A Argentina de tangos, crises e rebeldias

Dinheiro e medo, nunca tivemos! Este grito conectou os festejos da Copa com o movimento piquetero, de 21 anos atrás. Levante contra o neoliberalismo forjou uma nova cultura política, que pode ser crucial para enfrentar nova crise

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Por Micaela F. Moreira | Tradução: Rôney Rodrigues

“Dinheiro e medo, nunca tivemos” foi uma das muitas citações populares que estamparam bandeiras argentinas e foram compartilhadas nas redes sociais durante a última Copa do Mundo. Ela ressoa nos argentinos ao menos de duas maneiras: a recorrente crise econômica e política do país e a capacidade do povo de enfrentar as adversidades.

A ideia de “conhecer o sofrimento” (verso de um conhecido tango) também foi associada ao desempenho da seleção argentina como uma característica particular da cultura argentina: “Nacimos para sufrir, vamos a sufrir siempre, pero vale la pena”, disse o meio-campista Rodrigo De Paul após a final. Essa referência também apareceu em jornais argentinos e de outros países para resumir a performance da seleção: El Gráfico, Página 12, ABC Deportes, El litoral, Sputnik, Infobae, entre outros.

Embora essa percepção seja mais mito do que realidade, sua ampla utilização na cultura popular tem base empírica. Durante o último quarto do século XX, o país viveu várias crises econômicas e políticas. Em 1975, uma desvalorização maciça do peso combinada com hiperinflação foi seguida por um golpe militar em 1976, que governou por sete anos o país através do terror de Estado. Três tentativas militares de derrubar governos democráticos (1987, 1988, 1990); uma segunda onda de hiperinflação em 1989, que obrigou o presidente Alfonsín a antecipar as eleições nacionais; e a crise de 2001, quando o país deixou de pagar sua dívida externa e passou por um período de turbulência social que durou até 2003.

Em 20 de dezembro de 2022, quando as ruas da Argentina foram inundadas com pessoas comemorando, felizes e eufóricas, a conquista da Copa, era difícil lembrar que, 21 anos antes, milhares de manifestantes tomaram aquelas mesmas ruas devido às dificuldades econômicas e a falta de perspectivas.

A crise social, política e econômica de 2001 trouxe à tona as tensões e contradições do modelo de desenvolvimento neoliberal consolidado na década de 1990. Em outubro de 2001, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística e Censo, 38% da população vivia abaixo da linha da pobreza; a taxa de desemprego (crescente desde 1991) chegava a 18,3%; e a inadimplência da dívida externa era iminente. Quanto à percepção das instituições democráticas, os índices do Latinobarômetro mostraram que a confiança nos partidos políticos e no Congresso tinha o patamar mais baixo desde 1995 (4% e 10%, respectivamente).

Em 19 de dezembro de 2001, após surtos de saques em várias províncias, o presidente Fernando de la Rúa (líder duma coalizão de centro-esquerda e eleito em 1999) decretou estado de emergência em todo o país. A medida foi contestada pela população através de mobilizações espontâneas que se dirigiam aos centros do poder político em grandes cidades do país; mas o epicentro era Buenos Aires. Milhares de pessoas se reuniram na Plaza de Mayo, no Obelisco da Avenida 9 de Julio e ao redor do Congresso Nacional para exigir a renúncia do presidente e a renovação completa da classe política, gritando: ¡Que se vayan todos! Muitos permaneceram ali até o amanhecer, quando foram brutalmente reprimidos pela polícia. Os protestos se espalharam ao longo do dia seguinte com manifestantes ocupando praças e ruas e resistindo por várias horas aos ataques das forças de segurança – no que a pesquisadora Cecilia Dinerstein chamou de “batalha por Buenos Aires”. Na noite do dia 20, o presidente e todo o seu gabinete renunciaram. Durante as duas semanas seguintes, seguindo a regra constitucional de sucessão, o poder executivo foi delegado a quatro legisladores diferentes, com Eduardo Duhalde (um peronista de centro-direita) permanecendo no cargo como presidente interino. As manifestações continuam aumentando até junho de 2002, após dois jovens piqueteros serem mortos pela polícia durante um protesto.

Qual foi o significado político dessa crise para o país e que mudanças ela trouxe?

Imagem: Ezequiel Putruele/El Pais

Vários estudiosos e ativistas identificaram a natureza deslocadora do ciclo de protestos de 2001 com um “despertar político” – não no sentido de negar os processos políticos em curso na década anterior, mas por apontar os quatro principais desdobramentos da crise. Uma deles era que problemas sociais como desemprego, pobreza e a necessidade de mais intervenção do Estado (através programas de assistência social e melhores serviços sociais) tornaram-se questões públicas inegáveis na agenda política. Em um nível mais macro, abriu espaço para a discussão de modelos alternativos de desenvolvimento que valorizassem a produção sobre a especulação financeira e resgatassem o papel do Estado como planejador de variáveis e dos atores econômicos. A inclusão e a redistribuição tornaram-se novamente os eixos principais dos programas econômicos, e a irracionalidade das políticas de “austeridade” das organizações internacionais de crédito – que, histórica e globalmente, promoveram a servidão em vez do crescimento – tornou-se visível para o público em geral.

Um segundo resultado foi que o movimento piquetero se tornou um ator político permanente no sistema político do país e estabeleceu redes e organizações sociais que (com algumas variações) perduram até hoje. Relacionado a isso, um terceiro resultado foi que as experiências de ação coletiva durante a crise ressignificaram a política de forma mais ampla, incluindo formas alternativas de ativismo e organização social como importantes canais de participação política. A organização política baseada no território como estratégia de participação e sobrevivência se colou tão fortemente na sociedade que até setores de direita perceberam o potencial de aprender a falar com outros segmentos do eleitorado e mobilizar apoios. A expressão desse fenômeno tornou-se ainda mais evidente nos últimos anos.

Por último, uma presença massiva de mulheres nas diversas experiências de ação coletiva que poderiam explicar, posteriormente, a expansão e força do movimento feminista e de mulheres na Argentina. Na época da crise, as mulheres representavam de 60% a 70% da base social do movimento piquetero (Andújar: 2005) e espaços de participação como os Encuentros Nacionales de Mujeres (Encontros Nacionais de Mulheres) – que na década de 1990 tiveram uma média de público de 7 mil – manteve cifras acima de 10 mil desde 2001, chegando a 30 mil em 2005.

Onde estamos agora em termos de movimentos sociais e política?

A Argentina enfrenta agora uma nova crise econômica e nem a direita nem a esquerda parecem ter um modelo de desenvolvimento que se contraponha à dependência de commodities e concilie desenvolvimento com preservação do meio ambiente.

A coalizão governista é uma aliança entre movimentos sociais e grupos de esquerda e centro do partido peronista. A capacidade dos primeiros para influenciar políticas públicas tem sido, no entanto, limitada pelos primeiros desafios que se colocam desde cedo, nomeadamente: recomeçar uma economia recessiva em plena pandemia enquanto se lida com uma nova e inédita dívida externa.

Desde o fim das medidas contra a covid-19, as medidas de austeridade impactaram o apoio popular ao governo e pressionaram a coalizão, especialmente as organizações que exigem mais apoio: mulheres, indígenas, diversidades sexuais, grupos ambientalistas, periferias urbanas. Um dos grandes desafios para esses atores parece ser vincular suas demandas aos debates sobre desigualdade e redistribuição.


Referências:

Andújar, Andrea (2005), Mujeres piqueteras: la repolitización de los espacios de resistencia en la Argentina (1996-2001). Informe final do concurso: Poder e novas experiências democráticas na América Latina e no Caribe. Programa Regional de Becas CLACSO. Acessível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/semi/2005/poder/andujar.pdf

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