Paula Oliveira e outras mães de vítimas que pediram justiça para o caso do seus filhos. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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Foi uma pancada. A sensação de impotência tomou conta da plenária quando a juíza Tula Corrêa de Mello leu o veredito do Caso Johnatha de Oliveira. Passava das 18h da tarde de uma quarta-feira, 6 de março. Após dez anos de espera, dois dias de julgamento e duas horas e vinte minutos na elaboração da sentença, Ana Paula de Oliveira viu o assassino de seu filho ser condenado e mesmo assim sair livre do tribunal. O júri popular entendeu que o policial militar Alessandro Marcelino de Souza não teve intenção de matar quando disparou sua pistola .40 acertando Johnatha de Oliveira pelas costas. O jovem tinha, então, 19 anos e retornava da casa da avó, cumprindo a tarefa de lhe entregar um pavê de chocolate feito pela mãe. Ao entrar na rua São Daniel, bairro de Manguinhos, deparou-se com um conflito entre moradores e integrantes da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Não teve tempo de se abrigar quando ouviu a moradora Fátima dos Santos Pinho de Menezes lhe dizer para voltar, porque “a situação aqui não está boa”. Fátima, que também foi uma das testemunhas no julgamento, só teve tempo de puxar o próprio filho e sair da linha de tiro do policial. Testemunhar aquilo foi um choque tremendo, já que ela própria um ano antes, no dia 17 de outubro de 2013, teve o filho espancado e depois asfixiado até a morte por policiais da UPP. Motivo pelo qual o seu testemunho em julgamento foi colocado em xeque: vingança, disparou o advogado de defesa do policial, Dr. Lenio dos Santos Correa.

A tese subsidiária de culpa consciente foi aventada por Lenio nos últimos segundos das argumentações finais do julgamento. Inovar em tréplica lançando mão de um conceito tão complexo soou como uma estratégia desleal. O que não passou despercebido pela promotora do caso, Bianca Chagas, que pediu para constar nos autos. Contudo, a juíza Tula acatou o pedido, temerosa de que posteriormente todo o processo fosse anulado. Talvez por esse motivo, o notório constrangimento dela ao ler a sentença: Alessandro Marcelino de Souza é culpado e sai livre. Tula atua no sistema judiciário fluminense há 20 anos, a maioria deles na área criminal. Não é difícil para um leigo descobrir que o Tribunal do Júri é acionado em casos de crimes dolosos ou intencionais contra a vida. Seria, então, plausível supor que tamanha experiência a tornaria apta a prever que uma vez aceita a tese de culpa consciente, em um crime cometido por militar, o caso declinaria para a auditoria da Justiça Militar, como de fato ocorreu? Só é possível especular sobre a capacidade cognitiva da juíza. Mas é fato que a linha que separa o dolo eventual da culpa consciente é muito tênue. E também é motivo de intensos debates entre iniciados no direito. Para termos uma ideia do quão delicada é essa fronteira, no dolo eventual, supõe-se que o agente prevê a possibilidade da ocorrência de um resultado não desejado e assume o risco. Na culpa consciente, o agente realizaria a conduta, prevendo o resultado, mas acreditando na sua não-ocorrência. Em tese, a linha que os separa é a tolerância ou intolerância ao resultado previsto. Seria realmente incrível que o júri, formado por leigos, pudesse dar conta das minúcias de tema tão complexo em duas horas e vinte minutos, tempo que levou para tomar a decisão. 

Fica a pergunta: a garantia do sucesso da artimanha da defesa do assassino de Johnatha estaria garantida se a juíza Tula não tivesse aceitado a tese subsidiária? Talvez, mas é difícil prever. O próprio advogado de acusação, Dr. Luís Henrique Zouein, declarou logo após o término do julgamento, que as chances de anulação seriam de 50%. “Qualquer um no lugar dela teria quesitado o pedido”,  afirma ele. E ademais, ele segue explicando, não seria sensato esperar que um juiz trabalhasse prevendo resultados. E de fato, o papel do juiz é presidir a sessão e dirigir os debates, intervindo em caso de abuso, excesso de linguagem ou mediante requerimento de uma das partes, fazendo a lei ser respeitada. A magistrada cumpriu com sua função, mas ela fez a lei ser respeitada? Novamente, só nos resta especular.

Quando questionado sobre qual seria o pior cenário: anulação do julgamento ou o caso passar para a auditoria da Justiça Militar, como aconteceu, Dr. Zouein responde elencando os próximos passos da acusação: anular o julgamento e insistir no dolo. Primeiro porque em casos de crimes culposos, o Estado perde o direito de aplicar a pena ou de executá-la muito mais rápido, de um a três anos de detenção. A prescrição, como é nomeado esse dispositivo legal, é sempre determinada diante da pena. Se mantida a culpa consciente, a pena cairia e o direito de punição se extinguiria em cerca de dois anos. Diante da morosidade da justiça, as chances de o assassino de Johnatha sair livre são enormes. Ao insistir no dolo, a prescrição ficaria entre 16 e 20 anos. Ganhar tempo hábil para que a justiça ocorra é um cuidado cabal. Segundo porque, se condenado por dolo, o policial militar Alessandro Marcelino de Souza pode perder o cargo, e sair das ruas, deixando de ser uma ameaça a população. É importante lembrar que Marcelino já foi preso por triplo homicídio em 2013, crime que aconteceu em Queimados, Baixada Fluminense. Ele foi preso, foi solto, e em 2014 assassinou Johnatha. 

Quanto tempo mais Ana Paula vai esperar para conseguir justiça para o crime bárbaro que levou a vida de seu filho é um mistério. Tão grande e profundo quanto a força avassaladora que fez com que essa mãe, um dia após ver o assassino de Johnatha sair livre do julgamento, se prostrar na porta do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e seguir protestando. 

– Saí ontem do Tribunal de Justiça muito devastada, muito arrasada. E ouvi de algumas mães: vamos fazer um ato amanhã em frente ao Tribunal porque isso é inaceitável. É inaceitável que um policial atire e tire a vida de nossos filhos e o Tribunal de Justiça classifique isso como um crime culposo, sem a intenção de matar. Olha quantas mães e quantos familiares tem aqui, de vítimas que são assassinadas todos os dias. Eu achei que não fosse ter forças para estar aqui hoje. E já em cima da hora entraram em contato comigo dizendo que uma mídia estaria aqui para fazer um ao vivo. Acho importante estar aqui hoje. Porque ontem, não foi o fim. Eu queria agradecer… (ela chora). Ontem não foi o fim, ontem foi mais um degrau que não só eu, Ana Paula, mãe do Johnatha, mas todas as mães que vieram antes de mim e que vieram depois de mim, conseguiram fazer. Nós juntas conseguimos fazer. Nós juntas conseguimos fazer com que um policial, assassino, sentasse no banco dos réus. A gente sabe que isso não acontece todos os dias. Mas nós conseguimos. E vamos conseguir mais. Foram muitas mensagens que recebi de ontem para hoje. E foram vocês que conseguiram me levantar para estar aqui hoje, mais uma vez, de punho cerrado, exigindo o mínimo! É o mínimo! Esse Tribunal de Justiça vai ter que nos enxergar! Esse Tribunal de Justiça vai ter que fazer justiça sim!

No ato, Ana Paula, de mãos dadas com outras cerca de 20 mães e um pai – que também perderam seus filhos para a violência do Estado –, reconheceu essa pequena vitória. Parece pouco, parece nada, mas é uma fissura num muro da injustiça que enfrenta há 10 anos. Foi preciso muita generosidade para que essas mães, todas negras, todas moradoras de favela, expusessem seus filhos e parentes mortos por policiais na calçada do Fórum, construindo com delicadeza um verdadeiro tapete com cartazes, fotografias, roupas manchadas de sangue e balões pretos pendurados num cordão. O modo com que ajeitavam as fotografias lembrava os afagos que um dia fizeram naqueles cujo convívio lhes foi brutalmente arrancado. Gesto que tornou imperiosa a presença de cada um destes entes queridos, obrigando a cidade a entrar em luto e evidenciando a luta contra o Estado que elas enfrentam todos os dias.   

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