MinasMundo: As veias abertas de Inhotim

Inaugurando a parceria de OP com a Biblioteca Virtual do Pensamento Social e o projeto MinasMundo, a autora questiona a ferida social, racial e ambiental brasileira, que permanece viva em uma das principais instituições de arte do país

Detalhe de obra da Série “Pardo é Papel”, de Maxwell Alexandre, artista participante na mostra Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, no Inhotim, e que questionou os posicionamentos curatoriais do Instituto em relação ao lugar do negro no campo das artes brasileiras. Foto: Divulgação.
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Por Sabrina Parracho Sant’Anna na BVPS 

Com grande satisfação Outras Palavras anuncia nova parceria editorial, por meio da qual compartilhará com seus leitores conteúdos selecionados da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) e do projeto MinasMundo. Ambos são projetos de cooperação e inteligência coletiva envolvendo pesquisadoras/es e instituições universitárias de excelência no Brasil e em outros países, que buscam refletir sobre os processos sociais, culturais e técnicos que nos afetam na contemporaneidade. Com a parceria, Outras Palavras procura estreitar o diálogo com universidades e seus docentes/pesquisadores e ampliar as vozes e olhares que constroem o seu jornalismo de profundidade.

Iniciamos essa parceria republicando texto em que a professora e pesquisadora Sabrina Parracho Sant’Anna (UFRRJ) reposiciona o debate mais recente envolvendo a exposição Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro e o artista Maxwell Alexandre em perspectiva com processos de mais longa duração que fazem parte da instituição e da cultura mineira como um todo.

Leia outros textos da coluna BVPS/MinasMundo no Outras Palavras.

As veias abertas de Inhotim

Por Sabrina Parracho Sant’Anna

Em 21 de novembro de 2022, Maxwell Alexandre, artista cujo trabalho vem alcançando amplo destaque no campo da arte brasileira, publicou post contundente em seu Instagram, no qual reivindicava para sua obra o mesmo destaque dado a outros artistas consagrados pelo Instituto Inhotim. O texto era posterior à solicitação de retirada de sua obra Sem título – pertencente à série Novo Poder (2021) – da exposição Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, inaugurada em novembro de 2022. A publicação estava inserida em um conjunto de postagens sobre o mesmo tema na rede social do artista e ganhava repercussão na imprensa nacional. Condicionando sua participação em exposições da instituição à construção de um pavilhão para sua obra, Alexandre tomava parte nos debates que vêm emergindo das lutas antirracistas e das pautas decoloniais que se difundem no país[1] e escancarava feridas abertas pela exploração das minas no quadrilátero ferrífero em que se situa o museu e que sintetiza o Brasil.

O convite para publicar este post no blog da BVPS sobre pesquisa em andamento a respeito de Inhotim, no âmbito do Seminário organizado pelo Minas Mundo, é tarefa árdua que não pode passar ao largo da reflexão sobre os recentes acontecimentos que, a um só tempo, expressam e atualizam a história da instituição e da arte brasileira. Se as eleições presidenciais confirmaram mais uma vez a hipótese de que Minas Gerais é o microcosmos da nação, expressão última dos resultados das urnas nacionais, também a instituição museal, ora em tela, parece explicitar de forma inquestionável os conflitos que atravessam o país, e parece também dar sentido aos rumos para a reflexão da Sociologia da Arte brasileira.

O posicionamento de Maxwell Alexandre, tanto por sua significação histórica, como pela recepção que a acompanha, marca o sentido das mais urgentes interpretações sobre o país, mas também põe em xeque as reflexões sobre o comum acordo normativo da sociedade brasileira. O pedido do artista para exclusão de sua obra vem acompanhado de debate fundamental sobre as relações de poder nas instituições de arte contemporânea que prescinde de qualquer análise sociológica que se possa fazer. Diz Alexandre:

“assim que me deparei com a comunicação da exposição eu me constrangi. Até aí tudo bem, por que eu sempre fico constrangido com exposições temáticas sobre o negro. Eu não sei mapear com plenitude o porquê disso acontecer. Eu não nego a importância de tematizar e falar sobre ser negro e tudo que isso implica. Eu não teria como fugir disso de qualquer forma. Sou a favor da política de cotas e sou fruto dela também. (…) A única maneira de lidar com legitimidade e tentar diminuir erros tão grotescos seria ter na equipe do projeto o máximo de pessoas negras, principalmente em cargos de poder decisivo. Mas isso não é o que acontece em grandes instituições (…).

como se já não fosse constrangedor pra mim o fato de ter o assunto do negro tratado da forma como está sendo tratado e no contexto de Inhotim, a instituição resolve lançar uma outra exposição neste mesmo momento com o título ‘O mundo é o teatro do homem’, com apenas 3 artistas brancos. É quase uma individual o projeto. (…)

34 pretos sob um título que sugere a abordagem de sonhos e problemas DO NEGRO. Enquanto 3 brancos sob um título com ênfase no universal, no mundo e na humanidade. E não é um pavilhão fixo não, é uma exposição temporária. O que temos é mais uma vez o negro sendo tratado antropologicamente por uma instituição branca, com agentes brancos tomando decisões(…).”

Por um lado, o texto, também publicado como post no Instagram, em 18 de novembro de 2021, é parte de uma série de publicações do artista que denunciam, de modo mais ampliado, a persistência do racismo estrutural manifesto no país e no mundo da arte. Por outro lado, a publicação explicita também questões que estão enraizadas na fundação do instituto e do espaço em que a situação-crítica se desenrola. Inhotim é o microcosmos de relações desiguais que persistem no país e, se a recente política de inclusão social se faz mais que necessária, o modo como tem sido implementada traz novamente à tona relações que manifestam disputas entre imagens atribuídas ao museu e autoimagens construídas pela instituição e que são acionadas na interpretação do país.

Na narrativa oficial, o Instituto Inhotim começou a ser concebido por Bernardo de Mello Paz a partir de meados da década de 1980. Construída dentro da fazenda herdada do sogro pelo colecionador, como Jardim Botânico e instituição sem fins lucrativos, a fundação foi aberta para o grande público em 2006. Destinada à conservação, exposição e produção de trabalhos contemporâneos de arte, Inhotim apresenta hoje uma das mais importantes coleções privadas de arte contemporânea em âmbito internacional. No entanto, se, na narrativa institucional, Bernardo de Mello Paz é apresentado como “empresário, colecionador, mecenas e fundador do Inhotim”, em outros meios seu nome é também frequentemente associado a uma atividade de mineração predatória, centrada em práticas de trabalho escravo, crimes ambientais, relações de promiscuidade com o poder público e práticas de lavagem de dinheiro associadas ao instituto e às atividades de extração de commodities na periferia do capitalismo[2]. Se, conforme argumentam Milanez et all, “a desigualdade ambiental é processo recorrente na disposição de rejeitos indesejados e na exposição ao risco sobre a parcela mais pobre e, em geral, não branca da sociedade” (2019, p. 79), o instituto se inscreve ademais num sistema global em que a extração das commodities e os danos ambientais que daí advêm são mediados por elites locais inscritas num sistema internacional de fluxo de capitais. Ao longo de sua existência, a Itaminas esteve, portanto, associada, por muitos de seus críticos, a práticas deletérias de exploração do trabalho e danos ao meio ambiente.

Após o desastre ambiental de Brumadinho, e a partir da fragilização do modelo de desenvolvimento antropocêntrico, da ruptura do pacto entre elites no poder e o capital internacional desestruturado pelos recentes desdobramentos da crise política que assolou o país a partir de 2016, da pandemia de Covid-19 que desmantelou o financiamento à cultura, novos acordos passam a ser constituídos. Em 2021, “Território específico” seria o nome escolhido para o novo momento da instituição que tentaria retomar as atividades de Inhotim após anos tão conturbados. No site do instituto, o eixo temático se definia da seguinte maneira:

Ao completar 15 anos, Inhotim se pergunta: como a relação com o território em que está situado — o entorno de Brumadinho, as comunidades rurais e quilombolas da região e a relação com visitantes de todas as partes do mundo — moldam a história, o presente e a projeção de futuro da instituição?

Inspirada nos estudos do geógrafo brasileiro Milton Santos, a pesquisa traz o conceito de “território” a partir de suas diferentes escalas e fronteiras. Para ele, a existência do território só é dada pela vida que o anima e por suas relações sociais.

Artistas, pesquisadores, cientistas e público são convidados a pensar a relação das instituições com seu entorno, que papel a arte cumpre no território local e global e quais as potencialidades de um museu e de um jardim botânico para o futuro, diante das questões que enfrentamos como sociedade.

Quais as plantas que nascem neste território? Como o trabalho de pesquisa e conservação de sementes e espécies pode dar pistas para o futuro sustentável de uma instituição? Como o comissionamento e a construção de obras site specific levantam questões específicas entre arte, arquitetura e a natureza no Inhotim? Quais relações são estabelecidas com seu público externo, interno e com a comunidade? Quais territórios se desdobram, para dentro e para fora do Inhotim, sejam físicos ou imaginários?

O novo eixo temático, proposto para os últimos e próximos anos do instituto, aponta para uma reflexão sobre o espaço concreto em que o museu se localiza e se torna local. A recente ênfase no território parece dar proeminência aos aspectos da crítica institucional que vêm ganhando fôlego nos últimos anos (Sant’Anna, Marcondes, Miranda, 2017; Sant’Anna, 2019). Em lugar de uma busca da forma artística transnacional, o museu parece passar a operar numa lógica de reflexão sobre o espaço em que se insere, abrindo-se à reflexão sobre os efeitos políticos de sua própria existência.

No entanto, como mostra o recente episódio conflitivo, a recusa ao protagonismo de um artista em ascensão meteórica, como Maxwell Alexandre, escancara o tensionamento entre novas formas discursivas e experiências marcadas pela relação com a mineração, pela produção de commodities para o mercado internacional, pelo passado/presente escravista. Duas imagens de museu se colocam em tensão: por um lado, a formação de uma instituição global no mercado de arte internacional; por outro a compreensão de que sua inscrição global tem efeitos locais e não pode prescindir dos aspectos da crítica institucional que se tornam cada vez mais presentes no sistema da arte contemporânea (Sant’Anna, 2019). Que o primeiro polo ganhe mais uma vez proeminência, incorporando novos atores sociais, mas persistentemente recalcados em posições de subalternidade, é o dado que aponta para o surgimento de novos tensionamentos. Se Inhotim será capaz de emergir dos debates recentes constituindo novas chaves interpretativas capazes de consolidar efetivamente um cosmopolitismo abrangente é o que resta observar.

Leia outros textos da coluna Arte e Sociedade da BVSP.

Referências Bibliográficas

CUADROS, Alex.  The Crimes That Fueled a Fantastic Brazilian Museum At Inhotim: Bernardo Paz commissioned ambitious works by Matthew Barney, Olafur Eliasson, and more. Then the Brazilian government started investigating him. Bloomberg. 8 de junho de 2018. https://www.bloomberg.com/news/features/2018-06-08/the-financial-crimes-that-fueled-brazil-s-inhotim-museum?leadSource=uverify%20wall. Consultado em 10 dez. 2022.

INHOTIM. Território Específico. https://www.inhotim.org.br/institucional/territorio-especifico/ Consultado em 10 dez. 2022

LARA, Bruna de. De grilagem a trabalho infatil: surgem novos crimes de Bernardo Paz, idealizador do Inhotim.  18 de Junho de 2018. https://theintercept.com/2018/06/08/crimes-bernardo-paz-do-inhotim/ Consultado em 10 dez. 2022.

MARCONDES, Guilherme. Conexões de Cura na arte Contemporânea Brasileira. Arte e Ensaios, v. 26, p. 375-391, 2020.

MILANEZ, B. et al. (2019) Minas não há mais: Avaliação dos aspectos econômicos e institucionais do desastre da Vale na bacia do rio Paraopeba. Versos – Textos para Discussão. PoEMAS, 3(1), 1-114.

Criador do Inhotim é condenado à prisão por lavagem de dinheiro: O empresário Bernardo Paz, idealizador do museu a céu aberto em Minas Gerais, recebeu a pena de 9 anos e 3 meses. Veja. 28 nov 2017 https://veja.abril.com.br/cultura/criador-do-inhotim-e-condenado-a-prisao-por-lavagem-de-dinheiro/ Consultado em 10 dez. 2022.

SANT’ANNA, S. M. P.. Museus, cidades e crítica institucional: O Museu de Arte Contemporânea de Barcelona e o Museu de Arte do Rio em análise comparativa. Todas as artes: revista luso-brasileira de arte e cultura, v. 2, p. 55, 2019.

SANT’ANNA, S. M. P.; MIRANDA, A. C. F. A. ; MARCONDES, G. . Arte e política: a consolidação da arte como agente na esfera pública. Revista Sociologia e Antropologia, v. 7, p. 825-849, 2017.

Notas

[1] Para um debate mais substanciado a respeito de relações interétnicas e decolonialismo na arte, ver: MARCONDES, Guilherme. Conexões de Cura na arte Contemporânea Brasileira. Arte e Ensaios, v. 26, p. 375-391, 2020.

[2] A atuação da Itaminas de que Bernardo Paz era proprietário foi alvo, desde a década de 1980, de inúmeras controvérsias na imprensa nacional. Em 2017, a condenação do colecionador junto ao Ministério Público – mesmo que extinta em 2020 – foi seguida de extensa repercussão e, em 2018, longa reportagem de Alex Cuadros foi publicada pela Bloomberg, chamando a atenção para anos de práticas ilegais da companhia. A reportagem foi replicada pelo Intercept Brasil e Exame (ver referências bibliográficas).

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