O horror em Berlim: Carta a uma amiga

Em meio ao massacre de Gaza, Estado alemão mantém apoio incondicional a Israel. Vozes dissidentes são silenciadas. Isso desrespeita a própria memória do Holocausto e não honra as pessoas que tombaram nas mãos dos fascistas de outrora

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Texto e fotos de Danú Gontijo

Dedico este texto a Ondina Pena Pereira.

Berlim, fevereiro de 2024.

Minha cara amiga,

Você aí no Brasil e eu aqui em Berlim, estamos ambas sentindo a dor de testemunhar o genocídio na Palestina, carnificina à luz do dia, televisionado para os quatro cantos do mundo. Mas se, no Brasil, o presidente dá voz à dor do mundo, aqui, o governo alemão apoia incondicionalmente Israel, como razão de estado. A mídia hegemônica, sem qualquer compromisso com a verdade, repete em uníssono a versão do governo, enquanto a comunidade acadêmica se cala num silêncio conivente. A imprensa no Brasil tampouco tem esse compromisso, já estamos acostumadas; o que me assusta é que, na Alemanha, muita gente compre esse pacote.

É de levantar cada fio de cabelo que mesmo grande parte dos conterrâneos e conterrâneas que conheço na capital germânica se esquivem de posicionar-se. Muita gente de quem gosto, artista, militante antirracista, lésbica, gay, feminista, todas certamente se consideram antifascistas, até o momento em que a palavra “Palestina” é pronunciada. Se insisto no tema, o prólogo “é complicado…” logo emerge. E isso se torna um mar de relativizações vergonhosas. E obviamente tem gente com medo de sofrer retaliações, já que o clima macarthista aqui está feroz, com perseguições e “cancelamentos” a torto e a direito.

Em suma, minha cara, morar em Berlim, nesta cidade que já foi palco de tantas atrocidades, tem sido deparar-se a cada dia com o horror. Não é certamente o horror de estar em Gaza. É um horror distinto, que li tão bem traduzido pela Jüdische Stimme, organização judaica local que trabalha pela paz e justiça no Oriente Médio: “Mesmo que o verdadeiro horror esteja na Palestina, é uma espécie de horror de primeiro mundo viver em uma sociedade onde tantas pessoas justificam o genocídio. Nós e muitos outros nunca esqueceremos isso”.

Quando saio de casa e atravesso o parque para encontrar a Maria na saída do trabalho, almoçar no chinês, ir ao pilates, coisas do cotidiano, dou de cara com uma bandeira imensa de Israel pendurada na fachada de um prédio. Mais de 30 mil pessoas mortas, 2 milhões deslocadas, um território destruído, e me pergunto, como é possível defender tão ostensivamente a bandeira desta máquina de guerra genocida? Eu olho para aquela bandeira e, juro, amiga, me sinto caminhando pela Alemanha nazista. O racismo de fundo é o mesmo, a desumanização, o desdém pelo sofrimento alheio. A diferença é que trocaram o antissemitismo de outrora pela islamofobia e o antipalestinismo.

“O verdadeiro dano é causado por aquelas milhões de pessoas que só querem ser deixadas em paz. Aquelas que não querem que suas pequenas vidas sejam perturbadas por algo maior do que elas mesmas”. Isso foi dito por Sophie Scholl, que, neste mês de fevereiro, há exatos 81 anos, foi executada na guilhotina, juntamente com seu irmão Hans, e Christoph Probst. O panfleto de seu coletivo Weisse Rose parece remeter a hoje: “Por que o povo alemão se comporta de forma tão apática diante de todos esses crimes abomináveis, crimes tão indignos da raça humana? […] O povo alemão continua cochilando em seu sono estúpido e entorpecido e incentiva esses criminosos fascistas”.

Antes de chegar aqui, tinha uma ideia de que a Alemanha tivesse feito um trabalho hercúleo de memória; me sentia instigada para as trocas futuras em terras teutônicas. Li muito sobre o Holocausto e esperava encontrar uma sociedade um tanto trabalhada no antirracismo, afinal, o racismo é a base do antissemitismo. Lembra da minha euforia lendo o prólogo de Memórias da plantação, de Grada Kilomba, em que ela diz que, a despeito dos episódios de racismo cotidiano, aqui tinham trabalhado mais a colonialidade do que em Portugal? Suas palavras me incentivaram a vir: “Cheguei a Berlim, onde a história colonial alemã e a ditadura imperial fascista também deixaram marcas inimagináveis. E, no entanto, pareceu-me haver uma pequena diferença: enquanto eu vinha de um lugar de negação, ou até mesmo de glorificação da história colonial, estava agora num outro lugar onde a história provocava culpa, ou até mesmo vergonha. Este percurso de consciencialização coletiva, que começa com negação – culpa – vergonha – reconhecimento – reparação, não é de forma alguma um percurso moral, mas um percurso de responsabilização. A responsabilidade de criar novas configurações de poder e de conhecimento.”

Acredito que a autora, se ainda for moradora da cidade, deve estar bem nauseada no contexto atual. O racismo e o eurocentrismo, já sabemos, levaram ao extermínio de milhões de judeus, comunistas, ciganos, gente como nós, homossexual, e tantas outras. Aqui se ergueram inúmeros monumentos à memória do Holocausto, muito estudo, pesquisa, todo um aprendizado, tudo isso acompanhado do mantra “Nunca mais”. É lamentável constatar que, apesar de tudo, minha querida, não conseguem transpor esse raciocínio para novos processos de desumanização, como o do povo palestino. É ululante o duplo padrão. A expressão “nunca mais” caiu num vazio absoluto. A verdade é que a decolonialidade da branquitude alemã vai só até a página 2. O discurso de democracia, direitos humanos, liberdade de expressão, antirracismo, feminismo, e a superioridade moral com que pregam tudo, é cínico: basta mencionar a Palestina e vai tudo por água abaixo. A Palestina é mesmo o “Grito inaudível” de que fala Rita Segato…

Já até te ouço exclamar: mas por que o espanto? Seria demasiado ingênuo acreditar que a dificuldade da Alemanha para considerar o genocídio palestino se deve exclusivamente à culpa histórica com relação à Shoah. É preciso entendê-la dentro do quadro mais amplo de dependência vis-à-vis os Estados Unidos e a OTAN. E em uma linha de continuidade com a história colonial-racista da Europa e do chamado Ocidente, que hoje luta para manter, a todo custo, sua hegemonia política, econômica e cultural sobre o resto do mundo. Não foi o que aprendemos com Edward Said, Joseph Massad, Rita Segato, Berenice Bento, Hamid Dabashi, Walter Mignolo, entre outres? E, no entanto, meu espanto é real – menos com as elites dominantes e mais com as comunidades migrantes, acadêmicas, artísticas e de esquerda, que, como disse, na Alemanha parecem comprar a narrativa “chapa branca” veiculada na mídia.

No mundo acadêmico, docentes e discentes mais críticos se autocensuram por medo de perseguição política, e as vozes reacionárias é que são ecoadas. Inclusive pessoas que eu conheço não conseguiram assinar ou tiveram de retirar seus nomes da excelente carta “Germany’s departure from reason”, feita pela comunidade acadêmica global condenando o papel da Alemanha em silenciar e contribuir para o genocídio palestino. E por falar em universidade, não sobrou uma de pé em Gaza… São anos de produção de conhecimento que se extermina junto. Achei que nada mais me chocaria, mas a explosão da universidade de Israa me deixou atônita. Você viu? Foi em meados de janeiro. Depois de meses de ocupação pelas forças israelenses, ou seja, sem Hamas, sem desculpas, simplesmente coordenaram a detonação da universidade. Achei a explosão ilustrativa do massacre, representa a aniquilação em todos os sentidos. Como bem lembrou Berenice Bento, não é só um genocídio, mas um epistemicídio.

No mundo das artes também há diversas vozes críticas sendo perseguidas, perdendo fundos públicos. Lembra do cancelamento da cerimônia de premiação, ainda em outubro, da escritora palestina Adania Shibli, na Feira do livro de Frankfurt? É o caso também de Candice Breitz, uma artista sul-africana judia, que tem sido uma voz importante na dissidência berlinense. Adam Broomberg, outro artista de origem judaica acusado de antissemitismo por se solidarizar à Palestina, me disse que costuma perguntar aos policiais que o abordam onde estavam seus avós no nazismo. Os dele foram sobreviventes do Holocausto.

Outras vozes judias insurgentes também têm sofrido perseguição, como é o caso de Iris Hefets Amsalem, Rachel Shapiro, Udi Raz, Hadas. Segundo Lucas Febraro, praticamente um terço das pessoas “canceladas” na Alemanha por antissemitismo são judias, o que significa uma sobrerrepresentação de dez mil por cento, levando em consideração que a população judia representa 0.3% da população alemã. “É assim que o estado alemão protege a vida judia no país?”, pergunta ele. Veja, amiga, que absurdo, a branquitude alemã taxando pessoas judias de antissemitas, elas que, por justamente terem aprendido com o passado e com o trauma transgeracional, se recusam a repetir o horror, a calar-se frente ao genocídio agora em curso.

A repressão às vozes em solidariedade à Palestina se tornou uma triste rotina… Salah Said, um ativista palestino em Berlim, vem sofrendo prisões arbitrárias e tortura psicológica, com visitas de policiais à sua casa para mera intimidação. Parece mesmo, como disse a advogada Nadija Samour, que o racismo antipalestino é a verdadeira razão de estado na Alemanha. O documentário “Palestine: Banned in Berlin” mostra a luta jurídica para defender pessoas detidas em manifestações, que já estavam proibidas antes de 7 de outubro. Samour aponta a contradição de uma sociedade na qual todas as forças políticas dizem defender os direitos humanos, porém se omitem quando se trata da questão palestina. Isso não começou agora e faz parte de um crescendo. Foi em 2019 que o Parlamento Federal alemão aprovou uma resolução classificando a campanha BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) como antissemita. O que restaria, amiga, ao povo palestino após 76 anos de Nakba, ocupação, apartheid, se também lhes é negada a resistência pacífica através de campanhas como a BDS?

E evidente que tudo isso também está intimamente relacionado com a questão da imigração, com o desejo de criminalizar a população muçulmana. Emily Dische-Becker, num podcast recente, diz que a maior parte das ações antissemitas, segundo a polícia alemã, partem de grupos neonazistas e não de grupos islâmicos, como o discurso mainstream quer fazer crer. Enquanto isso, a extrema direita na Alemanha atinge o 2º lugar nas intenções de voto, e promove encontros para tramar a expulsão de estrangeiros. É verdade que manifestações antifascistas tomaram as ruas em resposta, mas algumas delas proibiram os grupos pró-palestinos de participar. Como é possível ser antifascista sem ser antissionista? Isso desrespeita a própria memória do Holocausto e não honra as pessoas que tombaram nas mãos dos fascistas de outrora. E é na Alemanha que se encontra a maior comunidade palestina da Europa e uma população muçulmana de bojo. Como vão se conciliar com essas pessoas? E as toneladas de ressentimento vão parar onde?

Eu penso nisso todos os dias, amiga, e, ao sair de casa, me deparo com os paralelepípedos de memória, que também não me deixam esquecer. São os “Stolperstein”, que registram os nomes de antigos moradores na frente dos edifícios, na maioria judeus, e seu trágico destino, em geral mortos em campos de concentração. Fico uma arara quando alguém simplesmente passa em cima. Na frente do nosso prédio há sete plaquinhas. Maria e eu nos perguntamos se alguma dessas famílias terá vivido em nosso apartamento, imaginando o horror que terão passado em Berlim. Fiz o hábito de jamais deixar de ver, e não só isso, prestar uma reverência mental todas as vezes que saio. Mas nestes últimos meses, esses reluzentes marcos têm-me sido mais caros. Essas tantas vidas que tombaram não podem ter sido em vão. Isso tem me movido de um jeito que não sei explicar.

Amiga, não quero te passar a impressão de que Berlim é só horror. A cidade tem-nos dado amizades e alegrias, sobretudo por seu cosmopolitismo, um verdadeiro caldeirão de gente de tudo quanto é canto do mundo. É, sem dúvida, sua maior riqueza. Por isso me preocupo: o crescimento cabal da extrema direita e a desumanização do povo palestino pela boa sociedade progressista alemã transmitem sinais terríveis para as minorias políticas e comunidades estrangeiras daqui.

Meu tempo em Berlim já se finda, mas para quem fica, a lição é óbvia: a seletividade e hierarquização de vidas e dores é indefensável. Quem lutou com unhas e dentes contra o fascismo bolsonarista sabe bem disso. Ver nosso povo tão acuado tem-me tirado o sono. A comunidade brasileira, das mais aguerridas daqui, precisa dar as caras. O nazismo já nos provou que a desumanização é imparável e, ademais, que o silêncio, a conivência e a inação da maioria são fundamentais no processo.

É isso, minha querida. Desculpa o textão, mas precisava deste desabafo, que acaba organizando também as ideias, não é mesmo? Tampouco quero passar a impressão de que aqui não há resistência. A despeito de toda a pressão do establishment, a última pesquisa de que tenho notícias, do final de janeiro, mostra que 45% da população pede um cessar fogo permanente. Tenho me agarrado nas manifestações semanais que, sim, ocorrem em Berlim e quero acreditar que estão crescendo em tamanho e frequência. Tem sido mesmo de lavar a alma poder marchar ao lado de quem tem a dignidade de não se calar, apesar de todo medo e de tudo que se tem a perder. E por falar em alma lavada, os últimos pronunciamentos do Lula me encheram de orgulho e ganas para seguir. Que a força desse conterrâneo destemido nos inspire coragem, que é, como diria o personagem de Guimarães Rosa, o que a vida pede.

Abraço apertado,
danú

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