A Nave dos Loucos e os espaços da (des)razão

No Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a pintura de Bosch ainda provoca a refletir sobre a loucura como intrinsecamente constitutiva do humano, contra as ideologias totalitárias que almejariam a purificação de tudo o que em nós transborda

A Nave dos Loucos, de Hieronymus Bosch
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“A loucura é o exterior líquido e jorrante da rochosa razão”
M. Foucault

Entre a realidade da exclusão e o anseio pela liberdade, a loucura habita um campo de batalha permanente. Acontecimento perdido no tempo, sua história traduz um interminável estado agonístico: a palavra insensata quase nunca pode ser acolhida nas malhas da razão sem estar de certo modo aprisionada – silenciada – no interior de uma série de termos, categorias e definições conceituais. Contudo, para além do conjunto de significações negativas estabelecidas pelos regimes de poder e de saber encarregados de sua exclusão, encarceramento e medicalização, a expressão das múltiplas faces da loucura encontrou no campo das artes um espaço singular de existência e proliferação. Como se, para melhor expressar aquilo que se esconde nos interstícios da realidade social, objeto inapreensível, os registros do visível e do dizível próprios à linguagem artística se fizessem necessários. Nesse sentido, a composição A Nave dos Loucos (1503-1504), de Hieronymus Bosch, deve ser considerada um caso exemplar. 

Uma de suas destacadas leituras está presente no livro História da Loucura, de Michel Foucault. O trabalho de Foucault inscreve A Nave dos Loucos na dinâmica estrutural de um período histórico marcado pela repetição de expressões artísticas interessadas no registro do desvio moral de comportamento. Nessas obras, entre as quais, além de Bosch, podemos situar o poema satírico A nau dos insensatos (1494), do alemão Sebastian Brandt, observa-se um tom crítico e moralizante. A insensatez humana é denunciada em todos os níveis sociais, incluindo a nobreza, o vulgo, o clero e os representantes das universidades. 

A pintura de Bosch pode ser vista como alegoria dos que viajam ou navegam pelo mar à deriva, alheios ao destino de suas embarcações. Como aponta Foucault na História da Loucura, a nau dos excluídos, vagando indefinidamente por rios e mares, leva embora da cidade os sujeitos indesejados. Essa viagem imprecisa representa, ainda, um rito de passagem e de purificação em que a única verdade e a única pátria destes passageiros “são esta extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer”.

Segundo o historiador da arte Ernst Gombrich (A história da arte), o destaque dado ao pintor holandês deve-se, entre outras coisas, à sua qualidade inigualável que permitiu, a partir das tradições e realizações da pintura de seu tempo, a construção de uma imagem do mundo invertida, composta por um conjunto “igualmente plausível de figuras que nenhum olho humano jamais vira”. Ainda de acordo com Gombrich, “Bosch ficou famoso por suas assustadoras representações das forças do mal.”

Essa imagem invertida do mundo, com destaque para a presença de fantasmas do inferno mergulhados em paisagens oníricas, tem o poder de conferir representatividade aos medos que povoavam as mentes de toda a sociedade medieval. As figuras oníricas representadas por Bosch, todos os tipos de demônios encarnados em figuras meio humanas, meio animais, meio máquinas, adquirem uma função de suplementação da realidade, materializando e dando forma ao pavor que atravessava os espíritos da Idade Média.

O exílio permanente da loucura ganha força expressiva no universo artístico habitado pelo pintor na medida em que revela um estranho espaço de morte e purificação. Nos quadros de Bosch a loucura está presente no avesso dos seres, como que a revelar a incompletude inerente aos humanos. Em A Nave dos Loucos, o cortejo dos insensatos é composto por membros do clero embriagados e mergulhados em vícios de toda espécie, corpos seminus agarrados ao barco e uma árvore servindo de mastro ao navio – como sugere Foucault, esta seria a árvore do conhecimento. Logo acima do que parece ser um movimento caótico engendrado por seres desorientados, chama a atenção um homem em trajes de louco que flutua sobre o barco calmamente. A insensatez joga um jogo infernal de inversões de valores e significados, conferindo, de forma irônica, um único ponto de estabilidade à paisagem retratada. 

A perspectiva demoníaca de Bosch desvela de um modo magistral a geografia espiritual de uma época. Segundo Foucault, naquele tempo ainda não havia sido desenvolvido um dispositivo de saber-poder (o poder disciplinar) destinado a silenciar sua parte obscura. A vida revelava-se num espetáculo trágico, verdadeiro beco sem saída. Formas insanas, animadas por desvios de conduta moral e/ou religiosa, habitavam o lugar da exclusão e figuravam um inevitável destino de sofrimento e danação. 

Nesse contexto, os loucos eram retratados como marginais lançados ao abismo de sua própria sorte. A exclusão radical, a expulsão compulsória para além dos muros das cidades, num espaço de indiferenciação absoluta, foi um “privilégio” desfrutado por indivíduos destituídos de uma condição mínima de cidadania nas cidades medievais europeias. Tais espaços, operadores de um processo de desumanização, foram anteriormente ocupados por leprosos. Há também registros históricos de soluções caseiras, como a construção de lares especiais para aqueles considerados “loucos de casa”. 

Na pintura de Bosch, a água que sustenta a embarcação desfruta de valores ambíguos. Trata-se de um domínio ao mesmo tempo incerto e movediço, mas também capaz de um papel terapêutico (vale lembrar, com Foucault, a “hidroterapia da loucura” operada pela psiquiatria nascente do século XVII). Seu aspecto impreciso exerceu importante função na construção de um imaginário da loucura no Ocidente, em oposição à terra firme e rochosa da razão.

Na imaginação ocidental, a razão pertenceu por muito tempo à terra firme. Ilha ou continente, ela repele a água com uma obstinação maciça: ela só lhe concede sua areia. A desrazão, ela, foi aquática, desde o fundo dos tempos e até uma data bastante próxima. E, mais precisamente, oceânica: espaço infinito, incerto; figuras moventes, logo apagadas, não deixam atrás delas senão uma esteira delgada e uma espuma; tempestades ou tempo monótono; estradas sem caminho. A loucura é o exterior líquido e jorrante da rochosa razão. É, talvez, a essa liquidez essencial da loucura nas nossas velhas paisagens imaginárias que devemos um certo número de temas importantes: a embriaguez, modelo breve e provisório da loucura; os vapores, loucuras ligeiras, difusas, enevoadas, em via de condensação em um corpo muito quente e uma alma abrasadora; a melancolia, água negra e calma, lago fúnebre, espelho em lágrimas; a demência furiosa do paroxismo sexual e de sua fusão. (Foucault, História da loucura)

Bosch realiza uma investida demoníaca contra um mundo apenas aparentemente ordenado segundo as regras endurecidas do ascetismo religioso. Na confecção desse universo depravado, povoado pela gula, cobiça, avareza e luxúria, entre outros pecados capitais, tudo deve ser purificado. Apenas a figura do louco, este sim tranquilamente disposto em seu habitat natural, não estranha o descaminho e a incerteza das águas. 

Ao retratar a face oprimida e os sentidos da dor dos excluídos, o artista expõe a lógica que subjaz à exclusão. O gesto que consiste em lançar o outro à indeterminação das águas do rio ou do mar, um gesto que conduz a uma separação/exclusão radical deste outro de um conjunto de determinações comunitárias – sejam elas geográficas, culturais, políticas ou econômicas – responde a uma função social de caráter farmacológico. Tal pressuposto baseia-se numa tese antropológica crucial para o entendimento da relação entre cultura e violência, segundo a qual toda comunidade humana possui, enquanto instituição primeira e fundamental, rituais sacrificiais de purificação. O sacrifício é, desde sempre, um ato social por excelência, um mecanismo produtor do sagrado e, num de seus sentidos que aqui nos interessa, de separação.

De acordo com René Girard em seu livro A violência e o sagrado, a necessidade desses ritos, identificados em todas as etapas da história humana, desde seus registros mais arcaicos, deve-se a um inevitável acúmulo de tensões e violências geradas no convívio diário entre os sujeitos no interior do corpo social. A tensão decorrente de uma crescente rivalidade entre os membros de uma determinada cultura – um estado de coisas nomeado por Girard de “rivalidade mimética” – ameaça a sobrevivência de seus laços constitutivos. 

O ritual de sacrifício objetiva uma espécie de purificação da violência, um equilíbrio homeostático do corpo social. Verdadeiros doadores de salvação, as vítimas são sacrificadas com o objetivo de descarregar a tensão acumulada no interior da comunidade. Os “bodes expiatórios” são sempre escolhidos entre aqueles indivíduos ou grupos portadores de certo caráter diferenciador, seja um traço cultural, religioso ou mesmo traços “naturais” desviantes. A natureza “monstruosa” determina sua condição de marginalidade. 

A tese de Girard ganha força quando pensamos nos sistemas de exclusão presentes no interior dos estados modernos. O caso radical e paradigmático, tendo em vista sua racionalidade operacional e explicitação discursiva, é o experimento eugenista do governo nazista conhecido como T-4. A ordem de execução – eutanásia – de alemães considerados pelo regime nazista como “indignos de viver” (pessoas com deficiência física ou mental) se deu ao final do ano de 1939, pouco antes do início da segunda grande guerra, e vigorou oficialmente até o dia 24 de agosto de 1941. A pressão surgida no interior da sociedade alemã, encampada por autoridades da igreja, pôs fim, ao menos oficialmente, ao arranjo mortífero que se deu entre militares, médicos e enfermeiros. No entanto, o plano de Hitler de promoção de uma “raça pura” se expandiu e ganhou proporções monumentais nos campos de concentração.

Retomando as análises empreendidas na História da Loucura, os rituais e lugares obscuros ocupados pela lepra na Idade Média foram destinados à desrazão, que se tornou uma ameaça insistente e bastante temida. Para Foucault, o quadro de Bosch prenuncia um movimento que resultou na constituição da psiquiatria e seus regimes de exclusão a partir do século XVII. Até chegar o momento em que a experiência trágica da loucura se viu totalmente silenciada pela constituição do saber psiquiátrico, manteve-se o domínio de uma dualidade estrutural claramente demarcada, uma “partilha rigorosa” entre a loucura e a razão, significando ao mesmo tempo exclusão social e reintegração espiritual. Liberar o louco à sua própria loucura, lançando-o à indeterminação das águas, significou a possibilidade de uma dupla salvação: para a vítima e para o algoz.   

Enfim, a violência do controle social – e seus estigmas – em torno das pessoas que sofrem de transtornos mentais não se reduz a uma questão circunscrita apenas ao corpo da loucura. Ao contrário, na batalha que se trava através deste corpo estão em jogo, fundamentalmente, as formas fundamentais que determinam uma certa “condição humana” normalizada. 

Ao longo da história, verificou-se que as ações orientadas no sentido da demarcação do espaço da loucura, seu cerceamento, garantiram a estabilidade necessária à fundação do estatuto da razão e da normalidade. Daí ser possível dizer que estamos todos, irremediavelmente, implicados nessa batalha.

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