Eu quero o fim do delegado de polícia

Não acabou, tem que acabar! Cargo é herança do Brasil imperial, quando autoridade jurídica e policial se misturavam. Divide corporação em castas; nos inquéritos, viola direito ao contraditório e a ampla defesa — alicerçando as injustiças

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Motivos não faltam para que a esquerda brasileira faça inúmeras críticas às Polícias Militares do país. As cenas de violência policial, agora em maior quantidade nos programas jornalísticos porque gravadas pelos cidadãos, geralmente são protagonizadas pelos policiais fardados, sendo natural que a maior parte do repúdio popular recaia sobre as PMs. As esquerdas, sejam elas partidárias ou de movimentos sociais, porém, não podem cair no erro de focar suas acusações apenas nos militares. Por trás da violência da farda, há um sistema de segurança pública ainda mais complexo que deve ser compreendido.

No Brasil, este sistema é fragmentado pelo chamado ciclo fracionado de policiamento. No âmbito estadual, que possui as maiores competências da segurança, possuímos duas polícias: a militar, responsável pelo policiamento preventivo de caráter ostensivo e pela manutenção da ordem, e a civil, responsável pela polícia judiciária, ou seja, a que investiga e dá as condições para que um crime vire um processo penal. Assim, o ciclo do trabalho policial brasileiro é fracionado em duas instituições diferentes, podendo-se dizer que nossos estados têm, na verdade, duas meias-polícias, que realizam apenas metade da atividade de policiamento cada uma.

Este é um modelo que difere da maior parte do mundo, principalmente dos países desenvolvidos, onde as instituições policiais, ainda que múltiplas, realizam o ciclo completo. Mesmo na França, por exemplo, onde há a militarizada Gendarmerie e a Polícia Nacional de caráter civil, a divisão entre estas é feita por critérios territoriais, e não por atividade, ficando a gendarmaria mais restrita a pequenas cidades rurais e regiões de fronteira. O mesmo acontece em Portugal, com a militar GNR e a civil PSP. Todas estas, ao contrário das brasileiras, são polícias de ciclo completo.

Ineficaz e marcado por rivalidades, este sistema fracionado brasileiro tem raízes históricas e pode ser explicado pela presença de duas figuras que sofreram pouquíssimas alterações no desenvolvimento do nosso Estado: o Delegado de Polícia e o inquérito policial. E se a história da Polícia Militar remete a tempos autoritários em que o controle social sobre os escravos e os mais pobres ditava os objetivos das instituições, a história destas duas figuras que estruturam a Polícia Civil não é muito diferente.

Assim como as PMs, a origem das Polícias Civis também remonta aos tempos do Império, principalmente ao conturbado período Regencial, recheado de revoltas abolicionistas, republicanas e separatistas, além das rotineiras insurgências de escravos. É nesse contexto que o Código de Processo Criminal de 1832 estruturou um sistema centrado nos Juízes de Paz, que acumulavam, de certa forma, funções policiais e judiciárias, trabalhando desde a prisão até a formação de culpa dos acusados, com o auxílio de escrivães, oficiais de justiça e inspetores de quarteirões. A confusão entre Judiciário e policiamento era tanta que o próprio Chefe de Polícia deveria ser um Juiz de Direito.

Em 1841, uma grande reforma seria, para muitos, o marco da origem das Polícias Civis do país, recriando o cargo de Delegado, encarregado das funções dos Juízes de Paz e de outras como a vigilância e a manutenção da tranquilidade pública. Para se ter uma ideia do impacto histórico desta reforma, Polícias Civis como a paulista ou a gaúcha a comemoram como seus próprios nascimentos. Simbólico da centralidade que a figura do Delegado exerce nestas instituições.

Estes Delegados, ainda misturando funções judiciárias e policiais, teriam em suas mãos um instrumento com alta capacidade de controle social que, por mais de um século, marcou a história do Brasil: os chamados “termos”. O “termo de bem viver” e o “termo de segurança” tinham a capacidade de qualificar pessoas criminalmente sem qualquer tipo de julgamento, fixando penas, de forma sumária, contra pessoas em situação de “vadiagem” (desempregados e sem domicílio fixo), bêbados ou prostitutas.

Como um “superjuiz”, capaz de prender pessoas em atividades de policiamento e julgá-las, o trabalho dos Delegados, desde os primórdios, era marcado pela inquisitorialidade, ou seja, pela falta de oportunidades de defesa aos que eram acusados. Some-se a isso um Código Criminal de 1830 que, apesar de praticamente ter abolido a pena de morte, a manteve aos crimes ligados à insurreição de escravos, além de apresentar uma série de outros tipos penais que poderiam ser usados como forma de censura a opositores do Império. Ao lado dos Corpos Permanentes militarizados recém-formados, igualmente, os Delegados teriam para si todos os instrumentos necessários para uma política policial de controle social.

Outra reforma, em 1871, porém, poderia ter iniciado um novo rumo para a Polícia Civil em formação. Nesta, finalmente as atividades judiciárias e policiais seriam separadas, retirando dos delegados as funções jurisdicionais e a capacidade de formar culpa aos acusados, limitando-os ao preparo dos processos dos crimes por meio do inquérito policial. Ainda assim, este inquérito, por sua vez, acabou representando uma peça essencial para a futura formação de culpa, ocupando-se de diligências e coletas de indícios que virariam provas nos processos judiciais.

Problemático, já que o próprio inquérito conservaria uma das principais características das atividades do Delegado de Polícia: a inquisitorialidade. Ou seja, apesar da reforma visar a separação entre as funções julgadora e policial, as atividades dos delegados continuaram possuindo papel essencial, ainda que inicial, na formação de culpa dos acusados e sem precisar respeitar a ampla defesa e o contraditório. Anos se passariam, as polícias, tanto as militarizadas quanto as civis, seriam amplamente usadas de forma política, como mecanismos de controle social sobre os mais pobres e os trabalhadores organizados, em regimes como o da Velha República, da Era Vargas ou da Ditadura Militar, e estas características pouco se alterariam.

O inquérito, por exemplo, é basicamente regido pelo Código de Processo Penal atual, vigente desde 1941, o qual manteve a inquisitorialidade como essência desta peça. Mesmo legislações mais novas mantêm estes traços imperiais, como a Lei 12.830 de 2013, que determina que as atividades do Delegado de Polícia são de natureza jurídica, devendo ser restritas a bacharéis de direito, ao mesmo tempo que lhe concede a qualidade de autoridade policial.

Esta dubiedade dos Delegados e, por consequência, do inquérito policial gera algumas perguntas: a carreira de Delegado é policial ou jurídica? O inquérito é um procedimento meramente administrativo ou ainda tem características jurisdicionais? Questionamentos que parecem pequenos, mas escondem um grande conflito democrático.

Afinal, se a carreira de Delegado for essencialmente jurídica, conservando traços imperiais de quando este cargo se confundia com o de juiz, não faz sentido que ela possa ignorar dois dos mais fundamentais princípios jurídicos: o contraditório e a ampla defesa. Da mesma forma o inquérito que, se considerado jurisdicional, deveria se submeter a estes dois preceitos. E alguém duvida do impacto que os inquéritos têm na fase processual de um julgamento? Sobretudo em um país como o Brasil, onde a palavra dos policiais tem sido sistematicamente usada para fundamentar condenações. Pautado pela inquisitorialidade, o Delegado de inquérito nas mãos pode ser tão ou mais antidemocrático do que a anomalia de uma polícia militarizada.

Mas esta falta de democracia não se manifesta só nas relações da Polícia Civil com os cidadãos. A figura do Delegado causa reflexos autoritários dentro da própria corporação. Afinal, a exemplo da Polícia Militar, dividida entre oficiais e praças, a Civil também acaba fracionada em duas castas: a superior, dos Delegados, e a inferior, das demais carreiras como a de investigadores, agentes ou escrivães.

Também de forma semelhante aos militares, as Polícias Civis são estruturadas por regimentos recheados de normas que permitem todo tipo de arbitrariedade da casta superior contra seus subalternos. A Lei Orgânica da Polícia Civil de São Paulo, por exemplo, chega a caracterizar como transgressão o descuido da aparência física e permite a remoção de policiais das demais classes para outras localidades de forma pouco justificada. Falar na extinção da carreira de Delegado através da imposição da carreira única dentro da Polícia Civil, portanto, é também falar na própria democratização interna da instituição.

Assim, não faltam motivos para que as críticas da esquerda, quando o assunto for segurança pública, não foquem apenas na estrutura militarizada da PM. A desmilitarização, logicamente, é a bandeira central da reforma que precisamos para este sistema, porém, não pode ser levantada de maneira isolada. Precisamos também combater as arbitrariedades dos inquéritos policiais e questionar a própria necessidade de existir um cargo dúbio como o de Delegado de Polícia.

O “esculacho” de um soldado da PM nas periferias das cidades é apenas a ponta de lança de um amplo, complexo e arcaico sistema de segurança pública. O Delegado de Polícia, aliás, poderia ser o primeiro no combate a este tipo de atitude, já que é ele quem diariamente recebe presos espancados por policiais em seu expediente. Mas não é o que se vê na realidade brasileira. No nosso dia a dia, por trás de toda violência de um soldado da PM, existe a leniente caneta de um Delegado de Polícia. Este sistema precisa acabar.

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4 comentários para "Eu quero o fim do delegado de polícia"

  1. Advogado Criminal Discípulo de Roxyn disse:

    Texto lamentável. Uma coisa é certa: ninguém, absolutamente ninguém que integra o Sistema de Justiça Criminal advoga em favor do fim do cargo de Delegado de Polícia, principalmente Advogados. E isso por quê? Porque cabe ao Delegado de Polícia, na condição de Presidente imparcial das investigações criminais (leia-se Estado-investigador), garantir a produção de conteúdo probatório lícito e apto ao exercício de direitos (direito de defesa) e pretensões (pretensão punitiva por parte do Estado).
    Deixar a condução das investigações criminais nas mãos, por exemplo, do Estado-acusador (leia-se Ministério Público), é soterrar o direito de defesa, dificultando que provas comprobatórias da extinção da punibilidade, atipicidade, ausência de autoria etc. sejam produzidas já em sede pré-processual.
    Ademais, é simplesmente inviável, dentro do Sistema de Justiça Criminal, termos um presidente de investigação criminal que não tenha o pleno domínio do Direito. E isso por quê? Porque na condição de Presidente das investigações criminais, cabe ao Delegado de Polícia, a partir de uma perspectiva analítica do crime, fazer uma leitura jurídico-penal dos fatos. Feita essa leitura, o Delegado determinará quais diligências são pertinentes para se comprovar a existência ou inexistência dos elementos objetivos, subjetivos e normativos dos tipos penais sob investigação, tomando as cautelas necessárias para preservar a licitude da prova produzida em sede policial. Tomada a decisão, o Delegado será assessorado por um corpo técnico de policiais, com habilidades variadas para entregar, em tempo hábil, as informações pretendidas e as diligências determinadas. Portanto, uma leitura jurídica equivocada dos fatos pelo Presidente da investigação, de forma a não delimitar, com precisão, o problema a ser solucionado em sede de Inquérito Policial, gerará perda de tempo e dinheiro na elucidação dos fatos, além de sobrecarregar o efetivo com diligências desnecessárias.
    E ainda que alguns promotores mal intencionados tentem vender a tese de que a capitulação jurídica feita pelo Delegado tem pouca serventia, já que o “parquet”, ao oferecer eventual denúncia, não ficaria adstrita a ela, esse argumento é falacioso e desonesto, já que a única figura dentro da república capaz de dizer o Direito, no caso concreto, é o Juiz (personagem investido de jurisdição). Portanto, a capitulação jurídica apresentada pelo MP na denúncia também é provisória, uma vez que o Juiz pode dar aos fatos narrados na respectiva peça processual outro tratamento jurídico, utilizando-se, para tanto, do instituto da “emendatio libeli”. Portanto, qual a diferença da capitulação dada pelo Delegado daquela dada pelo Promotor? Absolutamente nenhuma; o primeiro assim o faz no âmbito da investigação criminal, com o objetivo de norteá-la, permitindo que os demais atores do Sistema de Justiça Criminal (principalmente a defesa do investigado) entendam qual é o tipo penal que o Estado-investigador entende pertinente ao caso. Daí decorrem inúmeras implicações, como a própria possibilidade de se impetrar “habeas corpus” para se questionar a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva em abstrato (que leva em consideração a pena do tipo penal imputado ao investigados) e, assim, trancar o andamento da investigação. O segundo (leia-se Ministério Público), por sua vez, faz a capitulação jurídica no âmbito processual, quando do oferecimento da denúncia, buscando nortear o processo penal, sem maiores repercussões, já que a defesa se defende dos fatos e o Juiz pode dar capitulação jurídica distinta.
    No mais, já que outras polícias foram citadas, como a francesa, torna-se oportuno destacar que na França, a polícia judiciária deste país não possui nenhuma autonomia. Sua atuação fica adstrita às determinações dos Juizes de Instrução (figura análoga ao nosso Delegado de Polícia, mas que, aqui, ao invés de ocupar um cargo dentro do Poder Judiciário, o Delegado está inserido dentro do próprio órgão policial, facilitando a comunicação entre está autoridade e os demais agentes da autoridade).
    Se diz advogado, mas, com certeza, nunca advogou na área criminal para querer o fim de um profissional do Direito na condução das investigações criminais. O que se deve fazer é o que a Polícia Federal vem fazendo, cobrando no concurso de ingresso para tal cargo um conhecimento jurídico refinado, com provas objetivas, discursivas, físicas, de títulos e oral, além de 3 anos de experiência jurídica ou policial.

  2. Victor Henrique Siqueira de Castro disse:

    Muito confuso e encontro o motivo de tanta desinformação no Brasil por falsas definições por meio de ideologias, e não adianta criticar uma ideologia quando para isso utiliza-se de outra, reveja seus conceitos e não generalize o trabalho policial, em especial do delegado de polícia, o seu partido PSOl envergonha o país e é um partido tão ilusório quanto o PT, precisamos de pessoas competentes não apenas lacradores, lamentável que alguns brasileiros não sabem nem um terço do funcionamento do setor jurídico, político, policial e baseia-se em apenas conceitos rasos

  3. Luis Bacchi Cirino disse:

    Sobre o texto de Almir Fellite, “Eu quero o fim do delegado de Polícia “. Bastante confuso e, em certos aspectos, destoante da realidade. Poderia ter incluído em seu comentário, por exemplo, o papel do MP nessa história. Para muitos sua existência é desnecessária. O Inquérito, como peça de instrução, feito pelo delegado, porque não deveria ser encaminhado diretamente ao juiz competente. Para que passar por um órgão intermediário? Quanto à PM, o autor do texto demonstra total desconhecimento sobre o assunto. Ela existe, assim como na maioria dos países, como sendo instituição militar com a missão de promover a manutenção da ordem pública. Não há razão plausível para se apregoar sua desmilitarização. Acerta quando diz que as organizações envolvidas em missões de segurança pública devem fazer o “ciclo completo de polícia”; que no Brasil existe a anomalia, da Polícia Civil realizar somente os trabalhos de investigação, instrumentalizados através dos inquéritos, e a PM somente o policiamento preventivo/ostensivo. As duas organizações deveriam executar ações de polícia de ciclo completo como fazem as demais congêneres, sejam elas militares ou civis, em todo o mundo.

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