A rebelião dos idiotas

Tratadas como ignóbeis e perigosas, maiorias foram apartadas da produção científica moderna. Mas veem-se com agentes cognitivos e sugerem: experiências, raízes locais e saberes ancestrais podem também revolucionar a ciência

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Por Antonio Lafuente | Tradução: Rôney Rodrigues

ANTONIO LAFUENTE NO BRASIL
> Pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais, do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, o autor deste texto participará da seguinte atividade em São Paulo:
Seminário “Ciência por amor. Sem autores, sem especialistas, sem proprietários”
23 e 24/5, das 9 às 17h — No Tucarena da PUC-SP — Rua Monte Alegre, 1024 – São Paulo
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O mau trato aos idiotas foi um dos elementos-chave que explicam o sucesso da ciência moderna. Foi Isabel Stengers quem o explicou brilhantemente ao comentar a estratégia seguida por Galileu para garantir uma comunicação bem-sucedida de suas descobertas. De fato, seu Diálogo sobre duas novas ciências (1638) é um marco na consolidação do italiano como língua moderna e na luta dos modernos para abrir espaço ao método experimental na Universidade barroca.

O Diálogo que Galileu inventa acontece entre três personagens reconhecíveis: um, o principal, ele mesmo, que é um moderno convicto; outro, chamado Simplício, que representa todos os valores a serem superados e, por fim, um terceiro, que opera como um diplomata e aparenta ter equidistância, mas que sempre a adapta seduzir o leitor com os argumentos do moderno. Os diálogos foram parte de uma estratégia retórica eficiente nas lutas ideológicas, hoje diríamos culturais e pós-modernas, que deram origem à modernidade.

O importante não é o gênero usado, mas a forma como os modernos o usavam para derrotar os antigos. O Diálogo de Galileu é um manual sobre como difamar, ridicularizar, menosprezar e, em suma, maltratar aqueles que, em vez de seduzir, decidimos destruir. E Stengers nos mostrou esta ligação disfarçada entre aqueles que sabem e os idiotas, aqueles que, caso seguíssemos o exemplo do sábio, deveriam ser ferozmente expulsos do espaço público.

Os idiotas são o termo genérico usado para descrever os amadores ou as bruxas e, em geral, todos os não acreditados, aqueles que ousam se expressar no espaço público com linguagem não validada, ou com formas irreverentes, ímpias ou incrédulas. Um idiota, nos ensinaram os gregos, é alguém que balbucia, que não sabe falar bem e que, em resumo, não merece ser ouvido. Os migrantes, os camponeses e as mulheres eram idiotas de origem. Um idiota é um problema a ser instruído e, enquanto aprende, ele representa um perigo, manifesta uma resistência. Não sabe que tudo é feito para o seu próprio bem. Não entende nem agradece. É um nó que retém o progresso. Um obstáculo a ser superado. Uma resistência ingrata, alguém desprezível.

Esta reflexão é particularmente necessária hoje, num momento em que os fatos são controversos, os valores estão em disputa, as questões são importantes e as decisões são urgentes. Para estes saberes, adaptados a tempos tão difíceis, contamos com um conceito que os descrevem: a ciência pós-normal. A pandemia e a crise climática nos ajudam a entender o problema. As temos tão próximas, seus transbordamentos são tão cotidianos, que é muito difícil falar desses assuntos como se apenas fossem objetos de laboratórios, assuntos exclusivamente científicos.

A pandemia nos ajudou a entender melhor a urgência que havia para facilitar a ciência aberta e limitar a influência das grandes corporações. De repente, os cientistas privilegiaram o bem comum e começaram a compartilhar seus resultados pela via da pré-publicação, sem esperar pelas opiniões dos revisores, nem temer o perigo de plágio. A preocupação de prioridade na descoberta ficou em segundo plano.

A crise climática trouxe à tona um coletivo crescente de especialistas que advogam por uma rebelião dos cientistas, cansados de fazer recomendações e de serem ignorados. Infelizmente, eles chegaram à conclusão de que pregam no deserto e que só o protesto nas ruas fará com que os governos reajam. O diagnóstico é tão triste quanto exato.

Ciência aberta e a ciência do clima são expressão de duas rebeliões promovidas por pesquisadores: a primeira, contra os interesses corporativos que endossam o chamado academic capitalism e sustentam que não há ciência sem propriedade intelectual; e, a segunda, contra os Estados que sempre postergam decisões complexas e nos conduzem ao desastre. Por que tantos laboratórios, artigos, congressos e relatórios se nada acontece?

Algo se move na ciência e merece atenção. Aqueles que sabem, que se levantaram contra Simplício, são agora os últimos a se mobilizarem. É bom que eles busquem uma aliança com aqueles que não sabem, mas devem saber, que há precedentes, muitas rebeliões de idiotas que merecem ser lembradas.

A Associação Francesa contra as Miopatias foi criada em 1953 para dar visibilidade a um problema que o Estado e o mercado não conseguiam resolver. Sendo poucos os afetados e irritados por não serem atendidos, os enfermos se organizaram de uma forma tão eficiente que conseguiram se converter em um ator relevante na cena genética francesa. Para conquistarem isso, eles souberam arrecadar grandes somas de dinheiro, investindo-as na contratação de cientistas e no incentivo a investigação de seus problemas. E o fizeram modificando a tradicional relação médico-paciente de uma forma que eram os pacientes aqueles que dirigiam as instituições, estabeleciam as prioridades e alocavam os recursos.

Os especialistas estavam a serviço daqueles que os pagavam e eram os enfermos que exigiam que os doutores os ouvissem. E foi assim que eles foram capazes de transformar a experiência que tinham de sua própria enfermidade em signos a partir dos quais foram criados padrões de diagnóstico. Os pacientes eram, então, codesenhadores em todas as etapas do processo. Tanto se envolveram que ganharam a qualificação de especialistas por experiência, um conceito que nos ajuda a tornar mais porosa a fronteira entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem. Há muita literatura acessível sobre esta bem-sucedida rebelião de idiotas.

Também não falta de literatura que explique a forma exemplar de como as feministas reivindicaram novas abordagens para o câncer de mama. Uma simples revisão dos dados disponíveis provava que o número de incidências não havia deixado de crescer nas últimas décadas e que apenas uma pequena porcentagem (10%) tinha origem genética. Isto significa que o aumento deveria ser atribuído ao estilo de vida e, portanto, tem a ver com o que comemos, bebemos, vestimos e respiramos. E, ainda assim, continuamos a colocar a ênfase na cura em vez da prevenção. Não é surpreendente, então, que as feministas tenham direcionado sua raiva em conseguir mudanças substanciais nas políticas públicas. E eles também tiveram sucesso, ainda que parcial.

Há muitas mobilizações de enfermos que poderíamos discutir, mas vou me deter apenas em mais uma: a rebelião dos eletrossensíveis. Sabemos que cerca de 5% dos europeus são sensíveis às ondas ou, dito de outra forma, têm dificuldade em viver em um ambiente poluído pela radiação eletromagnética derivada da expansão da eletricidade, da telefonia e da internet. Em alguns casos, há pessoas que padecem intensivamente com esses efeitos e sofrem de fadiga extrema. As ondas os anulam por completo, mas quando pediam um diagnóstico descobriam que, como suas condições não foram classificadas como uma doença, ficariam sem licença médica e, consequentemente, perderiam seus empregos, depois a autoestima e, em muitos casos, ficariam abandonados à própria sorte.

O problema para os eletrossensíveis era que eles não podiam provar a natureza de sua enfermidade. Tiveram que se reunir e, após um longo processo de experimentação e trabalho colaborativo, conseguiram escrever um volumoso relatório identificando um padrão comum de sintomas que convenceu o sistema de saúde sueco e, com o tempo, uma série de instituições que hoje recomendam um tratamento compassivo dos pacientes e têm regulamentado as emissões. Não é exagero dizer que, desde 2011, apenas as corporações industriais ligadas às tecnologias de informação e comunicações se recusam a reconhecer que estamos enfrentando um problema comparável à exposição ao amianto ou ao benzeno.

As rebeliões dos idiotas são muito semelhantes umas às outras. Lutam por um diagnóstico que torne visível sua doença ou, alternativamente, combatem um diagnóstico que os estigmatize, como foi o caso de pacientes com AIDS, pessoas com deficiências e, mais recentemente, pessoas do espectro autista. Em todos os casos, a mobilização se agarra a um lema que deve ser paradigmático: nada sobre nós sem nós.

Estas não são rebeliões contra os especialistas, mas a favor de uma nova forma de organizar a relação entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem. Ouvir os idiotas significa levar a sério os saberes que eles têm sobre seu próprio corpo. Significa incorporar em nossas discussões o material empírico que proporciona o conhecimento experiencial. Significa admitir que a experiência não é o território do contingente, do circunstancial, do capricho ou do mutável. Implica aceitar que temos como tarefa ainda pendente inventar uma maneira de tratar as experiências individuais, as percepções singulares ou as diferenças não quantificáveis.

Os modernos nos adestraram para tirar do laboratório tudo o que pudesse ressoar a emoções pessoais, raízes locais e saberes ancestrais. Os cartesianos declararam guerra a tudo que a razão não sabia como pensar. Declararam guerra ao particular, ao enraizado e ao encarnado. E, por isso, as rebeliões dos idiotas são rebeliões contra Descartes.

E, também, contra o desperdício que é deixar de fora a tarefa de conhecer a experiência da imensa maioria da população. Ninguém pode negar que sabemos muito sobre o que se passa em nosso corpo, em nossa rua e em nossa comunidade. Não sabemos tudo, mas será cada vez será mais difícil prescindir do que podemos contribuir. E isso nos obrigará a repensar a relação entre especialistas e idiotas.

Os especialistas descobriram que, sem uma ciência aberta, a luta contra a pandemia se atrasaria demasiadamente. Ao mesmo tempo, os cientistas do clima acabam de decidir por uma revolta para que, de uma vez por todas, sejam ouvidos, sem mais desculpas ou atrasos.

Ambas as mobilizações apontam o Estado como culpado por se inibir e não agir em situações pelas quais ele é o responsável. Os idiotas, por sua vez, têm exigido outras formas de interação com os especialistas e toda a parafernália de agências governamentais, nacionais e internacionais, que regulam estas relações.

O que descobrimos é que as coisas são mais complexas do que imaginávamos. E as soluções requerem compromissos mais amplos. Não faltam pessoas, mas faltam atores. As novas disposições exigem um novo pacto social para a ciência. No anterior, ainda em vigor, se outorgava aos cientistas recursos em troca deles oferecerem evidências, ou seja, conhecimentos comprovados. Não é que tal conhecimento já tenha terminado, mas que aqueles que sabem se encarreguem dos problemas do mundo. O pacto deve incluir não apenas aqueles que pagam, os Estados e as corporações, mas também cidadãos organizados. Os cientistas do clima reconheceram a necessidade dos idiotas. No momento, eles se limitaram a pedir para serem mobilizados como agentes políticos, embora já tenham conquistado o direito de serem tratados também como agentes cognitivos. Em qualquer caso, parece claro que a ciência para as corporações não garante a vida em comum. Para garantir isso, precisa de públicos, sejam eles idiotas ou não.

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4 comentários para "A rebelião dos idiotas"

  1. Achei o texto incrível. Promove ótimas reflexões, principalmente, sobre a pandemia como um marco para a Ciência Aberta.

  2. Valdivia disse:

    Boa reportagem. Isso significa progresso, que tanto o Brasil necessita. “Congrats”!

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