A China ensaia enfrentar seus dilemas

Por trás das turbulências financeiras e protestos recentes, dois projetos. Dúvida: governo cederá ao lobby dos exportadores ou buscará novo paradigma?

Protesto na província costeira de Guangdong. Além de um aumento expressivo no número de greves, país vive onda de manifestações de camponeses e da classe média

Protesto na província de Guangdong. Além de um aumento expressivo no número de greves, país vive onda de manifestações relacionadas a poluiçao ambiental, disputas por terras e direitos sociais

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Por trás das turbulências financeiras e protestos recentes, dois projetos para a Economia e Sociedade. Dúvida: governo cederá ao lobby dos exportadores ou buscará novo paradigma?

Por Walden Bello | Tradução Inês Castilho | Imagem Aly Song/Reuters

O notável aumento nos preços das ações na Bolsa de Valores de Xangai, de meados de 2014 até o meio deste ano, quando o índice subiu 150%, deveria ter sido forte indicação daquilo que Alan Greenspan rotulou de “exuberância irracional” – sinal de iminente colapso dos preços das ações, muito acima do valor real dos bens que estão sendo negociados.

Mas — como ocorreu com Greenspan, durante a crise de 2008 em Wall Street — nem os investidores chineses, nem os investidores estrangeiros, nem o governo chinês pareciam preparados quando o mercado quebrou, em julho. O índice composto de Xangai despencou 40% em poucas semanas, detonando o colapso global dos preços das ações e levando Pequim a intervir e comprar cotas do mercado – e quando isso falhou, forçando uma desvalorização da moeda nacional, o yuan.

Impulisionada por um estímulo de 585 bilhões de dólares, oferecido pelo Estado em resposta ao crash de 2008 e à crise da dívida soberana da Europa em 2009, a China parecia navegar longe da tempestade que seus parceiros comerciais ocidentais desencadearam sobre si mesmos há vários anos. Era apenas questão de tempo, pensaram vários analistas, para que Pequim e os países do Brics substituíssem a hegemonia econômica tradicional e se tornassem líderes da economia mundial. Esse otimismo mostrou ter pernas curtas.

Na verdade, o colapso do mercado de ações de Pequim marca agora o aprofundamento de um novo estágio da crise contemporânea do capitalismo global.

A disputa pela estratégia econômica

Quando o então presidente Hu Jintao e o primeiro ministro Wen Jiabao lançaram na China um programa maciço de estímulos econômicos – o maior do mundo em relação ao tamanho da economia –, seu objetivo ia além de oferecer alívio temporário, num momento em que os principais mercados exportadores nos EUA e Europa balançavam. O estímulo pretendia ser a ponta de um programa ambicioso para tornar o consumo doméstico — e não mais a exportação — o centro de gravidade da economia.

O plano fez sentido – não apenas porque os mercados para os produtos chineses estavam voláteis, mas também porque o superinvestimento em exportação deixava subutilizada considerável capacidade econômica. As medidas colocariam maior poder de compra nas mãos da grande maioria de camponeses e trabalhadores, que estavam prejudicados pela prioridade dada às indústrias voltadas à exportação e aos lucros. E, politicamente, ajudaria as lideranças da China a afastar queixas internacionais sobre os enormes superávits comerciais que o país vinha registrando.

O problema é que a mudança também implicaria em transformar o balanço entre vencedores e perdedores na nova China.

O crescimento voltado às exportações criou um conjunto de interesses políticos e econômicos que durante os últimos trinta anos formaram um lobby poderoso. Ele inclui organismos de planejamento governamental (como a Comissão de Reforma do Desenvolvimento Nacional e o Ministério das Finanças) que geraram a estratégia da industrialização liderada pelas exportações; empresas privadas e estatais orientadas aos mercados externos; governos locais e organismos do Partido Comunista nas províncias costeiras; e companhias estatais de construção, cujos projetos de infraestrutura integram a estratégia liderada pelas exportações.

Um interesse chave desses lobbies manter o yuan desvalorizado, para tornar competitivas as exportações chinesas. Outro é manter as taxas de juros baixas – negativas, na verdade, ao levar-se em conta a inflação –, de modo que a poupança das famílias possa ser emprestada, a pequenas taxas, para empresas voltadas à exportação e de construção. Os economistas denominaram essa política de “repressão financeira”.

Entre os que perdem com esta política estão, além de pequenos e médios empreendedores voltados para os mercados locais, os  operários, agricultores e a população em geral na condição de poupadora e consumidora. Em, como expresa o economista Hongying Wang, todos que têm “sofrido sob o sistema financeiro e as finanças públicas, que os têm privado de uma fatia justa na riqueza nacional.”

Mas o lobby expotador foi além de apenas neutralizar o plano que visava fazer do consumo interno o motor da economia. Ele também mostrou-se capaz de sequestrar o programa maciço de estímulos que pretendia colocar dinheiro e recursos nas mãos de consumidores. Segundo dados da revista Caijing, citados por Wang, cerca de 70% dos fundos de estímulo foram para infraestrutura, enquanto apenas 8% destinaram-se a despesas de bem-estar social como casas acessíveis, assistência à saúde e educação.

A “repressão financeira” dispara a especulação

Essa “repressão financeira” teve consequências particularmente perniciosas. Com pouco dinheiro a receber por seus depósitos bancários, grande parte do público chinês migrou para imóveis e mercados imobiliários. Esse movimento foi encorajado pelas autoridades, preocupadas com o descontentamento público diante da falta de remuneração justa para sua poupança. O estímulo incluiu redução das exigências para empréstimos em bancos estatais, de modo a permitir que as pessoas investissem não apenas suas economias, mas também dinheiro emprestado.

Especular em imóveis foi o investimento preferido, durante muitos anos. Mas, como ocorreu nos EUA durante a bolha imobiliária do subprime, o mercado atraiu investidores demais e explodiu no início de 2014. O colapso dos preços resultou em milhares de arranha-céus inacabados, cidades fantasmas, projetos de casas abandonados e complexos comerciais virtualmente desertos, como o shopping New South China, em Guangdong, apresentado como o “maior shopping da Ásia”.

Após o fracasso imobiliário, os investidores migraram para o mercado de ações. Com o valor do mercado chinês acima de 10 trilhões de dólares e o do índice de Xangai subindo em 150% entre meados de 2014 e meados de 2015, o mercado parecia ser uma aposta ao mesmo tempo segura e altamente rentável. Centenas de milhares de pequenos investidores correram ao cassino, muitos apostando com dinheiro emprestado de bancos estatais chineses.

Quando o índice de Xangai alcançou seu ponto mais alto, no meio de junho, um analista da Bloomberg observou que, só no ano anterior, o ganho era “de mais do que 5 trilhões o tamanho de todo o mercado de ações do Japão. Nenhum outro mercado de ações cresceu tanto, em termos de dólares, nos últimos 12 meses.” Seguiu-se uma queda abrupta, de 40%, no índice Xangai. Centenas de milhares de investidores chineses tiveram enormes prejuízos e agora estão endividados. Muitos perderam toda a sua poupança – uma tragédia pessoal significativa, num país com sistema de seguridade social pouco desenvolvido.

As consequências políticas

A raiva contra o governo, por não ter conseguido evitar esta trajetória, está se formando. Alerta para a ameaça de os perdedores no mercado de ações irem às ruas, Pequim tentou colocar a culpa em corretores e analistas do mercado de ações. As autoridades fizeram cerca de 200 prisões de efeito demonstrativo, chegando a encenar a “confissão” televisionada de um redator de relatórios, que disse ter espalhado falsos rumores sobre os mercados.

Com o aprofundamento da crise econômica, a raiva e o ressentimento daqueles que foram privados de suas economias juntaram-se ao medo do desconhecido, que agora persegue muitos na classe média. Na verdade, a moderna classe média da China – que emergiu apenas no último quarto de século, e cresce rapidamente – nunca viveu as perspectivas sombrias de uma crise econômica real.

Novos ingredientes, que se somam a esta mistura volátil, estão espalhando protestos de camponeses e trabalhadores. Suas queixas abrangem um leque de temas, que incluem a poluição ambiental, apropriação de terras por autoridades locais e falta de direitos dos trabalhadores. De acordo com o Boletim do Trabalho da China, as greves tornaram-se uma “nova normalidade” no país: houve 1.378 greves e protestos de trabalhadores em 2014, mais que o dobro que em 2013 e o triplo de 2012.

No decorrer das últimas três décadas, o Partido Comunista Chinês substituiu a construção do socialismo, como base da sua legitimidade, pela oferta de crescimento econômico rápido e de uma economia capitalista próspera. Na verdade, uma das principais razões pelas quais o partido tem julgado tão difícil desistir do modelo de crescimento orientado para a exportação é que ele considera essa estratégia um mecanismo de resultados comprovados, para alcançar crescimento elevado.

O que importa agora é como o atual governo de Xi Jinping vai gerenciar as expectativas dos cidadãos num período e crescimento muito mais lento, desemprego crescente, aumento da desigualdade e escalada de descontentamento. Será que vai continuar falando manso, diante do poderoso conjunto de interesses que dominou a sociedade por trinta anos? Ou reunirá coragem para liderar o caminho a um novo paradigma de desenvolvimento, baseado no consumo interno e maior igualdade?

 

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